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4 DIMENSIONANDO OS PROBLEMAS E OS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS

6.3 Uma relação equânime entre ser humano e natureza: a dialética do meio

Levando-se em conta as críticas feitas acima, devem ser rechaçados os discursos de que os homens são unicamente seres de razão, regidos somente pela cultura, e, de igual modo, devem ser afastados os discursos de que os homens são seres exclusivamente naturais, regidos apenas por processos biológicos, pois ser humano não é ser todo natural e nem todo cultural (OST, 1995, p. 225).

Nesse sentido, Tin Ingold (1994, p. 22) trabalha com as questões de animalidade e humanidade. Para o autor, a animalidade se caracteriza pela ausência de diferenciação entre os indivíduos, repousando-se em padrões de uniformidade (INGOLD, 1994, p. 22). Melhor dizendo, todos os seres são organismos biológicos com idênticas predisposições, incluindo os seres humanos, cujos indivíduos dessa espécie nascem de uma mulher e produzem descendentes férteis, os quais possuem certos padrões, tais como de reprodução – a partir de um óvulo feminino fecundado por um gameta masculino, nasce um novo individuo – e de morfologias, tanto interna quanto externa. Esses são exemplos de características biológicas peculiares à

animalidade (INGOLD, 1994, p. 22). Por outro lado, a humanidade se deve à cultura (INGOLD, 1994, p. 22). A cultura é a responsável por criar a identidade do ser humano, não como um organismo biológica, mas como sujeito moral (INGOLD, 1994, p. 22). A condição da pessoa é inseparável do pertencimento a uma cultura, e, para se existir enquanto ser humano, é necessário existir como pessoa (INGOLD, 1994, p. 22).

Levando-se em conta o que foi observado, a condição de se ser humano está presente tanto na existência como integrante de uma espécie – no caso, a humana – e todas as consequências biológicas e naturais decorrentes desse pertencimento, quanto na existência cultural, como ser integrante de um determinado grupo que possui práticas culturais próprias e relações específicas com o meio ambiente e com os demais seres.

Nessa ordem de ideias, a única maneira de fazer justiça tanto à natureza quanto ao homem é afirmando, simultaneamente, suas semelhanças e diferenças (OST, 1995, p. 211). O ser humano é uma parte natural – animal – semelhante à natureza e aos demais seres, porém também é uma parte cultural – humana. O ser humano é o único ser capaz de liberdade, de produzir sentidos; sujeito de história, autor e destinatário de normas (OST, 1995, p. 211). Apesar de a natureza ser capaz de assegurar condições diárias de sobrevivência para o ser humano, não deixa de ser, contudo, estranha a ele (OST, 1995, p. 211).

A natureza não é um objeto51, corolário do dualismo ontológico típico da ideologia moderna (DESCOLA, 1999, p. 120) e tampouco é um sujeito, resultante das ideias desenvolvidas no monismo da deep ecology52. Para François Ost (1995, p. 273), a natureza é um projeto. O projeto não rejeita nem o sujeito, nem o objeto; pelo contrário, ele os pressupõe e os relaciona (OST, 1995, p. 273). Um elemento é aberto ao outro, sem, no entanto, confundirem-se e descaracterizarem-se (OST, 1995, p. 273). O importante no projeto é a relação – ou a tensão – que constitui o sujeito e o objeto, ou seja, o elo que os une. A essa rede de relações denomina-se “meio” (OST, 1995, p. 273).

A base do pensamento dialético consiste em os elementos distintos e mesmo os antagônicos possuírem uma parte que se liga, sem se confundir com as demais partes (OST, 1995, p. 282). Na dialética, um elemento não existe sem o outro, sendo que a distância que os separa é também o intervalo que os aproxima (OST, 1995, p. 282). O elemento “a” vai em direção ao elemento “b” e vice-versa, há relações estabelecidas que podem conduzir à troca de posições (OST, 1995, p. 282). Um elemento existe no outro e pelo outro, do mesmo modo que

51 Como desenvolvido no Capítulo 3 desta pesquisa. 52 Como desenvolvido na seção 6.1 desta pesquisa.

a morte trabalha a vida e a vida surge da morte (OST, 1995, p. 283). O pensamento dialético diz respeito a distinguir sem separar e a ligar sem confundir (OST, 1995, p. 283).

