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Os Fundamentos Humanistas da Hermenêutica em Friederich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey

A Hermenêutica Contemporânea como Esforço de Revitalização do Humanismo

2.2. Os Fundamentos Humanistas da Hermenêutica em Friederich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey

A tradição hermenêutica germânica, numa primeira fase, apresenta-se também em consonância com esta orientação técnico-metodológica que caracteriza o contexto académico positivista.21 Na sua raíz primordial, a hermenêutica filosófica de Friederich

Schleiermacher mostra-se como uma proposta técnico-metodológica que procura garantir a melhor interpretação possível dos conteúdos inerentes aos textos filosóficos. No entanto, esta é uma proposta que se afasta das tendências reducionistas características das técnicas que são usadas pelo Positivismo Lógico e pelo Estruturalismo, visto não descartar dos seus horizontes a dimensão subjetiva que a humanidade imprime no seu uso da linguagem. Antes pelo contrário, na tradição da hermenêutica filosófica que é iniciada por Schleiermacher, essa subjetividade inerente à linguagem é tomada como uma das dimensões mais fundamentais do conhecimento que através dela se pretende alcançar (Cf., BOWIE, 1998, pp. xii-xix).

De acordo com Schleiermacher, o processo interpretativo apresenta-se na sua essência como um esforço de reconstrução dos processos intelectuais que levaram um

21 Esta referência a uma primeira fase da Hermenêutica é aqui introduzida à luz da divisão que Josef

Bleicher faz deste âmbito disciplinar. Segundo Bleicher, a Hermenêutica pode dividir-se em três vertentes. A primeira diz respeito à hermenêutica metodológica, que o autor designa de «teoria hermenêutica». Esta ocupa-se fundamentalmente com os processos metodológicos da interpretação. A segunda diz respeito à «filosofia hermenêutica», que se ocupa das propostas hermenêuticas de orientação ontológica que são avançadas por autores tais como Martin Heidegger ou Hans-Georg Gadamer, onde a hermenêutica, mais que uma metodologia, é entendida como um sistema de pensamento que permite questionar diversos domínios da existência humana. A última divisão, que diz respeito à hermenêutica crítica, refere-se aos contributos pós-fenomenológicos para a Hermenêutica, onde poderá introduzir-se a «meta-hermenêutica». Cf. BLEICHER, 1980.

autor a construir o texto que é alvo de interpretação. Esta reconstrução é elaborada, e apenas tornada possível ao intérprete, por meio de uma metodologia própria que Schleiermacher denomina de «círculo hermenêutico». Uma técnica de interpretação circular que correlaciona dialecticamente as partes e o todo que compõem um texto. Esta técnica tem em vista a «compreensão»22 do sentido do texto à luz das intenções

subjetivas do seu autor.23 Para Schleiermacher, com o «círculo hermenêutico» torna-se

possível ao intérprete «compreender o autor melhor do que este se compreendeu a si próprio» (Cit., SCHLEIERMACHER, Op. Cit., p. 228).24 Uma vez que o intérprete se

torna capaz de reconstruir os processos mentais do autor mediante a aplicação de uma dialética que se estabelece entre a «interpretação gramatical» do texto e o exercício de «interpretação psicológica», que o leva ao encontro do caráter subjetivo do mesmo, i.e., dos processos mentais que nele foram impressos pelo seu autor. Em suma, com o «círculo hermenêutico» o intérprete procura, através do seu próprio intelecto, reconstruir as intenções subjetivas que moveram o autor, procurando sempre determinar a dimensão intelectual subjetiva que assim está inscrita no texto (Cf., SCHLEIERMACHER, Op. Cit., pp. 30-157). Tal como sublinha Richard E. Palmer a respeito de Schleiermacher:

«O intérprete compreende a individualidade do autor relativamente ao geral mas compreende-a também de um modo positivo, quase de um modo directo e intuitivo. Tal como o círculo hermenêutico envolve a parte e o todo, a interpretação gramatical e psicológica como uma unidade, envolve o específico e o geral; este último tipo de interpretação é geral e limitativo, bem como individual e positivo. A interpretação gramatical mostra-nos a obra na sua relação com a língua, tanto na estrutura das frases como nas partes interactuantes de uma obra e também com outras obras do mesmo tipo literário; assim, podemos ver o princípio das partes e do todo, em acção na interpretação gramatical. De igual modo, a individualidade do autor e da obra têm que ser vistas no

22 O conceito de «compreensão» em Schleiermacher encontra-se diretamente relacionado com a

capacidade do intérprete de alcançar a realidade interna do outro, neste caso do autor do texto a ser interpretado. Cf., PALMER, 1969, pp. 91-103; SCHLEIERMACHER, 1838, pp. 9-11.

23 De acordo com esta proposta metodológica avançada por Schleiermacher, a interpretação de um texto

necessita, em primeiro lugar, de partir de uma familiaridade prévia do intérprete com os conteúdos da obra a interpretar — e.g., o tema que o autor trabalha no texto, a corrente de pensamento onde se insere, etc. —, uma vez que a interpretação, assim como a «compreensão» por ela almejada, necessitam de um conhecimento prévio que lhes possa abrir o caminho. É este conhecimento prévio que irá delimitar a ideia — ainda que preliminar — do todo que irá subsequentemente orientar a interpretação das partes do texto que, por seu turno, irão complementar a compreensão da ideia do todo que irá, da mesma forma, facilitar cada vez mais a interpretação das restantes partes suas constituintes. A «compreensão» de um texto, tal como esta é prefigurada no pensamento de Schleiermacher, é tornada possível por meio da aplicação desta técnica de interpretação circular que se estabelece entre as partes e o todo do texto e que vai ao encontro da subjetividade nele inscrita pelo seu autor. Cf., PALMER, Op. Cit, pp. 91-103.

24 “To this also belongs understanding the writer better than he understands himself.” (Tradução da nossa

contexto dos factos mais amplos da sua vida, contrastando com outras vidas e com outras obras. O princípio de interacção e de esclarecimento recíproco da parte e do todo é essencial para os dois aspectos da interpretação. (Cit., PALMER, Op. Cit., pp. 95-96)»

Na proposta de Schleiermacher desenha-se por esta razão uma técnica que, ao contrário daquela que é proposta pelo Positivismo Lógico e pelo Estruturalismo, procura ir ao encontro da dimensão subjetiva do intelecto humano, demarcando-se assim da tendência reducionista que se verifica patente nas propostas técnico- metodológicas defendidas por essas tradições. Porém, a proposta de Schleiermacher é ainda limitada a um domínio de investigação do humanismo muito particular — o do texto filosófico —, sendo na perspetiva historicista de Wilhelm Dilthey onde pela primeira vez se irá apresentar a Hermenêutica como técnica e fundamentação epistemológica de toda a investigação que é desenvolvida pelas «ciências do espírito».

Dilthey apresenta-se por isso como um pensador cuja orientação intelectual se encontra ainda em consonância com a pretensão positivista de fundamentar epistemologicamente um âmbito de estudo técnico-científico do humanismo que, embora procure afastar-se das tendências metafísicas do pensamento filosófico tradicional, no entanto se demarca das restantes correntes que seguem esta linha, ao rejeitar qualquer proposta que procure edificar as «ciências do espírito» sob os pressupostos técnico-metodológicos das ciências exatas (Cf., DILTHEY, 1911, pp. 15- 23). A proposta hermenêutica de Dilthey pretende por isso fornecer às «ciências do espírito» uma abordagem original, própria à sua investigação, uma vez que tem em conta a dimensão subjetiva, e sobretudo histórica, do ser humano e que, por essa razão, se mostra mais adequada às suas características mais fundamentais. Nas palavras de Dilthey:

«O método só pode, portanto, ser o seguinte: busca das conexões, etc. Sua suplementação

como interpretação.

