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O Contexto e a Emergência da Reflexão Filosófica Acerca da Técnica

Da Fábrica à Internet: A Problematização Filosófica da Técnica e a sua Relação com o Séc

3.1. O Contexto e a Emergência da Reflexão Filosófica Acerca da Técnica

Logo no inicio do primeiro capítulo da investigação que aqui se desenvolve, procurou evidenciar-se como a técnica moderna se veio constituir como zeitgeist do séc. XX. Seria, contudo, ingénuo não reconhecer que existem muitas outras circunstâncias, eventos/acontecimentos que vieram marcar profundamente o desenvolvimento deste período na história da cultura ocidental, sobretudo no que diz respeito ao seu espectro político. No entanto, todos esses elementos que poderiam aqui ser destacados como fundamentais no desenrolar do séc. XX, encontram-se, de uma ou de outra forma, numa estreita relação com a técnica moderna e, em muitos aspetos, são mesmo por ela inteiramente determinados.54

Ainda no que diz respeito ao primeiro capítulo, procurou também destacar-se em que sentido a aliança que se veio estabelecer entre a técnica e a ciência moderna redefiniu radicalmente os horizontes do entendimento humano. O surgimento de novos âmbitos de investigação científica no contexto académico do séc. XIX e da primeira metade do séc. XX não teria sido possível sem as vias de desenvolvimento que foram abertas pela técnica industrial moderna. O próprio conceito de «conhecimento» foi alvo de uma redefinição, ganhando um sentido inteiramente diferente daquele que até então tinha vigorado. Tradicionalmente concebido à luz da conceção clássica de «sabedoria» — enquanto gnose eclética que reúne conhecimentos aprofundados acerca dos diversos temas e âmbitos sobre os quais pode recair a reflexão humana — o «conhecimento» passou a ser definido como o domínio especializado de um determinado tema ou objeto. A definição do conceito de «conhecimento» passou assim a ser construída a partir de uma delimitação técnica do entendimento, i.e., a partir da capacidade que o ser humano possui de encontrar os meios necessários para alcançar um determinado fim.

Nesta nova delimitação do saber por via da «racionalidade técnica», são os resultados que podem ser obtidos a partir da manipulação de um determinado objeto ou elemento aquilo que determina o desenvolvimento da investigação científica, assim como a sua relevância dentro do contexto académico deste período. As investigações que foram desenvolvidas em Física ao longo da primeira metade do séc. XX são um exemplo clássico desta orientação técnica do saber. Sobretudo quando se tem em conta como a aliança que neste âmbito disciplinar se estabeleceu entre a capacidade de instrumentalizar os elementos da natureza de acordo com a vontade humana —

54 José A. Bragança de Miranda apresenta com as suas investigações uma aprofundada reflexão acerca do

modo como a técnica moderna determinou a cultura ao longo do séc. XX. Cf., BRAGANÇA DE MIRANDA, 2002.

sobretudo no que diz respeito aos interesses militares de um estado-nação — veio proporcionar as condições necessárias para o desenvolvimento de novas tecnologias para a guerra, tal como se veio exemplificar com o caso da bomba-atómica.

«O duplo horror que associava ao nome de duas cidades japonesas passou para mim a significar um outro tipo de duplo horror: a tomada de consciência daquilo que os Estados Unidos eram capazes de fazer, o país que cinco anos antes me ofereceu a sua cidadania; e um terror nauseante que advinha do conhecimento da direção que todas as ciências naturais estavam a tomar. Nunca afastado de uma visão apocalíptica do mundo, eu vi o fim da essência da humanidade, um fim cada vez mais próximo, e até mesmo tornado possível graças à profissão à qual eu pertencia. Na minha perspetiva, todas as ciências naturais fazem parte de uma única, e se uma delas não pode advogar-se como inocente, nenhuma outra o poderá fazer. (Cit., CHARGAFF, 1978, p.3)»55

O relato de Erwin Chargaff acerca da sua experiência dos bombardeamentos das cidades Hiroshima e Nagasaki é uma evidência da tomada de consciência que a comunidade científica teve sobre o alcance das suas investigações. De que, na sequência da tecnificação generalizada do saber, o conhecimento científico, para além do seu progresso exponencial, veio também testemunhar aquela que Chargaff aqui enuncia como a «perda da sua inocência». No contexto da modernidade técnica, o investigador deixou de ser aquele que, através do seu intelecto, se mostra capaz de clarificar os segredos ocultos na natureza, tendo vindo a ser substituído por aquele que é capaz de instrumentalizá-la de acordo com os interesses políticos, sociais e económicos instituídos neste período. Com o decorrer da modernidade tardia, figura do cientista passou facilmente a confundir-se com a do engenheiro. E muito embora a grande maioria das ciências procure justificar as suas abordagens técnico-metodológicas sobre a objetividade dos resultados por elas obtidos, no decorrer desta época, cada um dos ramos pelos quais se desenvolve a ciência passou a ser valorizado, não pelo saber que é desinteressadamente por eles alcançado, mas pela capacidade que possuem de instrumentalizar os seus objetos de estudo em conformidade com os interesses sociais e políticos predominantes (Cf., STEINER, Op. Cit., pp. 13-32).

