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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

10. Mestre-sala dos mares

4.3 O repertório musical negroafricanobrasileiro.

Suzana, esposa de Juarez publicou o primeiro vídeo no canal do Youtube em 2000 e registrou a atuação e performance do coral. Os registros não dizem muito sobre o trabalho realizado nos anos 90, porém ajudam entender melhor a sonicidade musical negra ou sonicótipo negro.

Em apresentação, possivelmente na Fundação ECARTA62, projeto

ECARTA musical, chama atenção para a diferença entre a roupa que utilizam os percussionistas, com o nome da entidade e os adultos com roupas mais ligadas à tradição africana. O repertório dessa apresentação trazia a experiência da música reggae de Bob Marley, mas não com a versão original em inglês, e sim aquela tradução feita por Gilberto Gil com o título Não Chores mais63.

As vozes masculinas são posicionadas ao centro, para à sustentação e equilíbrio nos graves, enquanto que as vozes femininas se posicionam nas pontas, mais agudas. Percussionistas e coralistas do CECUNE ocupam o mesmo espaço visual durante todos os 3 minutos e 5 segundos de duração da música. Além disso, podemos observar que o regente não aparece à frente ao coral, algo comum, em outros vídeos ele _______________________

62 É uma fundação cultural e assistencial instituída pelo Sindicato de professores da rede privada de educação do estado do Rio Grande do Sul, as siglas querem dizer Educação, Cultura, Arte, Recreação, Tecnologia e Assistência.

se quer surge, surge apenas em momentos de descontração, certamente para que não tirasse a agência negra, pois o regente era branco nesta fase.

Figura 18. Diálogo com a juventude negra- percussionistas do Coral do CECUNE

Fonte: Blog do CECUNE

Na ilustração é possível notar três atabaques, um bongo, um surdo de marcação, pandeiro meia lua, claves de madeira, triplo agogô de madeira, todos os instrumentos artesanais. Lembro, de, no início do trabalho de campo visitar a casa de Vladimir Rodrigues e encontrar muitos desses instrumentos em sua sala musical. Ele comandava essa parte musical percussiva do Coral e aproximava a juventude negra dessa geração aos mais velhos. A camisa preta estampada CECUNE em letras brancas contrastava o estilo do coral como parte do grupo, neste vídeo a audiência não aparece.

Em outra performance do grupo em uma capela, possivelmente do Centro Metodista do SUL IPA, participam o grupo de percussão do CECUNE e o Coral, pode- se notar no vídeo a audiência branca cristã. O grupo coral, diferente do espaço no Ecarta Musical, fica postado ao lado esquerdo do palco, deixando a frente do altar para ocupação do coral. Mesmo com a percussão, há pouco movimento corporal e mais uma vez o regente do coral não aparece, constituindo figura talvez menos valorosa nos eventos, e sim aos ensaios do grupo.

A música que é anunciada pela apresentadora é conhecida como Nkosi Sikelele Afrika, Hino Nacional do Congresso Africano64. A disposição vocal do grupo

se mantem a mesma. O som dos agês e das percussões, tocadas rapidamente durantes a performances, mostram o quanto os corpos dos coralistas são controlados pela estética do espaço. Aquela expressividade corporal é perdida, certamente em razão do espaço, uma igreja e também em razão da audiência.

As roupas nas cores verdes dão lugares as mais claras e um marrom, mostrando a preocupação ao fato de cada lugar merecer vestes especiais para coralistas negras e negros. Essa visualidade era importante como forma de mostrar ao público não apenas o cuidado com as vocalidades do CECUNE, algo que pela técnica já tinham, mas de acrescentar a este repertório musical negro a visualidade negra, a estética negra, através das pesquisas de tradição africana (mas que eram ressignificadas ao modo CECUNE).

Essa audiência não negra era impactada pela elegância e cuidado, dando dignidade aos coralistas, empoderando-lhes. Chegavam num espaço em que todos sabiam da história de opressão, mas não era isso que importava. Aquele espaço, podemos interpretar como um lugar pra afirmar a história musical negra e seu legado musical. A percussão serve para protagonizar e se firmar na igreja, em um momento de profunda transformação, pela presença dos APNs posicionando-se como cristãos, só que racializando essa cristandade, produzindo similaridades e também diferenças.