Decurso do conhecido para o desconhecido, isto é, dos factos históricos para a conexão neles ínsita, na sua legalidade. (Cit., DILTHEY, 1911, p. 43)»

Ou ainda, tal como o descreve Richard E. Palmer:

«O projecto de formular uma metodologia adequada às ciências que se centram na compreensão das expressões humanas — sociais e artísticas — é primeiramente encarado por Dilthey no contexto de uma necessidade de abandonar a perspectiva reducionista e

mecanicista das ciências naturais, e de encontrar uma abordagem adequada à plenitude dos fenómenos. (Cit. PALMER, Op. Cit., pp. 106-107)»

Mais que uma metodologia, Dilthey procura apresentar com a sua proposta uma fundamentação segura para as «ciências do espírito» que, ao mesmo tempo que lhes pretende proporcionar o reconhecimento e autonomia académica que é por elas almejado, as distingue das ciências naturais e exatas através da demarcação das características particulares inerentes ao estudo do seu objeto: a humanidade. A «vivência» («Erlebnis») ou, noutros termos, a «experiência interior vivida» pelo ser humano, constitui-se para Dilthey como o principal domínio sobre o qual se deverá debruçar a investigação humanista. Por outras palavras, Dilthey considera que o estudo do humano deve ser construído, em primeiro lugar, a partir de uma «compreensão»25 da

sua interioridade, pois é na «vivência» do mundo que é experimentada pelo indivíduo,

i.e., na visão subjetiva que cada ser humano elabora do mundo que o rodeia, onde se

desenham os motivos que orientam as suas «expressões»; onde se encontram os fundamentos para os factos externos que acerca dele podem ser — posteriormente — analisados de forma objetiva (Cf., DILTHEY, 1910, pp. 154-159). Tal como Dilthey o exemplifica com o caso da «ação»:

«Uma ação não brota de uma intenção de comunicar; no entanto, o propósito com o qual se relaciona encontra-se nela contido. Existe uma relação entre uma ação e algum conteúdo mental que nos permite construir inferências prováveis. Mas é para tal necessário distinguir o estado de espírito que produziu a ação pela qual se expressa das circunstâncias da vida pelas quais ela é condicionada. A ação, pela força de um motivo decisivo, afasta-se da plenitude da vida demonstrando-a num só sentido. Não importa o quanto possa ser acerca dela considerado, ela expressa apenas uma parte da nossa natureza. Ela vem aniquilar potencialidades que subjazem a essa natureza. Desta forma, também a ação se separa do plano contextual da vida e, a não ser que seja acompanhada de uma explicação de como as circunstâncias, os propósitos, os meios e o restante contexto da nossa vivência se encontram nela interligados, não é possível construir uma compreensão abrangente da vida interior que lhe deu origem. (Cit., DILTHEY, 1910, p. 153)»26

25 Para Dilthey, o conceito de «compreensão» desenvolve-se a partir da delimitação que dele é feito por

Schleiermacher. Por compreensão, Dilthey entende a «captação» que o intérprete faz da «expressão» do «mundo interior vivido» de um outro ser humano. Em suma, para Dilthey, a «compreensão» não se limita, por isso, só ao texto, mas é possível relativamente a qualquer tipo de «expressão» humana. Cf. DILTHEY, 1910, pp. 152-164. A este respeito veja-se também PALMER, Op. Cit., pp. 105-128; 135.

26 “An action does not spring from the intention to communicate; however, the purpose to which it is

related is contained in it. There is a regular relation between an action and some mental content which allows us to make probable inferences. But it is necessary to distinguish the state of mind which produced the action by which it is expressed form the circumstances of life by which it is conditioned. Action,