55 “The double horror of two Japanese city names grew for me into another kind of double horror: an

estranging awareness of what the United States was capable of, the country that five ears before had given me its citizenship; a nauseating terror of the direction in which the natural sciences were going. Never far from an apocalyptic vision of the world, I saw the end of the essence of mankind, and end brought nearer, or even made possible, by the profession to which I belonged. In my view, all natural sciences were as one; and if one science could no longer plead innocence, none could.” (Tradução da

No que diz respeito à filosofia do séc. XX, o impacto causado pela técnica moderna foi também sentido de forma profunda. O surgimento do Positivismo Lógico, enquanto tradição que procurou introduzir na filosofia as tendências metodológicas da investigação que são características da tecno-ciência moderna, assim como a sua influência sobre todo o pensamento ocidental subsequente, são disso uma forte evidência. Tal como se procurou destacar ao longo do primeiro capítulo, a ideia de transformar a abordagem filosófica de acordo com os pressupostos da objetividade que são inerentes à tecno-ciência moderna, levou vários pensadores a defender a necessidade de descartar vários problemas filosóficos tradicionais, reduzindo metodologicamente o âmbito da reflexão filosófica de acordo com os imperativos da objetividade e eficiência pressupostos pela racionalidade que caracteriza as técno- ciências. Como consequência, a conceção de «humanidade» que está patente na tradição positivista é também uma conceção que apresenta uma visão redutora do conceito, na medida em que reduz os problemas do «humanismo» às suas manifestações empíricas observáveis, pondo de parte as questões e os temas que estão fundamentalmente ligados à «vida interior» do ser humano.

Procurou-se, no entanto, também sublinhar que o impacto da técnica moderna sobre a filosofia se estendeu para além dos problemas levantados pelo reducionismo metodológico inerente às diferentes conceções “científicas” do filosofar. A Hermenêutica Contemporânea, sobre a qual recaiu a análise que compõe o segundo capítulo desta investigação, pode ser também concebida como um desses domínios especializados herdeiros da abordagem técnico-científica, ao mesmo tempo que pode também conceber-se como uma reação filosófica ao predomínio histórico da técnica moderna. Pois, por um lado, e uma vez que ela própria pode ser determinada conceptualmente como uma metodologia que guia a interpretação dos textos filosóficos, a Hermenêutica pode ser considerada em si mesma como uma tecnificação da filosofia, que tem como intuito fundamental a clarificação do processo interpretativo pelo qual se desenvolve. Por outro, e tal como se procurou destacar com mais impetuosidade ao longo do capítulo antecedente, a Hermenêutica, na medida em que preza por clarificar a importância desempenhada pela dimensão subjetiva do intelecto humano na construção e delimitação do conceito de «compreensão», é ela mesma uma reação às tendências reducionistas advogadas pelas conceções técnico-positivas do filosofar, mostrando-se assim como uma «meta-hermenêutica», uma importante instância crítica do pensamento filosófico, capaz de se insurgir como um caminho alternativo da reflexão filosófica, como uma alternativa que se afasta dessas mesmas tendências.

Há ainda que destacar que talvez o reflexo mais importante da influência que a técnica moderna desempenhou sobre a filosofia se encontre diretamente relacionado com a forma como a própria pensa a técnica, i.e., no modo como a filosofia encarou a reflexão que pode ser desenvolvida em torno das questões que são levantadas pela técnica moderna. A Filosofia da Técnica, é ela mesma uma especialização do pensamento filosófico sobre um ramo de investigação particular, sendo por essa razão também ela uma disciplina herdeira das tendências técnico-científicas que imperaram sobre o contexto académico da modernidade tardia. Não obstante, a problematização filosófica da técnica não é um tema que diga apenas respeito à filosofia do século antecedente, uma vez que remonta as suas origens ao próprio berço da filosofia.56 Mas

de qualquer forma, e enquanto ramo autónomo da filosofia, esta é uma disciplina relativamente recente, datando a sua origem aos anos 1970, e encontrando as suas raízes conceptuais mais significativas em pensadores cujo trabalho foi desenvolvido maioritariamente ao longo da primeira metade do séc. XX (Cf., DUSEK, 2009, pp. 131- 140).

