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A Tecno-Ciência Moderna como Zeitgeist Contemporâneo

Da Tecno-Ciência Moderna ao Linguistic Turn do Positivismo Lógico

1.1. A Tecno-Ciência Moderna como Zeitgeist Contemporâneo

Com o desenrolar da modernidade, a ciência e a técnica ganharam uma nova visibilidade académica. O desenvolvimento destes domínios proporcionou-lhes uma extensão até então nunca alcançada pelos restantes âmbitos do saber. O progresso do conhecimento científico foi potenciado como nunca antes, sobretudo graças às novas técnicas e tecnologias industriais que proporcionaram as condições necessárias para a exploração de domínios do universo até antes desconhecidos ou até mesmo inalcançáveis para o ser humano. Do mesmo modo, e no que à vida quotidiana diz respeito, o séc. XX mostra-se também como uma época sem precedentes, uma vez que a produção industrial veio estabelecer um contexto de existência onde a luta pela sobrevivência passou a ser menos dorial quando comparada com aquela que foi vivenciada pela humanidade ao longo de épocas anteriores. É assim, enquanto herdeiro da revolução industrial, que o séc. XX se apresenta como a evidência histórica do poder que subjaz ao uso da ciência e técnica modernas.

A interrelação entre a ciência e a técnica constitui por essa razão um dos elementos mais importantes que vieram estabelecer a base necessária para o salto evolutivo que se manifestou na cultura ocidental ao longo do séc. XX.7 A medicina,

enquanto um de entre vários âmbitos académicos que se edificam sobre a racionalidade técnico-científica, é disso um claro exemplo. O seu drástico desenvolvimento ao longo deste período da história não teria sido possível sem a aliança dos conhecimentos da biologia moderna com as novas tecnologias criadas dentro do contexto da segunda revolução industrial.8 Do mesmo modo, a Física veio ganhar um alcance prático até

então nunca pensado pelos seus teóricos. A diversificação das vias de comunicação, o domínio da energia elétrica, atómica, assim como a exploração em massa dos recursos naturais do planeta, não teria sido possível sem a aliança que se estabeleceu entre a técnica industrial e a física moderna (Cf., CARDWELL, 1994, pp. 334-389).

7 Não se pretende aqui de qualquer forma menosprezar o contributo que foi proporcionado pelo contexto

político e sócio-cultural desta época. No entanto, é importante sublinhar que este mesmo contexto foi também fortemente influenciado pelo paradigma iluminista que coloca a razão no núcleo do zeitgeist da modernidade, e que lançou também as bases para o predomínio da tecno-ciência moderna.

8 Veja-se a título de exemplo o caso da implementação de desinfetantes industriais em hospitais para

minimizar a contaminação dos pacientes por germes. Implementação que foi pela primeira vez promovida por Joseph Lister a partir dos trabalhos de Pasteur ao longo da primeira metade do séc. XX. Poderia ainda ser referido o sucesso do transplante de orgãos vivos no séc. XX, nomeadamente no que diz respeito à importância que tiveram para tal sucesso o desenvolvimento de invenções tais como a bomba de infusão de Carrel-Lindberg (1930), sem a qual Christiaan Barnard não teria conseguido efetuar o primeiro transplante de coração bem-sucedido em 1967. Cf. CARDWELL, 1994, pp. 331-333. A este respeito veja-se também FRAZIER, O.H., 2004.

Há, no entanto, que sublinhar que nenhuma interpretação fiel de uma época da história da humanidade pode ser analisada apenas a partir da perspetiva que mostra os seus desenvolvimentos benévolos. Mas mesmo no que ao reverso da medalha diz respeito, o séc. XX continua ainda a mostrar-se como uma das épocas que mais marcada foi pela influência da ciência e da técnica modernas. A primeira e segunda guerras mundiais são disso um dos melhores exemplos. Com o advento do mundo industrializado as armas mudaram, e com elas também o próprio conceito de guerra. Com a implementação generalizada da racionalidade técnico-científica possibilitou-se o contexto de produtividade industrial necessário para a produção em massa de armamento cada vez mais poderoso e eficiente. Para além disso, o desenvolvimento industrial proporcionou também as condições para uma guerra onde o inimigo, antes bem demarcado como o militar presente no teatro de conflito, passou a ser constituído por qualquer cidadão capaz de proporcionar, através da sua mão de obra, o trabalho necessário para a produção industrial responsável pelo armamento e pelos bens necessários para a frente de combate. Com esta transformação, os alvos a abater nas duas grandes guerras do séc. XX passaram a ser, não só, militares, i.e., as colunas armadas, os armazéns militares, as linhas de fornecimento de bens para a frente de combate, mas também as próprias fábricas civis que são responsáveis pela produção dos materiais necessários para a produção do armamento, vestuário, e dos restantes bens de consumo utilizados pelo exército que se encontra em batalha (Cf., CARDWELL, Op.

Cit., pp. 389-394).