No que concerne às relações entre ser humano e natureza, é preciso pensar aquele dentro e fora desta (OST, 1995, p. 283). Se o homem se refere à natureza, é porque ele próprio é natureza; se a natureza se cultivou e se desenvolveu, é porque ela própria é a hominização (OST, 1995, p. 284). Ser humano e natureza se afetam e se modificam o tempo todo (OST, 1995, p. 284).

É próprio da dialética haver retornos paradoxais, em que “elos estranhos” ou “hierarquias entrecruzadas” aconteçam, ou seja, o inferior comanda e condiciona o superior (OST, 1995, p. 284). É fato que o homem se situa em um metanível em relação aos demais seres, podendo domá-los, utilizá-los, protegê-los e modificar suas estruturas funcionais; não se deduz, contudo, que a relação que possui com esses outros seres foi rompida e que se encontra tão distanciado deles, a ponto de os subjugar (OST, 1995, p. 284). Acontece o contrário, o homem não pode sobreviver sem o mundo natural, da matéria e sem os demais seres que o habitam; esses, no entanto, podem sobreviver sem o homem (OST, 1995, p. 284).

O ser humano é sujeito à necessidade na condição de matéria viva, no entanto é capaz de transcender, dar sentindo à sua existência (OST, 1995, p. 285). Em outras palavras, o ser humano possui determinações naturais, como qualquer outro animal, contudo, torna-se, ao menos parcialmente, livre, por meio dos sentidos (OST, 1995, p. 285). O ser humano é autônomo, porém, simultaneamente, ele é dependente, de maneira integral, de seu ambiente – o meio natural – para garantir a energia vital necessária (OST, 1995, p. 285).

Uma das importantes consequências dessa concepção dialética é a historicidade da relação entre o ser humano e a natureza. Em relação à historicidade do homem e das sociedades, é previsível que civilizações e impérios emerjam e desapareçam; no entanto, a historicidade da natureza é recente (OST, 1995, p. 286). A descoberta da fragilidade da vida, que é uma ínfima partícula de natureza, que se desenvolveu na superfície de um planeta minúsculo no universo, foi base da consciência ecológica atual (OST, 1995, p. 286). A natureza não é mais dada, dotada de um equilíbrio ideal e intangível; antes, ela é frágil e precária, sendo que todas as relações são milagrosas, visto que são altamente improváveis (OST, 1995, p. 286). A natureza é uma pequena ilha entre o fogo termodinâmico cósmico e o gelo noturno (OST, 1995, p. 286). Essa historicidade da natureza é dialeticamente ligada ao comportamento da espécie humana que é, simultaneamente, seu produto e seu mais imprevisível agente (OST, 1995, p. 286).

Outra consequência dessa relação dialética estabelecida é a interação entre o observador e o observado (OST, 1995, p. 287). A inteligência da natureza passa pela inteligência do ser

humano, ou seja, não é possível ter acesso à primeira natureza53, o que se tem são representações

criadas pelo ser humano, e, ao contrário do que pressupõe o pensamento cartesiano, não é possível isolar o sujeito pensante e atuante do objeto estudado (OST, 1995, p. 286). Tanto o objeto quanto o pesquisador têm uma parte ligada e é mais urgente pensar nas suas interações do que os estudar isoladamente (OST, 1995, p. 287). O ser humano, no entanto, não se contenta apenas em observar, conhecer e compreender, ele é um ser atuante (OST, 1995, p. 287). O conhecimento é a base para a ação e a ação modifica constantemente o sistema estudado (OST, 1995, p. 287).

O instrumento metodológico dessa relação dialética, para François Ost (1995, p. 288), seria o retorno do terceiro excluído pela lógica clássica. Há três princípios da identidade: “a” é igual “a”; o da não contradição, no qual “a” não é não “a”; e o terceiro excluído – ou “a”, ou não “a”. A dialética é a ideia de que o não “a” trabalha desde sempre a identidade de “a” (OST, 1995, p. 288). Desse modo, com o retorno do terceiro, as identidades se abrem às diferenças e são as diferenças que fazem as identidades existirem, possibilitando o movimento, a história e a vida (OST, 1995, p. 288).

No que concerne à relação entre o ser humano e a natureza, o retorno desse terceiro excluído estaria no meio. A ideia de meio é mais acertada do que a ideia de ambiente, isso porque nessa última há a pressuposição de um ponto central – que é o homem – rodeado por qualquer coisa, prevalecendo, assim, uma concepção antropocêntrica e unilateral (OST, 1995, p. 288). O meio, por outro lado, é o que fica entre as coisas e as engloba, pode ser constituído e pensado tanto a partir do homem, quanto a partir da natureza (OST, 1995, p. 288). Esse meio é natural e cultural; subjetivo e objetivo; individual e coletivo, isto é, possui uma natureza antidualista e antimonista (OST, 1995, p. 288).