Esse trabalho que o CECUNE fez, trazendo um repertório musical de descendentes africanos lembra a Orquestra Afro-brasileira, onde um conjunto de instrumentos de tradição de matriz africana eram utilizados, assim como, cantos, rezas e composições voltadas para questão racial e de valorização da cultura negra. Foi fundada em 1942, pelo maestro mineiro Abigail Moura, e no período de sua existência foram gravados dois discos, em 1957 e 196865.

_______________________ 64 Faixa 11

São canções vocais e instrumentais que influenciaram o movimento negro brasileiro, entre eles: Abdias do Nascimento, Solano Trindade e, certamente, Oliveira Silveira, sendo bons exemplos dessa tradição em construir o próprio repertório musical deixando de lado toda música coral eurocentrada. Naquele período, dirigido pelo maestro Abigail Moura, o aspecto vocal é muito diferente da proposta do CECUNE presentes nos solos, em meio a perguntas e respostas, há solos femininos e a presença de citações diretas ao candomblé e aos orixás das religiões de matriz africana, diferente do CECUNE que tinha um repertório mais alicerçado na música popular tocada em rádio e conhecida pela comunidade negra em sua maioria, mas que acrescentava alguns cantos relacionados à religiosidade afro-brasileira.

Juarez reconhece que, pela formação diversificada do grupo do CECUNE, essa diversidade é que fez com que esse repertório mais africanizado, de religião africana, fosse deixado de lado, certamente pela influência cristã de parte dos seus integrantes, que preludialmente apostaram em outra relação religiosa. Miriam Oliveira, em seu estudo sobre o Black Gospel em Porto Alegre trata esse repertório musical correlacionando ao gospel afroamericano, e nos aponta o quanto história política negra e a religiosidade cristã são vistas de maneira preconceituosa pelas lideranças negras, e ela busca revelar através do trabalho etnográfico como funciona a experiência negra dentro das religiões de cosmovisão cristã (OLIVEIRA, 2018).

O exemplo da Orquestra Afrobrasileira, proposta por Abgail Moura, serve como parâmetro para avaliarmos a multiplicidade do repertório musical negro e afro- brasileiro, bem como da diáspora negra, que possibilita a agência do negro no campo da música, ou seja, levando-o a se sentir agente e não objeto que imita a experiência eurocêntrica. Baseando-se em pesquisas esses grupos surgem ao longo de nossa história e o disco OBaluaye, da Orquestra Afrobrasileira, assim como o CECUNE, são formas que buscam trazer o repertório musical dos descendentes de africanos da diáspora na intenção de torná-los instrumentos de consciência racial e de política cultural. Esse repertório fortaleceu e serviu de inspiração para luta política negra brasileira. Solano Trindade fez isso ajudando a Orquestra Afrobrasileira, Oliveira Silveira com o grupo Semba e o Coral do CECUNE, sob a liderança de Juarez mostra esses diferentes momentos de nossa história musical no pós-Abolição.

O interessante foram os projetos que atendiam o momento histórico pelos quais passavam a luta política negra, essas três experiências são formas de organização que inspiraram ainda o pensamento radical negro brasileiro, pois ambas as experiências vieram de artistas, músicos, poetas e lideranças que surgiram da experiência dos movimentos sociais negros, influenciados pela produção de conhecimentos dos líderes descendentes de africanos na África e na afrodiáspora negra.

Além disso, em meio às lideranças e suas influências surgem outros coletivos e grupos que dão continuidade ao legado, mantendo o que o Etnomusicólogo Kazadi Mukuna chama de nível semântico, em que a linguagem africana é predominantemente tonal e cada palavra é determinada por padrões sequenciais de inflexões tonais (2013, p. 122) e nível sintático em nível micro para revelar a extensão pelas quais a estrutura silábica de uma única palavra na linguagem africana impacta o aspecto temporal da música vocal (p. 126)

Assim ao pensarmos sobre a produção musical do CECUNE ouviremos esses níveis operando na organização da tradição musical africana transmitida oralmente, neste sentido não apenas a tradição, também a recuperação de sua agência no mundo e no Brasil perdida em razão do processo de escravização pelos quais passaram. Essa busca pelas origens do passado, longe de serem considerados essencialismos, devem ser lidos e entendidos como uma busca pelo seu protagonismo no mundo, e a música também teve um papel central nessa recuperação, pois foi através dela que conhecemos rezas, histórias, mitos e lendas que foram reencontrados à partir de pesquisas e trabalhos teóricos de negros e não negros na história do Brasil.

