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A Emag localiza-se em um bairro de classe média, mas seus alunos são moradores de vilas e comunidades pobres. Do ponto de vista lógico, e não geográfico, a escola está na fronteira entre a pobreza dos alunos populares e uma vida confortável possível aos indivíduos de classe média que residem aos arredores da instituição. Os alunos, quando se deslocam pela região, alcançam visual e emocionalmente o poder e os efeitos da desigualdade social que está presente na infraestrutura das ruas, das casas, nos meios de locomoção, nas vestimentas das pessoas, nos serviços prestados pelo poder público ou pela iniciativa privada, entre outros produtos da nossa sociedade. Mais do que tomar consciência da sua pobreza, esses indivíduos, ainda crianças e adolescentes, deparam e sofrem na própria pele com as diferenças das condições de vida entre as pessoas que vivem no asfaltado e as pessoas que vivem na favela.

Esses aspectos sociais, materiais e econômicos que molduram a vida dos alunos da Emag têm seus correspondentes no interior da escola; eles funcionam como uma submoldura e também influenciam as condições de ensino e de gestão da escola. Ou seja, a escola tem uma história que é preciso considerar, principalmente quando se trata de analisar a vida escolar de adolescentes. A Emag não foi planejada e nem construída para atendê-los, tampouco na quantidade que hoje atende.

Após sua inauguração, a escola passou por várias ampliações priorizando a construção de salas de aula e a inserção dos alunos mais velhos do ensino fundamental. Com isso, a sala de aula que, na escola tradicional é o lugar privilegiado para se ensinar, torna-se quase que o único lugar de ensino. Os outros espaços como os laboratórios de ciências e informática, a sala de vídeo, quadras esportivas não são utilizados de modo satisfatório, sequer para cumprir os objetivos da escola tradicional, de transmitir conhecimentos.

O projeto arquitetônico da Emag foi elaborado para edificar uma escola tradicional e as alterações por que ela passou não alteraram o projeto original. Quando se tenta praticar dentro dessa estrutura física de escola outra concepção de educação, as condições dadas se transformam em obstáculos, conspiram contra as novas pretensões. No Apêndice A, é possível identificar vários movimentos dos docentes que tentam fazer um trabalho alternativo, menos tradicional. No entanto, esses profissionais acabam sendo assimilados pela prática tradicional, individualista, fragmentada que predomina no nosso ensino. Na Emag, prevalece a ideia de que o sucesso escolar é para quem merece, para quem se esforça e se submete às regras; ou seja, para quem se comporta como aluno. Consequentemente, quem não se comporta assim não tem acesso ao conhecimento que a escola oferece: os conteúdos da matéria, conforme promete o ensino tradicional. Nesse caso, a escola fica distante do princípio constitucional que anuncia uma educação plena do educando; ou, conforme defende Paro (2008a p. 25), uma educação como atualização histórico-cultural em que o aluno pode progressivamente diminuir a “defasagem que existe em termos culturais entre seu estado no momento em que nasce e o desenvolvimento histórico no meio social em que se dá seu nascimento e seu crescimento.”

Caberia à direção da escola agir contra essa situação e implementar uma administração em que as finalidades da educação fossem perseguidas incessantemente. De acordo com a direção da escola pesquisada, o caminho seria a elaboração do PPP da instituição. Entretanto, o que se verificou foi uma direção submersa em problemas cotidianos, atividades burocráticas e demandas apresentadas pela Smed-BH.

Com isso, a direção da escola passa a maior parte do seu tempo imersa no cotidiano da escola, com raros momentos de distanciamento, análise e reflexão a respeito da realidade, com pouca possibilidade de buscar as explicações dos acontecimentos e outros caminhos mais coerentes com os princípios da educação. A vida cotidiana, embora “esteja no ‘centro’ do acontecer histórico” (HELLER, 2008, p. 34; grifos no original), estrutura-se de tal modo que pode levar os indivíduos a se perderem com problemas secundários e afastá-los do objetivo principal (HARNECKER, 2008). Nesse caso, o outro, o mais próximo, aquele que compartilha da nossa vida cotidiana é visto como a causa dos problemas que nos aflige. Várias vezes, como relatamos no Apêndice 1, a diretora Ana, da Emag, se viu numa situação de tensão, ora enxergando como origem dos problemas a falta de um PPP na escola, ora o corporativismo dos professores.

