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A Filosofia da Técnica das Humanidades como Exercício «Meta Hermenêutico»: Algumas Considerações Prévias

Da Fábrica à Internet: A Problematização Filosófica da Técnica e a sua Relação com o Séc

3.4. A Filosofia da Técnica das Humanidades como Exercício «Meta Hermenêutico»: Algumas Considerações Prévias

A reflexão que até aqui foi desenvolvida acerca da investigação que é feita em Filosofia da Técnica das Humanidades, veio destacar alguns dos pontos pelos quais as diversas propostas que aqui foram referidas se aproximam entre si. Logo desde o início deste capítulo, procurou-se destacar que todas as teorias que são desenvolvidas no contexto de investigação da Filosofia da Técnica das Humanidades, vêm delimitar uma abordagem ao tema da técnica que manifesta um tom mais critico relativamente à forma como os seus desenvolvimentos modernos podem ser pensados. Para além disso, e quando comparada com a abordagem que caracteriza a investigação desenvolvida no contexto da Filosofia da Técnica dos Engenheiros, a Filosofia da Técnica das Humanidades procura marcar também a sua distância ao posicionar-se como uma perspetiva hermenêutica que pode ser construída acerca do tema em questão. Tal como sublinha Mitcham:

«A palavra «hermenêutica» é referida neste contexto uma vez que a interpretação vem ocupar um papel central na reflexão humanista que aí se desenvolve. A hermenêutica, de acordo com as suas primeiras formulações (Schleiermacher e Dilthey), era uma tentativa de alcançar uma compreensão interpretativa por via das disciplinas humanistas, afastando-se assim da explicação lógica possibilitada pelas disciplinas científicas e tecnológicas. A hermenêutica, é um empreendimento interpretativo permeado por elementos pessoalmente, interpessoalemente, e historicamente condicionados, e por isso tenazmente articulados com um mundo humano de consensos intersubjetivos flutuantes. Uma forma de definir o projeto

técnico-científico moderno consiste em afirmar que assenta num acordo, firme mas estrito, sobre como se constrói a conceção limitada do entendimento que é conhecida como a explicação. A Filosofia da Técnica das Humanidades, com as suas interpretações e especulações, subsiste como uma conceção do mundo da vida que é simultaneamente diversa mas também frágil, e que se opõe à análise económica e à lógica utilitarista que é característica dos empreendimentos da Filosofia da Técnica que são levados a cabo sobretudo por engenheiros. (Cit., MITCHAM, 1994, p. 63)»105

É por esta via que em todas as propostas da Filosofia da Técnica das Humanidades que até aqui foram referidas, se torna possível compreender em que sentido são lançados alertas para uma necessária reflexão acerca dos impactos que a técnica moderna pode trazer para a humanidade, mas sobretudo para o humanismo. Tal como se veio destacar com Mumford, Ortega y Gasset, Jacques Ellul, e Hans Jonas, por ser fundamentalmente hermenêutica, a Filosofia da Técnica das Humanidades presta especial atenção ao modo como a técnica moderna influí sobre a conceção subjetiva que cada ser humano é capaz de fazer acerca do seu mundo. No entanto, e tal como se compreende da passagem de Carl Mitcham que foi citada, as propostas apresentadas como exemplos da investigação que caracteriza a Filosofia da Técnica das Humanidades partilham ainda de outros pressupostos sobre os quais é também importante refletir. Pois enquanto a abordagem analítica, que caracteriza a Filosofia da Técnica dos Engenheiros, se encontra fundamentalmente preocupada com a construção de uma reflexão acerca da técnica que permita abrir as vias para o seu progresso, a abordagem interpretativa, que caracteriza as propostas da Filosofia da Técnica das Humanidades, vem apresentar uma proposta que visa consciencializar criticamente a humanidade para as consequências de um avanço unilateral da tecnologia, usando a tradição humanista como pretexto.