Aquilo que no contexto académico da Filosofia se define como Filosofia da Técnica é definido como um âmbito de estudo delimitado, mas que procura construir uma conceptualização filosófica da técnica que pode ser elaborada a partir de um conjunto alargado de perspetivas. A Filosofia da Técnica engloba por isso uma grande variedade de abordagens metodológicas às questões levantadas pelo seu objeto, estendendo-se mesmo para além dos ramos disciplinares tradicionais da Filosofia, sempre no sentido de construir uma reflexão (o mais abrangente possível) em torno das questões que podem levantar-se acerca da temática da técnica. Mas mesmo ao apresentar-se como transdisciplinar, as mais populares conceções da técnica moderna partem de investigações que são desenvolvidas pelos ramos de investigação que possuem uma ligação mais vincada com a Filosofia tradicional. Por essa razão, a Filosofia da Técnica encontra as suas raízes conceptuais mais importantes dentro das diversas tendências que o pensamento filosófico contemporâneo tem vindo a seguir. Tal como o sublinha Val Dusek, em Filosofia da Técnica não é por isso estranho falar de uma «Analítica da Técnica» ou de uma «Fenomenologia da Técnica», mas sempre

56 A reflexão desenvolvida em torno deste tema pode ser encontrada em autores tais como Platão e

Aristóteles, mostrando ainda alguns dos seus ecos nos períodos que se seguiram e que antecederam a primeira revolução industrial. Veja-se a título de exemplo o excurso platónico acerca da relação entre dialética e a técnica n’A Républica, ou mesmo a diferenciação que Aristóteles estabelece entre «techné» («τέχνη») e «episteme» («ἐπιστήμη») na sua Ética a Nicómaco. Cf. PLATÃO, ~ 400-300 a.C., (Livro VII, 514a - 540c), pp. 315-358; ARISTÓTELES, ~ 400-300 a.C., (Livro VI, 1139b-1140b), pp. 133-139.

tendo em vista uma conceção transdisciplinar integrada acerca do tema. Nas palavras de Dusek:

«Um dos impactos que a filosofia da técnica teve foi o de encorajar e, no contexto da resolução dos seus problemas, em alguns casos também forçar a integração de várias abordagens filosóficas. Ao aplicar conjuntamente as metodologias de diversas abordagens possíveis para lidar com as questões da filosofia da técnica, as características que são partilhadas por estas tendências da filosofia tornam-se mais evidentes. (Cit., DUSEK, 2009, p. 139)»57

De acordo com Carl Mitcham, as diversas reflexões filosóficas que são desenvolvidas em torno da técnica moderna podem ser enquadradas sobre duas divisões fundamentais que, com as suas devidas reservas, se podem corresponder com as duas principais tradições pelas quais a filosofia contemporânea se tem vindo a desenvolver. A primeira divisão é designada por Mitcham como a «Filosofia da Técnica dos Engenheiros».58 Nesta, de acordo com o autor, enquadram-se as perspetivas filosóficas

que procuram desenvolver uma reflexão em torno da técnica moderna que a perscruta à luz de uma análise que incide sobre os seus processos e mecanismos. É por essa razão uma divisão da Filosofia da Técnica onde se enquadram as perspetivas de pendor analítico, que procuram compreender a estrutura epistemológica inerente à técnica moderna, assim como quais os pressupostos empíricos que estão em jogo no seu desenvolvimento. A segunda divisão é denominada por Mitcham de «Filosofia da Técnica das Humanidades». Nesta enquadram-se as reflexões filosóficas que possuem um caráter mais crítico face aos desenvolvimentos da técnica moderna. A investigação que se desenvolve no contexto da Filosofia da Técnica das Humanidades, segundo Mitcham, está mais preocupada com as implicações que a técnica moderna traz para a vida quotidiana; com a forma como a técnica moderna se mostra capaz de determinar a humanidade assim como a sua atitude para com o mundo onde se encontra lançada. Ao contrário da Filosofia da Técnica dos Engenheiros que — tal como a própria designação dá a entender — é desenvolvida maioritariamente por engenheiros e cientistas diretamente envolvidos na criação e desenvolvimento de dispositivos tecnológicos, na Filosofia da Técnica das Humanidades enquadram-se as problematizações filosóficas da

57 “One of the impacts of the philosophy of technology is to encourage and, in the context of problem-

solving, in some cases to force the integration of various philosophical approaches. In jointly deploying the methods of these various approaches to deal with philosophy of technology, the shared features of many of these schools of philosophy become more evident.” (Tradução da nossa responsabilidade).