Nos últimos anos, a lei 10.639/2003 ajudou na valorização da história e cultura africana nas escolas, contrapondo-se ao conteúdo predominantemente eurocêntrico e colonial presente tanto em escolas públicas, quanto privadas. A experiência do CECUNE nos desafia a pensar e incorporar no ensino de música, através da educação musical ou da etnomusicologia, o repertório, a estética e as performances, bem como a historicidade da experiência negra, olhando para toda sua produção. Juarez Ribeiro como ex- licenciando em música, colocou o quanto o Coral do CECUNE construiu uma proposta e serviu como referência:

E o coral passou a ser uma referência, na questão da comunidade, na aproximação da comunidade. Nós iamos nos bairros aqui, Restinga, na periferia. Nos apresentamos, nos principais teatros de Porto Alegre, o Teatro São Pedro, Teatro da OSPA, incursões aqui pela região sul do Brasil, Santa Cataria, interior do estado. Nós fizemos várias atividades desde 1995, e um projeto que é mantido pelo CECUNE quando ele foi criado, ele tem uma proposta desenvolver atividade de pesquisa, alfabetização musical, interpretação vocal, execução instrumental, numa experiência pioneira aqui na região sul do Brasil junto a comunidade negra. O projeto coral quando nós começamos, nós já temos hoje quase uma escola de formação, porque nós trabalhamos com pesquisa, formação, alfabetização musical e a formação instrumental, que na época foi um trabalho maravilhoso, coordenado pelo Vladimir Rodrigues, músico, e o senhor do Sopapo Poético, outra entidade maravilhosa, fazendo um trabalho significativo no campo das letras e da poesia, ou seja, essa caraterística fundamental, além, do caráter comunitário, ela adotou uma metodologia própria, de construção do canto coral, com objetivo de promover o resgate da expressão musical, com as matrizes culturais africanas, e também apresentação de uma proposta popular de canto coral. Ou seja, nós criamos uma escola nesse sentido. Então isso que vem nos movendo, nosso projeto político ideológico, que nós temos que ter esses componentes que vai agregando, de ser um sujeito, de expressar a sua sujeição, e tu ser o cara que vai multiplicar essa correspondência, então é uma concepção filosófica, tem que compreender o processo, desenvolver e saber multiplicar esse processo (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Juarez Ribeiro, jan, 2020).

A multiplicação das aprendizagens e dos saberes adquiridos com CECUNE nos leva a reflexão de que sua atuação política com o coral (iniciado nos anos 90) aponta para uma mudança na agenda bem mais integradora das diferentes experiências negras. Pela música é possível observar que quando ela passa ser aceita já é uma fase que o discurso mais radical não fazia sentido em meio às inúmeras experiências negras. Mostrou também, que a religiosidade católica negra entrava no bojo de práticas que deveriam ser estudadas por acadêmicos e ativistas negros e negras. O interesse de Oliveira Silveira em conhecer práticas religiosas do Maçambique e toda sua musicalidade, expressividade e diversidade é um bom indicado dessa transformação. O antropólogo Yosvaldir Bitencourt Jr aponta que:

Ao considerarmos a diversidade étnico-racial, sob a perspectiva da identidade negra, baseada nos valores da matriz histórica e cultural africana e nos valores da sociedade e da cultura afro-brasileira, percebemos que os negros constituem uma trama simbólica singular, por meio de uma complexa rede de relações sociais mediadas pelos territórios e ambientes negros, e mediada também pela corporeidade que preserva a memória social ou coletiva, além das formas expressivas da cultura negra (BITEENCOURT JR, 2016, p. 92). Mesmo que em certa medida a corporeidade fosse algo controlado nos eventos do coral, o movimento de dança era proposto pela vocalidades negras, e o CECUNE é parte dessa rede de relações complexas em que a música é um importante agente de ressignificação de valores cultivados socialmente. Segundo, Eurides de Souza Santos, ao pesquisar a comunidade quilombola Caiana dos Criolos, localizada na zona rural de Alagoa Grande no estado da Paraíba, as

práticas da performance, incluindo a dança, a música, as narrativas e as encenações, ocupam posição privilegiada na memória social, porque se traduzem como eficientes recursos para a mobilização e ressignificação dos valores cultivados socialmente (SANTOS, 2014, p.268)

Na mesma direção apontamos que a música “agitou” no caso específico da luta política negra em Porto Alegre as lideranças negras a repensarem os valores cultivados socialmente dentro dos movimentos sociais negros. O CECUNE ajudou na produção de novas práticas culturais, musicais, educativas e epistêmicas diante de uma década em que radicalismo discursivo negro não era mais possível e não encontrava mais amparo diante do surgimento de novos grupos que saiam do MNU, como a UNEGRO, entre outras organizações que surgiram em meio à emergência e ampliação das ONGs pelo Brasil, assumindo em muitos casos, as responsabilidades do estado no campo social ou estabelecendo parcerias com ele.