Para diversos autores da Filosofia da Técnica dos Engenheiros, esta abordagem crítica que caracteriza as propostas que compõem a Filosofia da Técnica das Humanidades constitui-se, no seu âmago, como uma argumentação fundamentalmente

105 “The word “hermeneutics” comes into play in this context because of the central place interpretation

occupies in all such humanities reflection. Hermeneutics, in its original development (Schleiermacher and Dilthey), was an attempt to reach out for sympathetic understanding via humanities disciplines rather than for logical explanation via scientific and technological ones. The hermeneutic or interpretative enterprise is pervaded by personal, interpersonal, and historically conditioned elements, and thus tenuously articulated within a human world of fluctuating intersubjective consensus. One way to define the modern scientific-technological project is to say that it rests upon a firm but narrow agreement about how to construct that limited form of understanding known as explanation. Humanities philosophy of technology, in its interpretations and speculations, subsists within a diverse, but fragile lifeworld in opposition to the hard-edged presence of economic analysis and utilitarian logic characteristic of engineering emphases in the philosophy of technology.” (Tradução da nossa responsabilidade).

antitecnológica. Felizmente tal não se pode aqui considerar como o caso, pois embora as posições dos autores da Filosofia da Técnica das Humanidades que foram referidas ao longo do capítulo manifestem uma preocupação fundamental com o impacto que a técnica possui sobre o ser humano, elas não podem, contudo, ser definidas como propostas antitecnológicas. Na leitura que até aqui foi construída, é desde logo possível compreender que em nenhum destes autores se advoga uma rejeição do progresso social, cultural e existencial que é potenciado por via da técnica moderna. O que é efetivamente sublinhado em cada uma das suas propostas, diz sobretudo respeito à necessidade de refletir sobre as consequências que daí podem advir a longo prazo, de construir uma compreensão coerente acerca de todas as implicações que podem decorrer do constante recurso e implementação da técnica na modernidade, antes de apostar cegamente no paradigma da eficiência que determina a racionalidade do progresso que é por ela determinado (Cf., SANTOS, 2011, pp. 75-80). Em suma, a «meta- hermenêutica» que se pode compreender patente no contexto de investigação da Filosofia da Técnica das Humanidades, consiste por isso numa chamada de atenção para os perigos que podem advir da total objetividade que parece predominar no pensamento técnico que caracteriza a modernidade tardia. A crítica que é assim levantada consiste então num alerta para os elementos que potenciam a crise do humanismo, para as circunstâncias existenciais que advêm de uma conceção estritamente técnico-científica do mundo, mas sobretudo da humanidade (Cf., SANTOS, 2011, pp. 75-80). Trata-se de reforçar o alerta também já lançado por Edmund Husserl quando em A Crise das

Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental (1954) evidenciou como

«Meras ciências de factos vêm criar meros homens de factos. (Cit., HUSSERL, 1954, p. 6)».106 Tal como se poderá também compreender da leitura que José Santos faz acerca

da problematização fenomenológica da técnica em Hans Blumenberg:

«(...) o processo de “tecnicização” deve ser compreendido não a partir da demoníaca capacidade da técnica moderna para se instituir como “segunda natureza”, isto é, capaz não só de se implantar no mundo da vida mas de o “regular”, mas, antes de mais, como fenómeno estrutural no âmbito da relação da consciência ao mundo, ou seja, na perspectiva da intencionalidade. A tecnicização tem que ver com a capacidade ou, sobretudo, com a incapacidade que tem a consciência em preencher plenamente as suas intenções com

intuições correspondentes “adequadas”. (Cit., SANTOS, 2011, p. 77)»

106 “Merely fact-minded sciences make merely fact-minded people.” (Tradução da nossa

A crítica «meta-hermenêutica» da técnica moderna que se desenha nas propostas que compõem a Filosofia da Técnica das Humanidades mostra-se, nestas circunstâncias, bastante próxima da crítica que na tradição hermenêutica germânica se vem lançar à filosofia positivista que dominou a segunda metade do séc. XIX. Para além de partilhar da abordagem interpretativa ao seu objeto de estudo — procurando por essa via construir uma compreensão alargada daquilo que a técnica é enquanto conceito — a Filosofia da Técnica das Humanidades aproxima-se também da tradição hermenêutica na medida em que através da sua reflexão acerca da técnica se vem também clarificar a relação que o ser humano estabelece com o mundo no qual se encontra lançado, demonstrando dessa forma em que sentidos este mundo se encontra histórica e culturalmente determinado. Desta forma, na reflexão que se desenvolve em Filosofia da Técnica das Humanidades, do mesmo modo que na tradição hermenêutica, mais que uma reflexão acerca das implicações que a técnica moderna traz para o ser humano, reflete-se acerca do modo como este tem vindo a conceber tecnicamente o seu mundo, e de como esta conceção tem vindo a determinar todas as relações intersubjetivas que nele podem ser estabelecidas.