58 Também denominada pelo autor como «Filosofia Mecânica», designação cuja cunhagem Mitcham

técnica que são levadas a cabo por filósofos e outros pensadores das restantes áreas do humanismo, e que procuram sobretudo compreender o impacto que a técnica possui sobre os mais diversos domínios sobre os quais se desenrola a vida humana (Cf., MITCHAM, 1989, pp. 82-93).

Terá de se ressalvar porém que esta divisão se estabelece aqui a título estritamente formal, e sempre sob o intuito de estabelecer uma ligação entre a interpretação que aqui se desenvolve e aquela que está patente nos dois capítulos que lhe são antecedentes.59

Por esta razão, torna-se também necessário sublinhar que muitos têm sido os esforços levados a cabo pelos mais diversos autores no sentido de estabelecer pontes que permitam estabelecer uma ligação entre estas duas tendências da Filosofia da Técnica. Muitos destes esforços, acabaram por sua vez por determinar algumas das mais importantes propostas contemporâneas que têm sido apresentadas acerca do tema.60

Para além disso, e do mesmo modo que qualquer divisão que seja construída no sentido de enquadrar as propostas de reflexão filosófica que podem ser desenvolvidas acerca de uma determinada questão, com a divisão entre uma Filosofia da Técnica dos Engenheiros e uma Filosofia da Técnica das Humanidades corre-se também o risco de deixar de parte algumas importantes conceções filosóficas da técnica que não se enquadram nos parâmetros que são aqui definidos à luz da proposta que é avançada por

59 A estrutura e pretensões teóricas que acabaram por delimitar os objectivos desta tese levaram a

descartar importantes propostas de delimitação do contexto histórico da investigação que é desenvolvida em Filosofia da Técnica. A falta de uma referência directa ao empirical turn, que diversos autores consideram que se veio operar na Filosofia da Técnica, é disso um de entre vários casos possíveis. De acordo com Peter Brey, para além de uma divisão entre uma abordagem analítica e uma abordagem hermenêutica das questões que são levantadas pela técnica moderna, poderá ainda ser introduzida uma divisão histórica entre as propostas que problematizam a técnica a partir sua concepção mais abstracta (ontológica, antropológica, social ou histórica), e as propostas que problematizam a técnica a partir da sua manifestação empírica mais concreta, i.e., que pensam a técnica e os seus problemas a partir de uma análise ou interpretação que incide sobre os dispositivos tecnológicos com os quais o ser humano interage empiricamente. Embora sejam feitas referências ao trabalho desenvolvido por pensadores posteriores ao

empirical turn, a investigação que aqui se materializa como tese incide maioritariamente sobre o

pensamento de autores que se enquadram no contexto da Filosofia da Técnica pré empirical turn. Cf., BREY, 2010.

60 Don Ihde e Andrew Feenberg podem aqui ser referidos, e.g., como dois dos autores que procuram com

as suas propostas estabelecer ligações entre a Filosofia da Técnica dos Engenheiros e a Filosofia da Técnica das Humanidades. Embora possam ser considerados como dois dos autores cujas propostas se enquadram no contexto da Filosofia da Técnica das Humanidades, nelas é possível destacar traços das abordagens mais características da Filosofia da Técnica dos Engenheiros. Na hermenêutica da técnica proposta por Ihde, a técnica é interpretada a partir dos seus dispositivos, da sua manifestação empírica mais objetiva. Para além disso, a própria interpretação das implicações que os dispositivos tecnológicos podem vir a ter para o ser humano e para a sociedade é construída, numa primeira instância, a partir da análise dos seus processos, traço característico das propostas que se enquadram na Filosofia da Técnica dos Engenheiros. Já no que diz respeito à Teoria Crítica da Tecnologia de Feenberg, é também possível descobrir alguns traços característicos da Filosofia da Técnica dos Engenheiros, sobretudo no que diz respeito à sua conceção do «código técnico», que parte também de uma análise formal dos processos de desenvolvimento e criação de dispositivos tecnológicos, propondo, a partir dele, alternativas de desenvolvimento tecnológico que se mostram num equilíbrio harmónico com o humanismo e a natureza.

Mitcham — tal como é o caso das problematizações feministas e ambientalistas da técnica moderna.61

3.2. A Filosofia da Técnica dos Engenheiros e a sua Relação com a Filosofia

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