A geração que emerge dessa política cultural que advém de grupos como o CECUNE são fundamentais, pois como o coletivo negro Sopapo Poético e a sua experiência musical de valorização da cultura negra, da juventude negra, protagonismo negro, da valorização à mulher negra, da importância que dá aos músicos-poetas, compositoras, pesquisadoras, artistas e ativistas é parte do legado que o Centro Ecumênico de Cultura Negra e das rodas de poesia principiada por Oliveira Silveira ajudam a construir.

Entretanto, diferente deste dois, retomando um radicalismo discursivo e em certo sentido prático e necessário, pois surge em 2012, em outro momento da luta política negra de maneira geral, em que as cotas se consolidavam no plano jurídico e espalhavam para todas as universidades federais, estaduais ao mesmo tempo que ampliavam a participação negra em Saraus espalhados pelo Brasil, como Bem Black de Salvador,66 que surgiu em 23 de setembro de 2009, teve sua primeira edição, além

desse, os Saraus das Pretas, Sarau Preto, em São Paulo, entre outros.

Esses acontecimentos representavam um bom motivo para a continuidade de rodas de poesias na cidade de Porto Alegre, onde Vladirmir Rodrigues, Lilian Rocha, _______________________

66 É possível ver no blog criado em 2009 o início do projeto Sarau Bem Black em Salvador, as escolhas, as músicas entre outras informações. Disponível em http://saraubemblack.blogspot.com/ acesso em 20/02/2020.

Kyzzy Barcelos, Fátima Farias, Onifade e Pâmela Amaro serão homens e mulheres negros que fazem a música e poesia dialogar como parte da tradição musical negra e afro-brasileira, necessitando radicalizar a política cultural para afirmarem-se como coletivo e proposta para comunidade negra em Porto Alegre, em razão do contexto local marcado por uma hegemônica literatura eurocentrada e branca. No capítulo seguinte apresentamos o Sopapo Poético e a comunidade virtual negra como forma de enfrentamento ao legado racista e propormos novas bases para pensarmos nexus entre poesia e música.

CAPÍTULO 5 - O SOPAPO POÉTICO

“Cuidado eles já nos viram” Giba- Giba67 Completar um ciclo né nesse ano de 2012, já estamos afiando as nossas consciências pra 2013, 14,15.... que esse é o foco de resistência natural, e nós temos há 300 anos nesse Brasil. A semana passada na Câmara de Vereadores de Esteio, enquanto arrumavam uma pessoa falou assim: Olha descendente de escravos. Eu digo opa! Nós não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de homens livres que foram escravizados no Brasil, os que falarem isso são descendentes de escravocratas.... Tudo isso pra querer dizer da minha satisfação de ver a nossa comunidade reunida sempre lutando pela resistência, porque eu sou do tempo que o Floresta Aurora era aqui na Lima e Silva, Satélite Prontidão era aqui no Areal da Baronesa. As nossas sociedades eram todas aqui na cidade. Ai foram empurrando nós, foram empurrando nós, foram empurrando nós, agora nós tamos lá no Porto Seco. Já se transformou numa písta de corridas de moto. Quem sabe a partir desse momento qualquer proposta, pra gente sair da cidade, nós vamos dizer opa, um momentinho, nós somos nativos do Brasil, as pessoas que querem nos tirar de cá, não são brasileiros, porque o Brasil é Negro, Índio e Português, nós somos nativos dessa terra... as pessoas que não gostam, ou que não sentem, dizem assim: O barulho, tem que tirar o acadêmico daqui do centro da cidade, por causa que incomoda o ouvido deles, porque eles não são brasileiros, porque se ele é brasileiro é de alegria, samba de alegria, de tudo mais, e as pessoas que não se adaptam ao jeito brasileiro, esses é que são intrusos, eles não são nativos (EDIÇÃO SOPAPO POÉTICO, Giba- Giba, nov, 2012).