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Ontológico: Martin Heidegger e a Técnica enquanto Essência da Modernidade

5.1. O «Mal-Estar» na Cultura como Manifestação da Necessidade de uma Crítica da Modernidade Técnica

No sentido compreender quais os fundamentos que impulsionaram a necessidade que na Filosofia da Técnica das Humanidades se fez sentir de construir uma crítica «meta-hermenêutica» da modernidade, fez-se uma incursão pelas propostas de Oswald Spengler e de Sigmund Freud, prestando-se especial atenção à receção que é feita da crítica da cultura patente na «metapsicologia» freudiana a partir do trabalho de Herbert Marcuse e de Paul Ricoeur. No entanto, cada um dos principais pensadores aos quais se fez referência no capítulo anterior, desenvolve o seu trabalho individual por um caminho que lhe é próprio, e por essa razão também autónomo. Enquanto Oswald Spengler procura construir uma conceção da história da humanidade que assenta sobre um modelo «orgânico» que visa compreender o «espírito» das culturas que a compõem, Sigmund Freud procura com a sua proposta demonstrar como a dinâmica que se estabelece entre as «pulsões» que se manifestam no psiquismo humano, desempenha um papel de fundamental importância na constituição do «princípio de realidade» que guia a vida em sociedade no contexto da cultura ocidental moderna. Mesmo quando consideramos a receção que Herbert Marcuse e Paul Ricoeur fazem do trabalho de Freud — que, não obstante, exerceu uma poderosa influência sobre todo o pensamento que foi desenvolvido por ambos — verifica-se que esta receção é feita para, a partir dela, cada um poder construir uma filosofia que lhes é própria, e cujos propósitos fundamentais se afastam radicalmente dos intuitos originários de Sigmund Freud.

Assim, e ao ter em conta as determinações particulares de cada uma das propostas às quais foi feita referência ao longo do capítulo anterior, pode tornar-se um tanto difícil compreender em que sentido nelas se manifestam os fundamentos que levaram à emergência da crítica «meta-hemenêutica» da modernidade que aqui se procura evidenciar em primeiro lugar, e que se desenvolve nas investigações que compõem a Filosofia da Técnica das Humanidades, mas também numa grande parte das teorias que caracterizam a filosofia continental que foi desenvolvida na primeira e segunda metades do séc. XX.156 No entanto, ao longo de todo o capítulo antecedente, levou-se a cabo um

exercício interpretativo que procurou sobretudo demonstrar como em todas estas propostas se vem denunciar um problema existencial comum — e que pretende agora servir de base para a reflexão ainda a ser desenvolvida —, o do mal-estar generalizado

156 Tome-se, a título de exemplo, a popularidade alcançada pelo movimento pós-modernista na segunda

que se faz sentir neste período, e que em nenhuma outra época da história da filosofia se fez notar com tanta intensidade.157

Tanto na proposta de Oswald Spengler como na interpretação da cultura que é desenvolvida a partir da «metapsicologia» de Sigmund Freud, a vida quotidiana que se desenrola no contexto sócio-cultural que caracteriza a modernidade tardia, não se mostra em conformidade com as potencialidades que o desenvolvimento social por via da «racionalidade técnica» lhe é capaz de proporcionar. Nas propostas de ambos os autores denuncía-se uma frustração que é comum a todos os seres humanos, manifestando-se de forma demarcada na experiência que é feita da vida em sociedade que caracteriza este período; como uma insatisfação social partilhada que vem desembocar no sentimento de «mal-estar» generalizado que vem a ser evidenciado no trabalho de Freud. Em suma, em cada um dos autores que foram referenciados ao longo do capítulo antecedente, e partindo das fundamentações conceptuais particulares que caracterizam cada uma das suas propostas, veio denunciar-se um problema comum a toda a humanidade que compõe o contexto sócio-cultural da modernidade tardia. Um sentimento de desconforto existencial que é transversal a toda a cultura ocidental deste período da história, determinado sob o conceito de «desilusão» na proposta de Oswald Spengler, e sob o conceito de «mal-estar» na crítica da cultura que se encontra subjacente à vertente sócio-antropológica da «metapsicologia» de Sigmund Freud.

O impacto filosófico desta denúncia que Spengler e Freud fizeram acerca da modernidade técnica é desde logo demonstrado pela influência que ambos exerceram sobre todo o pensamento filosófico que lhes foi subsequente. Herbert Marcuse e Paul Ricoeur são um claro exemplo da influência da proposta freudiana, mas poderiam ainda destacar-se os nomes Martin Heidegger, Karl Jaspers, ou até mesmo Hans Jonas, como exemplos da influência que foi exercida por Oswald Spengler no contexto da filosofia continental contemporânea.

Considerando assim a extensão alcançada pela denúncia deste problema relativo ao «mal-estar», poder-se-á então também compreender em que medida é neste onde se encontra o fundamento que lança a crítica «meta-hermenêutica» da modernidade. Pois que foi a tomada de consciência de que há algo de errado na época, de que a vida humana não está a ser vivida em conformidade com todas as potencialidades que ao

157 Hans Blumenberg é um outro autor que vem relacionar a técnica moderna com o «mal-estar» que se

faz sentir neste período. No entanto, e ao contrário dos autores que até aqui foram referenciados (sobretudo no que diz respeito à abordagem aqui construída em torno de Sigmund Freud e Oswald Spengler), para Blumenberg é o «mal-estar» que se faz sentir na modernidade o principal impulsionador da técnica moderna e não o oposto Cf., BLUMENBERG, 1963, pp. 33-41. A este respeito veja-se também SANTOS, 2011, pp. 80-89.

longo deste período lhe foram abertas, aquilo que levou o pensamento filosófico a tentar compreender quais os elementos que levaram a humanidade de encontro com esta existência desconfortante. O sentimento que é assim partilhado por toda a cultura ocidental moderna é, em todos os sentidos, contrário às promessas que procuram justificar a imposição de restrições sociais em prol de um, cada vez maior, investimento na «racionalidade técnica». No entanto, é ainda por esta via que ela se encontra instituída como o novo paradigma do progresso sócio-cultural, contra o qual não parece haver qualquer alternativa racionalmente viável.