Figura 3: o meio

Fonte: elaborada pela autora (2019).

53 Como visto na seção 6.2.1.

A teoria da dialética do meio contém igualmente as ideias do limite e do vínculo – cada termo existe em virtude do outro, ou seja, homem e natureza coexistem (OST, 1995, p. 289). É prejudicial ilimitá-los ou hipertrofiá-los, tomando os termos isoladamente, tendo em vista que a existência de ambos resulta de suas interações e não da ilimitação ou hipertrofiação de um deles (OST, 1995, p. 289). Nesse sentido, o meio justo seria a porção em que há uma utilização razoável e equitativa desse meio (OST, 1995, p. 289).

De acordo com essa teoria, a relação entre homem e natureza é a relação do homem consigo próprio. Não há o homem de um lado e a natureza de outro lado; é no interior de cada elemento que estão as diferenças e identidades (OST, 1995, p. 292). O homem é matéria, é vida e é sentido, capaz de reprodução e de significação da natureza e da cultura (OST, 1995, p. 292). Do mesmo modo, o mundo está no homem e o homem está no mundo, não sendo possível que esse se desligue do biológico, nem do animal (OST, 1995, p. 293).

O ser humano é duplamente enraizado no cosmo físico e na ordem do vivo, tendo se destacado deles duplamente (OST, 1995, p. 294). Sincronicamente, é estranho a esses níveis do cosmo físico e solidário a eles (OST, 1995, p. 294). O homem tem uma forma única de habitar o mundo, conseguindo transpor em palavras o seu habitat e o seu vínculo com o natural (OST, 1995, p. 293). Por serem organismos vivos e autônomos, seres capazes de linguagem e razão, os seres humanos se tornam estranhos a este ambiente que os constitui (OST, 1995, p. 293). Não se pode, no entanto, dissociar um ser autônomo de seu habitat cosmofísico e biológico, esse habitat está no ser autônomo, sem que esse ser autônomo deixe de ser autônomo (OST, 1995, p. 293).

Nessa ordem de ideias, o ser humano é agente geológico, ator climático, emissor geoquímico; ele perturba e influência tudo, manipulando, pressionando, produzindo, arando (OST, 1995, p. 297). A história, no entanto, relegou a natureza no horizonte de um passado volvido, sempre imóvel; as ciências naturais estudam e transcrevem uma natureza sem o homem; os fatos sociais se explicam exclusivamente pelos fatos sociais (OST, 1995, p. 298). Essas exclusões são próprias do sistema-mundo moderno (WALLERSTEIN, 2007, p. 80). Para que esse funcione, é necessário uma estrutura cultural-intelectual que se baseia em uma estrutura do saber, que se dá em uma divisão epistemológica entre as duas culturas: de um lado está a ciência, que estuda e analisa os métodos, hipóteses e verdades (WALLERSTEIN, 2007, p. 98), e de outro lado estão as humanidades, responsáveis pela percepção analítica, sensibilidades e hermenêutica (WALLERSTEIN, 2007, p. 98). Para François Ost (1995, p. 298), é necessária a interdisciplinaridade, ou seja, é necessário que os estudos dos modelos

naturais se tornem mais complexos, incluindo os reflexos sociais e políticos, do mesmo modo que é necessário incluir os representantes naturais no âmbito dos estudos sociais.

Tendo em vista os aspectos abordados, restringir-se apenas ao limite da técnica é transformar a natureza em mercadoria a ser consumida, caracterizando uma visão egoísta (OST, 1995, p. 233). De igual forma, reduzir o homem a apenas o limite da natureza é uma posição ascética de renúncia a todos os conhecimentos e avanços gerados pelos seres humanos (OST, 1995, p. 233). Mais importante do que a arrogante pretensão de se regulamentar a natureza – é arrogante porque ela é escapável, invencível e incontrolável, sendo suas sanções severas – é regulamentar a relação do ser humano com a natureza e os modos de acesso a ela. Isso equivale a dizer que é mais importante proteger o homem dele próprio, do que instituir normas para a natureza (OST, 1995, p. 234).