O predomínio histórico da ciência e técnica modernas teve também o seu reflexo no pensamento filosófico que foi desenvolvido ao longo da modernidade tardia. Logo no início de O Eclipse da Razão (1947), Max Horkheimer, na esteira já aberta por Max Weber, vem reforçar esta ideia ao procurar sublinhar como o conceito de «razão» se veio transformar ao longo da história, culminando na modernidade com a sua configuração técnico-instrumental. De acordo com Horkheimer, com a modernidade, a racionalidade fica então subjugada a um papel de mediação, i.e., transformou-se num

medium orientado para o alcance dos fins determinados pelos critérios subjetivos que

surgem dissimulados como técnico-científicos. No contexto da modernidade técnica, e segundo as palavras do próprio Horkheimer, «a razão tornou-se um instrumento (…) completamente subordinada ao processo social. (Cit., HORKHEIMER, 1947, p. 27)» Com o texto Técnica e Ciência como Ideologia (1968), Jürgen Habermas, na senda de Max Weber e Herbert Marcuse, procura também demonstrar como a «racionalidade técnica» tem vindo a determinar o funcionamento das diversas estruturas que compõem

o contexto sócio-cultural da modernidade tardia. De acordo com o autor, com o imperar da «racionalidade» técnico-científica no contexto histórico da modernidade, os domínios sociais nos quais deveria prevalecer a comunicação intersubjetiva — e que Habermas vem denominar como domínios comunicativos de «interação» — têm vindo a ser determinados de acordo com os pressupostos da «racionalidade técnica» que caracteriza a comunicação que se desenvolve em contextos comunicativos de «trabalho». Por esta via, a «racionalidade» que subjaz à técnica e à ciência modernas, tem vindo a mostrar-se como um elemento histórico, como o paradigma que caracteriza a modernidade tardia, e pelo qual se tem vindo a determinar todo o pensamento que é desenvolvido nesta época da história da humanidade (Cf., HABERMAS, 1968, pp. 45- 92).

Porém, esta constatação do predomínio moderno da «racionalidade» técnico- científica que é feita na proposta defendida por Jürgen Habermas, não nos remete diretamente para a origens da influência que esta tem vindo a exercer sobre a filosofia. É só com um exercício reflexivo, capaz de retornar aos primórdios do pensamento moderno, onde podem encontrar-se as principais raízes da influência que a aliança entre a técnica e a ciência veio exercer sobre os sistemas filosóficos da modernidade — tal como se pode efetivamente verificar com uma atenta análise do impacto histórico que O

Discurso do Método (1637) teve sobre toda a filosofia subsequente.9

Immanuel Kant, enquanto autor expoente da filosofia desenvolvida dentro do contexto iluminista, foi também um pensador fortemente influenciado pela racionalidade inerente à tecno-ciência moderna, sobretudo pela via da física newtoniana. Com a sua Crítica da Razão Pura (1787), Kant procurou compreender quais são as «condições de possibilidade» para a produção de conhecimento, postulando também neste texto que o saber da filosofia, do mesmo modo que o saber das ciências exatas, deve ser guiado de acordo com pressupostos epistemológicos claros e objetivos (Cf., KANT, 1787). A delimitação do conhecimento que é demarcada pelo «juízo sintético a

priori» kantiano, veio por essa razão colocar em questão uma grande parte da tradição

9 O intuito cartesiano fundamental que se desenha com O Discurso do Método, consiste numa tentativa de

encontrar para a filosofia uma metodologia que, à semelhança de âmbitos do saber tais como a Matemática ou a Geometria, pudesse garantir resultados concretos; de garantir à Filosofia a objetividade que é característica dessas ciências exatas. O «método», tal como é originalmente concebido por Descartes, pode por isso ser interpretado como uma das primeiras instrumentalizações do pensamento filosófico. Mais que uma reflexão livre e desinteressada acerca do mundo, o pensamento filosófico é tomado em Descartes como um «meio», i.e., como o exercício cético de aplicação da «dúvida metódica», para o alcance de um «fim», i.e., a «evidência», a «verdade». Com esta proposta, Descartes inaugura assim a modernidade como um problema filosófico com o qual se irão debater diversos dos autores, de entre os quais se destaca aqui, e.g., Martin Heidegger. Cf. DESCARTES, 1637. Acerca do contributo cartesiano para a modernidade veja-se também BORGES-DUARTE, 1998, pp. 507-524.

filosófica que foi desenvolvida até ao séc. XVIII, delineando simultaneamente novos contornos para a reflexão filosófica que foi desenvolvida posteriormente. Neste sentido, e tal como sublinha Alexandre Fradique Morujão no seu prefácio à tradução portuguesa do magnum opus kantiano:

«A revolução operada no campo do saber graças à qual foi possível a constituição de uma nova ciência da natureza, consiste, para Kant, em que a natureza não se encontra dada como um livro onde apenas bastará ler. A ciência constitui-se e desenvolve-se por um projecto adequado, que nos torne possível interrogar a natureza e forçá-la a uma resposta. Algo de semelhante tem que se operar em filosofia para esta se colocar no caminho seguro da ciência, para obter no seu domínio resultados tão certos como os obtidos nas diferentes disciplinas científicas. (Cit., MORUJÃO, 2001, p. X)»10

Um exemplo da influência da crítica kantiana pode ser desde logo encontrado na génese das «ciências do espírito» («Geisteswissenschaften») que foram sendo construídas ao longo do séc. XIX. Os resultados obtidos pelas ciências exatas ao longo da segunda metade desse período (assim como na primeira metade do séc. XX), mostraram-se aliciantes para aqueles que se ocupavam com as temáticas do humanismo. Assim seduzidos pela objetividade prática dos resultados alcançados através das técnicas de investigação em uso nas ciências exatas, novos âmbitos de conhecimento começaram a emergir no mundo académico, deslocando o questionamento filosófico tradicional para um domínio secundário na construção da investigação desenvolvida em torno de alguns dos temas clássicos com os quais a filosofia se tinha vindo a ocupar ao longo de épocas anteriores. De acordo com a orientação técnico-científica do conhecimento que dominou o academismo do final do séc. XIX e início do séc. XX, a filosofia viu-se então confrontada com um novo desafio: permanecer fiel à sua tradição e correr o risco de se transformar num saber secundário no contexto académico da época, ou seguir a tendência generalizada, adotando uma metodologia própria, concreta, que a oriente de encontro com resultados objetivos, empiricamente mensuráveis (Cf. HORKHEIMER, Op. Cit., pp. 24-43).11

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