Há ainda que destacar que a grande maioria dos indicadores empíricos, pelos quais se poderá submeter este período histórico a uma análise objetiva, irão continuar a evidenciar como a sobrevivência humana é substancialmente mais fácil quando comparada com épocas anteriores. Sendo possível demonstrar mediante provas empíricas concretas como o progresso técnico-científico veio proporcionar as condições necessárias para o cumprimento de todas as necessidades humanas, assim como da facilitação das suas tarefas mais quotidianas. No entanto, mesmo neste contexto histórico marcado pela prevalência da ciência e técnica modernas, a «εὐδαιμονία» («eudaimonia») para a qual a humanidade desde sempre aspirou nunca pareceu tão distante. O «mal-estar» que é denunciado por Freud, assim como a «desilusão» que é evidenciada por Spengler, continuam a fazer-se sentir como nunca, visto que mesmo mediante o acesso a possibilidades tais como nunca antes lhe foram apresentadas, a humanidade parece ainda não ter conseguido encontrar a satisfação existencial pela qual anseia.

É então sobretudo graças à denuncia que está patente nas interpretações da cultura desenvolvidas pelos autores aos quais foi dado destaque, que o potencial inerente à «racionalidade técnica» acabou por demonstrar-se como ambivalente. Pois ao mesmo tempo que traz consigo um desenvolvimento exponencial das condições sociais e existenciais do ser humano, mostra-se também, e pela mesma via, como uma «ilusão» frustrante, como uma tomada de consciência de que mais do que o cumprimento das suas promessas, à «racionalidade técnica» — que se manifesta como principal característica de todo o pensamento desenvolvido nesta época em particular —, subjazem também implicações desumanizantes às quais não parece possível escapar. Com a crítica «meta-hermenêutica» que começa assim a desenhar-se a partir de Spengler, mas sobretudo, a partir do trabalho de Sigmund Freud, acaba também por se evidenciar um caráter ambivalente, «bidimensional», que está pressuposto na essência da técnica moderna. Assim sendo, a necessidade de construir uma reflexão aprofundada

acerca da sua essência, assim como das suas implicações no desenvolvimento do pensamento e da cultura nesta época histórica, é, mediante esta crítica, também potenciada. Pois, tal como se pode compreender das palavras do próprio Freud:

«A civilização deve ser então defendida contra o poder do indivíduo, e os seus regulamentos, instituições e poderes devem ser orientados de acordo com esta tarefa. Eles não devem ter apenas como objetivo uma certa distribuição da riqueza, mas também o de manter essa distribuição; de facto, eles devem promover tudo o que contribui para a conquista da natureza e para a produção de riqueza contra os impulsos hostis da humanidade. As criações humanas podem ser facilmente destruídas, mas a ciência e a técnica, pelas quais foram construídas, podem também ser usadas para a sua aniquilação. (Cit., FREUD, 1927, p. 6)»158

Poder-se-á, no entanto, objetar que, contrariamente a Spengler, a relação entre a técnica e o «mal-estar» cultural não chegou a ser constituída como um tema central do pensamento freudiano. No entanto, tal não quer, contudo, significar que esta não tenha deixado de desempenhar nele um papel fundamental, ainda que implícito. A importância desse papel torna-se sobretudo evidente quando se presta especial atenção ao modo como Freud vem compreender como os vários mecanismos de opressão «pulsional» pelos quais se constitui o «princípio de realidade» têm, nesta época, vindo a ser instituídos sob o subterfúgio que lhes é proporcionado pela «racionalidade técnica» (Cf., FREUD, 1927, pp. 5-9).159 Ao encontrar o seu fundamento em pressupostos

racionais, estes mecanismos vem assim sobrepor-se àqueles que eram estruturados de acordo com pressupostos autoritários — fornecidos pela religião, pelo poder monárquico, militar, etc. — que serviam de fundamento à instituição do opressor «princípio de realidade» nos contextos histórico-culturais que antecedem a modernidade técnica. Tal como se pode perceber do excerto de O Futuro de uma Ilusão (1927) atrás citado, sob o pretexto da racionalidade, os mesmos mecanismos que são instituídos no sentido de salvaguardar a coexistência humana num determinado contexto social, podem também vir a ser manipulados de tal forma que deles poderá também advir «a sua aniquilação» enquanto tal.

158 “Thus civilization has to be defended against the individual, and its regulations, institutions and

commands are directed to that task. They aim not only at effecting a certain distribution of wealth but at maintaining that distribution; indeed, they have to protect everything that contributes to the conquest of nature and the production of wealth against men’s hostile impulses. Human creations are easily destroyed, and science and technology, which have built them up, can also be used for their annihilation.” (Tradução da nossa responsabilidade).

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