Na proposta de Dilthey, o objeto de investigação das «ciências do espírito» necessita de ser encarado a partir de uma abordagem técnico-metodológica substancialmente diferente daquela que é desenvolvida no contexto das ciências exatas. Pois ao contrário dos objetos que por estas são investigados, o ser humano destaca-se como um objeto de investigação diferente, uma vez que é possuidor de uma intencionalidade própria, fruto da atividade da sua vida interna, das suas «vivências». Os fundamentos das «expressões» humanas — sejam elas psicológicas, sociais, artísticas, políticas ou históricas —, não podem ser reduzidos ao enquadramento analítico do empiricamente observável, uma vez que tais fundamentos se encontram ocultos na «vivência» humana, por sua vez inacessível às abordagens técnico- instrumentais que são levadas a cabo pelas ciências exatas. Em Dilthey, a Hermenêutica constitui-se por essa razão como a única abordagem metodológica possível de ser aplicada nos estudos humanísticos, uma vez que o exercício de interpretação que lhe é inerente vai ao encontro desta intencionalidade característica das «vivências», na sua pretensão de construir uma «compreensão» objetiva do ser humano (Cf., GADAMER, Hans-Georg, 1960, pp. 225 -252.).27

De acordo com a conceptualização que Dilthey constrói das «ciências do espírito», depreende-se que a sua delimitação face às ciências naturais e exatas se determina a partir da abordagem que é feita ao seu objeto de investigação. Tal pressuposto implica, por sua vez, uma distinção que se estabelece também ao nível das metas almejadas por cada um destes domínios de investigação. A «explicação» apresenta-se aqui como um conceito radicalmente diferente da «compreensão». Pois enquanto as ciências naturais e exatas procuram fornecer uma «explicação» factual dos fenómenos que são alvo da sua investigação, na proposta de Dilthey, as «ciências do espírito» apresentam-se determinadas sob o intuito de alcançar uma «compreensão» das «expressões» humanas — que, no seu conjunto, delimitam a história —, e que apenas se torna possível por meio da interpretação (Cf., DILTHEY, 1910, pp. 161-164).

«Portanto, a diferença entre os estudos humanísticos e as ciências naturais, não está necessariamente nem num tipo de objecto diferente que os estudos humanísticos possam

through the power of a decisive motive, steps from the plenitude of life into one-sidedness. However much it may have been considered it expresses only a part of our nature. It annihilates potentialities which lie in that nature. So action, too, separates itself from the background of the context of life and, unless accompanied by an explanation of how the circumstances, purposes, means and context of life are linked together in it, allows no comprehensive account of the inner life from which it arose.” (Tradução da nossa

responsabilidade).

ter, nem num tipo diferente de percepção; a diferença essencial está no contexto dentro do qual o objecto percepcionado é compreendido. Os estudos humanísticos farão por vezes uso dos mesmos objectos ou «factos» das ciências da natureza, mas num contexto de relações diferentes, num contexto que inclui ou que refere uma experiência interna. A ausência da referência à experiência humana é característica das ciências naturais; a presença de uma referência à vida interior do homem está inevitavelmente presente nos estudos humanisticos. (Cit., PALMER, Op. Cit., p. 111)»

Mesmo prezando pela atenção à dimensão subjetiva do humano, há que sublinhar que a proposta hermenêutica de Dilthey procura possibilitar às «ciências do espírito» uma «compreensão» objetiva das «expressões» humanas. Objetividade que só se torna possível quando a subjetividade inerente às «vivências» é tomada em consideração como uma dimensão fundamental do humano. Neste sentido, torna-se necessário destacar que a crítica de Dilthey à tradição positivista — que marcou o desenvolvimento académico do saber na sua época —, se centra mais sobre a tendência redutora que se manifesta nos seus pressupostos técnico-metodológicos, que na cientificidade que por ela é pretendida. De acordo com a perspetiva de Dilthey, os estudos humanisticos, se se pretendem verdadeiramente científicos, têm obrigatoriamente que tomar a subjetividade humana como um elemento fundamental no desenvolvimento das suas investigações. Pois a «vivência» subjetiva é uma das dimensões mais características da humanidade, constituindo-se mesmo como uma das suas dimensões mais fundamentais, razão pela qual não pode ser metodologicamente suprimida de modo a facilitar o progresso da investigação das «ciências do espírito» (Cf., GADAMER, 1960, pp. 277-291).28

2.3. Os Fundamentos Humanistas da Hermenêutica Fenomenológica de Martin

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