O distanciamento do problema, a possibilidade de análise faz com que os indivíduos revejam suas posições. Na entrevista, a diretora demonstrou esse progresso. No trecho abaixo, por exemplo, ela revela que na sua visão o grupo que ela achava “corporativo” não era assim sempre, e tinha suas razões para resistirem às imposições da Smed-BH.

A gente tem as demandas externas. A direção é obrigada a executar. A gente tem um grupo resistente a isso. Com argumentos, às vezes, muito irracionais. Às vezes, com argumentos bem fundamentados, pedagogicamente falando. Então, colocar isso pro grupo e vencer esse muro que eles colocam, que é a maior dificuldade.

A escola e seus sujeitos não estavam organizados e nem estavam munidos das condições favoráveis para identificar seus principais problemas, definir seus objetivos e os meios para alcançá-los. A partir da segunda metade da década passada (2001-2010), coube apenas à Smed-BH definir os fins e os meios para vencer os problemas que ela também definiu ser os mais relevantes. Dessa forma, o projeto político-pedagógico que vigora na escola é da secretaria de educação. Os projetos chegam prontos para serem executados. Nega- se, portanto, aos profissionais, aos alunos da escola e a suas respectivas famílias a condição de sujeito, de autor. Os problemas educacionais e soluções vistos e pensados pelos sujeitos que atuam na escola são rebaixados a um plano inferior, quando não são completamente ignorados ou descartados.

Consequentemente, há uma sobreposição de objetivos educacionais que, mesmo prevalecendo os fins determinados pela Smed-BH, provoca dificuldades de diálogo entre os

diversos sujeitos e interesses. Com isso, os fóruns de debate e de deliberação existentes na escola são esvaziados, não superam sua função formal, existem geralmente para referendar decisões previamente definidas pela direção, pelos docentes ou pela Smed-BH. Pelo menos em três momentos isso ficou evidente61. Inicialmente, na reunião dos docentes com as famílias para entregar os boletins, quando ficou claro a dificuldade dos professores em ouvir os pais e procurar entender suas necessidades e opiniões sobre as questões do ensino. Depois, na incapacidade da direção em articular as famílias e os alunos para viabilizar a “escola de pais” e o grêmio estudantil. Por último, quando da decisão da Smed-BH em orientar apenas uma assembleia na escola para “elaborar” o Regimento Escolar da instituição. Não há como aprovar um regimento em uma assembleia apenas, quanto mais elaborá-lo.

Nesse sentido, diante da inexistência ou da sufocação dos fóruns democráticos, a escola, por meio dos seus profissionais, demonstrou pouca perspicácia quando desvalorizou a convivência democrática e deixou de unir força com sua comunidade na busca de seus interesses comuns. Segundo Paro (2008b), a organização democrática da escola é necessária porque,

hoje, quando o diretor reivindica, é fácil dizer-lhe “não”. Tornar-se-á muito mais difícil dizer “não”, entretanto, quando a reivindicação não for de uma pessoa, mas de um grupo, que represente outros grupos e esteja instrumentalizado pela conscientização que sua própria organização propicia. (p. 12)

Num outro nível da administração escolar, encontra-se uma coordenação pedagógica que, além de sobrecarregada, não tem acordado no interior da escola qual é o seu papel de fato. O coordenador de escola tornou-se tarefeiro, um faz-tudo que repreende e administra conflitos entre alunos, convoca e atende pais que procuram a escola, encaminha providências determinadas pela Smed-BH e, acima de tudo, substitui professores ausentes, entre outras responsabilidades. Tal situação se mantém no cotidiano escolar porque não há tempo de planejamento e formação em serviço que permita ao coletivo refletir, analisar e acordar sobre essa e tantas outras questões que assombram as escolas municipais.

Como relatamos no Apêndice A, os coordenadores Fred e Jane se sentiam desolados com essa situação. Ambos compartilhavam ainda do sentimento de que o trabalho do coordenador era desvalorizado pelos colegas professores que estavam em sala de aula.