Neste sentido, mais do que partilhar da mesma abordagem metodológica, a Filosofia da Técnica das Humanidades e a Hermenêutica parecem também chegar às mesmas conclusões, sobretudo quando se tem em conta que em ambas as disciplinas se vem demonstrar em que sentidos a história e a tradição — na medida em que são, nesta época, tecnicamente determinadas — são capazes de influenciar o modo como o ser humano se concebe a si mesmo, assim como a sua relação com o seu mundo-em-torno (Cf., ROMELLE/SEVERO/FURIA, 2018, pp. 4-15). A própria filosofia, tal como se veio verificar com as suas reformulações positivistas e estruturalistas, ganhou com a modernidade uma orientação instrumental, constituindo-se como uma filosofia tecnicamente orientada, fruto do pensamento técnico-científico que predomina no contexto académico da modernidade tardia. Razão pela qual, no seguimento da chamada de atenção que é feita por Habermas, na filosofia se passou a evidenciar a necessidade de construir uma reflexão acerca dela própria, i.e., uma urgência de pensar acerca do modo como o pensamento filosófico, mais do que determinar, se encontra também ele próprio determinado pela época histórica na qual se desenvolve. Do mesmo modo que as mãos que se desenham a si próprias na famosa litografia de Escher — Drawing

Hands —, com a modernidade técnica, a filosofia viu a necessidade de refletir acerca de

si mesma, pois só por esta via se poderia manter fiel ao seu propósito, de demonstrar a sua relevância no contexto académico da época, e também poder abrir o caminho para o

seu posterior desenvolvimento. Tal capacidade de refletir criticamente acerca de si própria, apenas se tornou possível pela via da interpretação crítica, pela via do pensamento «meta-hermenêutico» que, tal como se procura aqui demonstrar, se manifesta como metodologia das propostas que compõem a Filosofia da Técnica das Humanidades. As mãos que se desenham uma à outra na litografia de Escher — e que são assim representadas como responsáveis pela sua mútua existência — surgem aqui como imagem representativa da reformulação «crítica» do «círculo hermenêutico» que está patente nas propostas que compõem da Filosofia da Técnica das Humanidades. Pois na medida em que reflete criticamente acerca do modo como os elementos de uma época histórica se mostram capazes de determinar o pensamento que nela é desenvolvido, a interpretação que possibilita esta «crítica» mostra-se também capaz de determinar o desenvolvimento desses mesmos elementos que vêm caracterizar a modernidade como a modernidade técnica que ela é.

Há, no entanto, várias perguntas que inevitavelmente se levantam, e sobre as quais é necessário refletir atentamente. De entre elas, a questão da determinação da origem da necessidade de pensar a técnica de acordo com esta perspetiva «meta-hermenêutica» mostra-se de especial pertinência. Pois se a Filosofia da Técnica das Humanidades se mostra como um contexto de investigação filosófica que apresenta uma posição mais crítica relativamente ao tema da técnica, é necessário compreender onde se encontra fundamentada a sua necessidade, de compreender o porquê que levou à emergência de tal crítica neste período histórico em particular.

Por diversas vezes foi sublinhado que este contexto de investigação que é representado pela Filosofia da Técnica das Humanidades pode ser compreendido como uma reação ou um complemento da investigação desenvolvida em Filosofia da Técnica dos Engenheiros. No entanto, tal proposta, embora correta, não pode ser tomada como uma resposta suficiente, sobretudo quando se tem em conta que o conceito de «técnica» — tanto na sua configuração tradicional como na moderna — se compreende como uma atividade que o ser humano leva a cabo. Neste sentido, e tal como o defende Mitcham, na medida em que a técnica moderna, mesmo quando é pensada como um conceito autónomo, se define como atividade humana, a Filosofia da Técnica das Humanidades possui uma precedência histórica, mas sobretudo ontológica, sobre a Filosofia da Técnica dos Engenheiros, visto que toma investigação da relação do ser humano com a técnica como o seu principal objeto de estudo (Cf., MITCHAM, 1994, pp. 88-93). Assim, e uma vez que deixa de se mostrar como uma antítese ou um complemento da Filosofia da Técnica dos Engenheiros, a questão que se vem levantar relativamente à

fundamentação da Filosofia da Técnica das Humanidades é por isso uma questão sobre o porquê do seu caráter «meta-hermenêutico», uma questão cuja resposta consiste em procurar compreender onde se fundamenta a necessidade de pensar criticamente o fenómeno da técnica moderna. A segunda parte desta investigação desenvolve-se por isso neste sentido, i.e., como uma procura dos fundamentos que criaram a necessidade histórica de elaborar uma crítica «meta-hermenêutica» da técnica moderna.

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