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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

10. Mestre-sala dos mares

6.3 A temática racial

A luta antirracista sempre surge durante a roda, acarretando a consternação do racismo e alguma forma de superação que emerge da narrativa, convidando a audiência à reflexão. Em uma delas, a poesia Me Gritaram Negra,85 foi a que mais pude

observar a audiência sendo afetada. _______________________ 84 Vídeo 5

Tinha sete anos apenas, apenas sete anos,

Que sete anos! Não chegava nem a cinco! De repente umas vozes na rua

me gritaram Negra!

Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! "Por acaso sou negra?" – me disse

SIM!

"Que coisa é ser negra?" Negra!

E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia. E me senti negra,

Como eles diziam E retrocedi Como eles queriam

E odiei meus cabelos e meus lábios grossos e mirei apenada minha carne tostada

E retrocedi E retrocedi . . .

Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra!Negra!

E passava o tempo, e sempre amargurada

Continuava levando nas minhas costas minha pesada carga

E como pesava!... Alisei o cabelo, Passei pó na cara,

e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Neeegra! Até que um dia que retrocedia, retrocedia e que ia cair

Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra!

E daí? E daí? Negra! Sim Negra! Sou Negra!Negra Negra! Negra sou! Negra! Sim

Negra!Sou Negra!Negra!Negra!

Negra sou

De hoje em diante não quero alisar meu cabelo Não quero

E vou rir daqueles, que por evitar – segundo eles –

que por evitar-nos algum dissabor Chamam aos negros de gente de cor

E de que cor! NEGRA E como soa lindo!

NEGRO E que ritmo tem!

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

NEGRO NEGRO NEGRO Afinal

Afinal compreendi Já não retrocedo E avanço segura Avanço e espero

E bendigo aos céus porque quis Deus que negro azeviche fosse minha cor

E já compreendi Já tenho a chave!

NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

Negra sou!86

Figura 27. Performance de Lilian Rocha- Negra sou

Fonte: Feijão

Esse poema é um dos clássicos favoritos da poeta e escritora Lilian Rocha, por tocar em um ponto que para ela é fundamental, que é o cabelo negro, uma “marca” _______________________

da estética visual negra que evidencia empoderamento e envolvimento com a questão racial. Pude notar que muitas que chegavam com cabelo alisado, transformam-se em crespos, ou então em trançados afro no Sopapo Poético.

Lilian utiliza-se da poesia e compõe uma sonicidade musical negra ao toque do tambor de Vladimir a começar da performance musicada de Victória Santa Cruz, disponível na internet. A única vez em que eu vi este poema sendo performatizado foi em 2017, depois dali, no Sopapo Lilian não performatizou mais esse poema nas edições que acompanhei em 2018 e ressaltava mais textos de seus livros publicados.

Esta performance de Lilian me marcou no trabalho de campo em razão dela utilizar-se da sua experiência poética musical, acrescentando ritmo, sons e acentuações vocais. Ela dramatiza, apropria-se dos versos e os toma como seus, além disso, recupera a essência da discussão de discriminação racial abordada pela autora afro-peruana e expõe ao cotidiano do Sopapo Poético: a dor e a superação do racismo, por isso é tão efetivo o efeito performativo na audiência.

O grupo musical de sopapeiros interage junto a Lilian em um jogo de pergunta e resposta, equivalente com a atuação de Victória Santa Cruz disponível na internet, ao passo que ela vai interatuando com os sopapeiros. Os versos originais são reinterpretados, acrescentando novas nuances, as sonicidades vão sendo cada vez mais presentes e à medida que vai chegando ao final do poema ritmicamente a performance vai acelerando e desacelerando, em determinado momento os versos poéticos tornam-se música rítmica, acompanhada do tambor percussivo que mantém a força jacente e acompanha a veemência da poesia ajudando a manter a audiência interessada e participa emocionalmente da performance. A ovação vigorosa da audiência sugere que intenção de desenvolver a conscientização racial através da performance poética musical na roda de poesia teve êxito.

Não havia como permanecer insensibilizado ouvindo aquela performance poética sem ser afetado pelas discussões raciais e de gênero, pelo modo sônico e a maneira como Lilian Rocha, utilizando-se da sua experiência musical como participante do Coral do CECUNE, pois era gritante a maneira como a audiência era afetada através da performance. Igualmente, eu, ao ver mulheres com os “olhos marejados”, motivados

pela sensibilidade de um pesar que eu não conseguiria dimensionar na posição de homem e negro, mas que não me impediam de sentir a comoção de ter lembranças da minha avó, mãe e irmãs, que em judiciosos momentos de suas vidas alisaram os cabelos como forma estética. Então, como não ser tocado por tamanha violência ao ver naquele momento pessoas ou mulheres negras possivelmente vivenciaram durante seu processo histórico de existência a narrativa poética de Víctória Santa Cruz? Em meu diário descrevi meu sentimento:

[...] cada poema era intercalado por uma canção, exigida por muitas poetizas que diziam: "cadê a música" e entravam sambando. Muitas vozes, muitas performances, a mais surpreendente foi de Lilian Rocha que me disse no início quando nos abraçamos que era cantora, tinha participado do coral do CECUNE e gostava muito de ter música em seus poemas. Combinamos de conversar em outro momento. Logo após o início do Sarau ela entrou com sua voz potente parou o olhar de todos, leu um poema da afro-peruana Victoria Santa Cruz. Conforme ela falava, a audiência Negra respondia, assim como os sopapeiros e mestras de sarau. Entre elas Pâmela Amaro a homenageada da noite. Quando Lilian terminou foi um delírio em toda audiência. Ela sentou-se após a leitura do poema e logo em seguida levantou- se e disse o nome da autora do poema e o público aplaudiu novamente. Eu ficava pensando que força, que voz, que performance!!!! Enquanto Lilian estava declamando de memória seu poema, uma mulher negra enchia os olhos de lagrimas, olhares atentos na sua performance se multiplicavam. Muitos jovens, alguns deles eu nunca tinha visto em outros saraus. Acho que Pâmela atraiu um número expressivo de seguidoras principalmente jovens. Quando uma jovem negra começou a ler seu poema que tratava de questões universitárias, percebi que isto trazia algo novo, no sarau para mim, algo que não estava nem no livro do sopapo. Ela continuou seu poema longo com seu celular como papel, tocava em vários pontos, era um manifesto, e Vladimir começa a fazer sons com o violão, chamando a atenção da audiência, e da poetiza que termina em grande estilo dizendo que se era longo era porque tinha algo a dizer, e é ovacionada pela audiência jovem também (Diário de campo, 26 de julho, 2017).

Como é possível perceber, as questões raciais, em suas múltiplas formas, entre elas as demandas da universidade como cotas, modos de escrita acadêmica, todos esses permeiam e atravessam a experiência poética e musical negra no Sopapo Poético. De uma maneira ou de outra, uma “intelectualidade negra emergente” vai formando as mentalidades de jovens, que tem optado por afrontarem as barreiras raciais, assumindo questões estéticas e políticas. Nessa direção a narrativa poética ajuda de maneira instantânea na produção e transformação da visão de mundo das pessoas que sofrem ou sofreram a opressão racial e podem carregar o peso da escravidão e do racismo. Mas, ao mesmo tempo, o Sopapo cita o legado cultural, político e a militância através da música,

tal qual da poesia, da visualidade negra, de sua estética como elementos centrais no enfrentamento do eurocentrismo no sul do país.

Ao advir da prova de ouvinte, igualmente senti a experiência de performer. Registrei em meu diário quando no fim do trabalho de campo minha primeira leitura de um poema, após edições de participação no sarau do Sopapo, iniciado em 2017.

Logo que me sentei Fátima veio e pediu para ler um poema, eu era o décimo terceiro fiquei ali e logo em seguida chega Jorge Fróes, eu peço então que ele autografe para mim o livro que fez, fico na dúvida se eu deviria ler, ou cantar, aquele senhor que estava presente no ano de 2017 e que levava um chocalho não levou mais, mas ficava anotando coisas em um caderno, foram várias pessoas lendo e cantando na roda, música o tempo todo, em cada momento final de cada poema lido. A energia estava muito boa era o último sarau do ano, meu celular não funcionou e não consegui gravar nada, mas pra que? Com certeza haveria vídeos e fotos no Facebook do Sopapo ou de outros pessoas negras que foram ao evento. Mas qual a importância mesmo do registro do pesquisador nos dias de hoje de um evento como o Sopapo? A banda era composta de sax, tambores, violão, pandeiros, e as pessoas que quisessem tocar era só chegar, ou seja, era a Sopapo Jazz como disse Sidnei. Sidnei leu seu poema e depois saiu dançando, a mestra de saraus, fez uma brincadeira avaliando a performance de Sidnei como negativa, logo a audiência começou a se manifestar. Ela, pela espontaneidade, achou que aquilo era uma brincadeira, mas as pessoas levaram a sério, e muito criticaram principalmente os mais velhos. Estava quase chegando a minha hora e antes Sidnei apontou para mim e disse que era eu, fui anunciado pela mestra de sarau e entrei, ela queria que eu sambasse, e eu não conseguia, mas balancei meu corpo tipo o sambista Martinho da Vila. Peguei o microfone e agradeci disse que hoje era dia do Jorge Fróes, que aquela leitura era uma homenagem a todos os poetas como Onifade, Lilian e em memória de Oliveira Silveira, pois Naiara e seu filho Thales estavam ali. Comecei a ler, minha voz ficou tremula, meus lábios estremeceram, diante daquele público, eu não conseguia enxergar ninguém, apenas aquelas letras que estavam diante de mim, era muito rápido, eu sentia que minha voz estava ficando segura, firme, eu ai fui colocando expressividade na voz em cada palavra, mesmo sem me movimentar como os sopapeiros. Não gaguejei e respeitei as pausas. A poesia Descobri de Fróes retomava todo o legado negro e tinha muito haver com o poema Encontrei minhas origens de Oliveira Silveira. Fui me encaminhando para o fim, quando terminei todos me aplaudiram, aquele aplauso era um sinal que eu tinha aprendido alguma coisa neste 3 anos acompanhando o Sopapo Poético, tinha vencido o medo inicial, que me acompanhou e me fez sempre fugir por alguma razão da poesia. Eu deixava de ser um negro fujão da poesia, eu agora era um poeta, consegui pegá-la, mesmo sem ler um poema meu, a partir de agora, eu poderia participar dos Sopapo futuros e ser convidado como fui a ler um poema (Diário de campo, 26 de julho, 2017).

Dá para notar que fui transformado ao ler uma poesia, pois me sentia encorajado a ler outras, eu sabia que minha iniciação como músico-poeta começava no final do trabalho de campo.

Mesmo assim, pude confirmar ao transitar pela audiência algumas já traziam domínio da poesia falada, como os poetas negros do Slam e outros traziam seus poemas de casa para serem lidos ou então pegavam da cesta de poesia. Como era mês de novembro o músico-poeta Oliveira Silveira era lembrado, algo que fiz ao ler minha primeira poesia na roda sopapeira, em outras palavras estava afirmando através da performance tanto poética quanto musical o legado do protagonismo negro.