Segundo os dois coordenadores, o esforço deles não era reconhecido pelos colegas. Com isso, a coordenação não tinha autonomia para agir. De acordo com a coordenadora Jane, as dificuldades da coordenação eram grandes porque não havia tempo coletivo na escola para que o grupo de profissionais pudessem se reunir, analisar a situação e fazer os devidos encaminhamentos, acordos e planejamentos; no pouco tempo que tinham, prevaleciam as lamentações.

Ao não solucionar essa questão, outras também continuam a se entrelaçar no interior da escola e colocam em risco a educação plena, capaz de formar sujeitos de direito. Na Emag, é visível, como pode ser verificado no Apêndice A deste estudo, um comportamento da coordenação marcado pelas ações construídas no calor das necessidades, sem maior aprofundamento e cotejamento com outras possibilidades. Assim, questões como a alta densidade de alunos no pátio durante o recreio, os conflitos provenientes da falta de espaço e da confusão que ali, às vezes, instala-se por esse motivo, a maneira pouco dialógica de tratar os conflitos e a indisciplina dos alunos continuam sendo tratadas espontaneamente, sem reflexão, de modo reiterativo.

O hábito de registrar os mínimos deslizes dos alunos num caderno, de convocar ou comunicar as famílias sobre esses deslizes e a forma pouco reflexiva como é feito, às vezes em grupo, expondo alunos, sem lhes garantir uma conversa mais íntima e pessoal, revela uma visão que predomina entre os professores e o coordenador de que os alunos cometem atos de indisciplina porque predomina, nas escolas e na sociedade, a impunidade. Por isso, é preciso agir. E agem, aceitando tal princípio como verdade; ou seja, é preciso punir para corrigir e educar. Sobre isso, o alerta de Paro (2006) é importante:

[...] A atitude dos responsáveis pela Administração Escolar não pode ser a de aceitação incondicional de tais determinações e de mera operacionalização das mesmas em nível de escola, mas, pelo contrário, de desvelamento dos verdadeiros propósitos a que servem e, quando necessário, de sua reinterpretação e articulação com propósitos mais identificados com a transformação social, o que quer dizer, com os fins especificamente educacionais da escola. (p. 153)

Com isso, os alunos e seus deslizes são vistos e tratados de um modo muito impessoal, não há diálogo, não há indagação, não há investigação, não se busca conhecer os motivos dos adolescentes para se comportarem de um modo ou de outro. Se o ponto de partida e de

chegada não é o sujeito real ali presente, com todas as suas dores ou alegrias, mas as regras que devem ser cumpridas, torna-se difícil convencer os alunos adolescentes de que as regras são importantes, necessárias ao bem comum da escola. Assim, o processo que Elias (1994) denominou de reticular entre os indivíduos e que permite a formação da sua personalidade, ou que Vigotski (apud OLIVEIRA, 2001) chamou de processo de mediação, fica prejudicado e, por sua vez, fadado ao fracasso se a finalidade da escola é o de educar seus alunos na sua plenitude. Ou, como demonstraram os relatos no Capítulo 7 e Apêndice 1, a escola fracassa também se o seu objetivo é apenas o de exercer controle sobre seus alunos. Porque eles se rebelam. Submeter-se às regras e aos adultos da escola não é coerente com o seu sentimento de potência. Submeter-se a quem não os reconhecem como sujeito seria uma derrota, seria admitir sua impotência em relação ao outro. E como afirma Freinet (1998, p. 198), o indivíduo “jamais se acomoda à derrota. Precisa vencer e triunfar.”

Mas existe um problema da administração da escola que é mais sério do que os outros porque diz respeito ao fim último, primordial da escola, que é o de oferecer aos estudantes as condições necessárias para se educarem. Ora, administrar, em seu sentido geral, é utilizar racionalmente os recursos necessários para realizar os fins da educação (PARO, 2006). Numa escola, utilizar racionalmente os recursos demanda, entre outras providências, a coordenação do esforço coletivo dos professores. E isso não é feito no dia a dia da escola. Diretor e coordenadores não têm os meios necessários para realizar essa responsabilidade. É desse modo, sem um acordo coletivo que oriente o esforço coletivo dos professores, que – individualmente, orientados ou conduzidos por uma concepção tradicional de educação - eles desenvolvem seu trabalho em sala de aula.

Desse modo, direção e coordenação não têm acesso aos meios necessários para administrar a escola no sentido de garantir o direito do educando à educação plena.