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4 DIMENSIONANDO OS PROBLEMAS E OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

4.2 Os conflitos socioambientais em unidades de conservação e suas múltiplas faces

Um problema ambiental se transforma em conflito ambiental quando os diversos atores sociais afetados tomam consciência de suas perdas e entram no campo de disputa (QUINTAS, 2005, p. 70-71). Em outras palavras, os atores sociais reagem em defesa de seus interesses. Assim, nem todo problema ambiental pode ser considerado um conflito ambiental, uma vez que, não raras vezes, há dificuldades para tomada de consciência das pessoas afetadas (QUINTAS, 2005, p. 71). Importante lançar um olhar crítico a essa postura do autor, que pode colocar comunidades que sofrem com os problemas ambientais em um lugar carregado de negatividade. Realça-se que essas pessoas, na maioria das vezes, sofrem discriminações e violências históricas, apresentando vulnerabilidades e, para que ocorra essa “tomada de consciência”, é necessário que haja, por exemplo, informações, que são majoritariamente, omitidas ou falseadas pelos atores hegemônicos. Ainda, tal situação de vulnerabilidade coloca essas mesmas pessoas em situações assimétricas no tocante às possibilidades de ação.

Essa falta de consciência também pode ocorrer, entre outras causas, em razão de fatores temporais e espaciais. No primeiro caso, o problema subsiste há mais tempo que a permanência das pessoas no território. Já na segunda hipótese, o problema se dá a uma distância considerável dos atores, dificultando a percepção do prejuízo a que estão expostos. Pode haver, ainda, falta de percepção da finitude dos recursos, cenário em que o problema se tornará visível posteriormente (MMA, 2015, p. 20).

A institucionalização do conflito, por sua vez, ocorre no momento em que o Estado passa a intervir23 – provocado por pressões sociais – fazendo valer as normas estabelecidas na legislação ambiental (MMA, 2015, p. 21). Lúcia da Costa Ferreira (2004, p. 53) observa que os conflitos que ocorrem em unidades de conservação e povos tradicionais se dão nas mais diversas esferas, incluindo a legal, institucional, de interesses, de saberes e fundiária.

Para se ter noção da dimensão do conflito, das 135 Unidades de Proteção Integral participantes de um estudo realizado em 201524, 94 apresentavam interfaces territoriais, totalizando a porcentagem de 69,6% (MADEIRA et al., 2015, p. 7). Em outras palavras, o conflito socioambiental decorrente da sobreposição de territórios de povos e comunidades tradicionais e Unidades de Proteção Integral é realidade em cerca de 70% das unidades brasileiras. Veja a tabela abaixo:

Tabela 1 – Unidade de Proteção Integral com interfaces territoriais

Fonte: José Augusto Madeira et al. (2015).

O conflito legal é configurado, em virtude da incoerência jurídica quanto ao tratamento dispensado à situação. Ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro confere proteção constitucional e incentiva políticas de proteção cultural à permanência de povos tradicionais em seus territórios; que assina e ratifica Convenções Internacionais que conferem direitos diferenciados e reconhecem a importância dessas comunidades para preservação ambiental; que possui uma vasta e plural legislação interna reconhecendo a importância das comunidades tradicionais para a preservação da natureza; ele determina a remoção de povos tradicionais de seus territórios, compensando-os ou indenizando-os pelas benfeitorias realizadas (art. 42 da Lei do SNUC).

No que diz respeito ao conflito institucional, o espaço, antes, social, onde as comunidades exerciam seus modos de vida, é convertido em espaço de conservação (SIMON,

2005, p. 34-35). Há a imposição de novas regras de uso e apropriação, voltadas para o “não uso” dos bens naturais, dos quais as comunidades dependiam cultural, existencial e economicamente (SIMON, 2005, p. 34). A nova dinâmica instituída para o meio ambiente passa a ser, para as comunidades locais, a da perda do direito de usar, fruir e dispor da propriedade (SIMON, 2005, p. 30).

Ademais, as comunidades tradicionais encaram a implantação da unidade como subtração de seu território pela população urbana. Aquelas consideraram que os seus modos de vida devam ser sacrificados para proteger a biodiversidade ou para assegurar espaços de lazer e pesquisa para a população urbana (DIEGUES, 2001, p. 67). Nesse momento, é valido ressaltar o conceito de justiça ambiental, desenvolvido a partir da concepção de que aquelas pessoas que menos contribuem para causar danos ambientais e as que mais dependem dos recursos naturais para reproduzir suas formas de vida, são as que mais sofrem os impactos do modelo econômico (MMA, 2015, p. 13).

Ainda nesse contexto de instituição de novas regras, a unidade também passa a ser vista como um obstáculo ao desenvolvimento pela sociedade urbana. A situação ocorre, por exemplo, quando há o fechamento de estradas e o estabelecimento de regras mais restritivas nas zonas de amortecimento (MMA, 2015, p. 23). Nesse caso, é necessário que a gestão da unidade esclareça à população sobre a importância das unidades de conservação para o equilíbrio das atividades regionais, uma vez que contribuem para a manutenção do regime das chuvas, polinização das colheitas e perenidades dos cursos hidrográficos (MMA, 2015, p. 23). É igualmente importante o esclarecimento sobre a possibilidade dos novos negócios que surgem com a implantação da unidade, compatíveis com os interesses da conservação da natureza, tais como, o ecoturismo e a comercialização de produtos sustentáveis (MMA, 2015, p. 23).

Em relação ao ecoturismo, assinala-se que há uma apropriação da natureza enquanto produto, gerador de lucro, legitimando o uso território para determinada classe, excluindo-se outra (SIMON, 2005, p. 34). Não se permite a presença das comunidades que lá viviam e dependiam dos recursos naturais, tanto para existência física, quanto cultural, mas se permite o ecoturismo e os problemas inerentes. Verifica-se, portanto, que é necessária a criação de mecanismos para gerar ganhos reais para determinados segmentos, uma vez que a conservação ambiental apenas pelo propósito da ciência e pesquisa não é suficiente para gerar volumosos lucros financeiros (SIMON, 2005, p. 34).

O conflito de interesses ocorre em relação às iniciativas conservacionistas, preservacionistas e socioambientalistas. Como já discorrido anteriormente, no capítulo 2, há, de um lado, uma concepção de preservação, que veda o uso direto dos recursos. Nessa

perspectiva, a unidade de conservação é considerada como um cercado, que barra as reais e potenciais ameaças aos bens naturais (SIMON, 2005, p. 30). De outro lado, na vertente socioambientalista, há a inclusão do fator social como aliado para a conservação da natureza, não havendo se falar em conservação dos ecossistemas dissociado da justiça social (SANTILLI, 2005, p. 14).

Sem desconsiderar os prejuízos advindos dos conflitos socioambientais em Unidades de Proteção Integral, o conflito pode ser encarado como categoria explicativa de mudança (FERREIRA, 2004, p. 51). Atores que até então, em sua maioria, não possuíam prévia experiência na arena política e que são historicamente marginalizados dos processos decisórios, passam a se articular (VIVACQUA; VIEIRA, 2005, p. 159). Na pesquisa realizada por Lúcia da Costa Ferreira (2004, p. 53), entre os resultados mais significativos dessas novas articulações, destaca-se que os atores passaram a produzir suas próprias lideranças; a investir na organização política, desde a organização de pequenas ONGs, associações civis até organizações sindicais; e na criação de meios para a participação direta em pactos e projetos (FERREIRA, 2004, p. 53-54).

4.3 Regularização fundiária: transformando áreas privadas em áreas públicas destinadas