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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

4.2 O Coral do CECUNE

O coral do CECUNE surge como mais uma frente de ação do movimento social negro como forma de articular diferentes tendências, e a música serve como elemento estratégico nos dizeres de Juarez Ribeiro como “apaziguador”, justamente pela tensão existente entre a política negra e a política cultural, que pareciam instâncias opostas aos movimentos negros dos anos 80. Essa separação induziu muitos ativistas a saírem dos MNU e criarem suas próprias instituições de lutas ou projetos. O CECUNE e a Associação Negra de Cultura são bons exemplos, pois investiram na cultura, nas artes, na poesia, na música e no teatro, como política. Juarez nos dá um entendimento desse papel da música:

[...] criamos o coral do CECUNE, essa instituição precisa ter um grupo de música, com instrumento de música, pra ser um instrumento político de ação e aproximação para comunidade... então esse lado da arte, do ponto de vista ideológico, da compreensão político ideológica, projeto do Centro Ecumênico ... vezes o cara acha que ta fazendo música, tá cantando, tá fazendo teatro, isso ai não é político, é politico. O que determina a ação política, ou seja, é a sua forma de discurso, se ela discursa numa perspectiva alienada, ela não tá refletindo pros seguimentos que precisam ter uma discussão libertária a sua

essência, portanto, ela não tá servindo do ponto de vista político pra liberar, ela ta servindo pra oprimir ou constranger, o que determina ação política, se o cara é politico ou não é, é a forma que ele ta expressando seu discurso e a sua prática (MÚSICAS DO MUNDO, Juarez Ribeiro, jan. 2020).

Essa preocupação em politizar a música, em torná-la instrumento político foi a base para que os envolvidos com o projeto coral do CECUNE adquirissem consciência histórica e política, não apenas os cantores, percussionistas, também às audiências, na medida em que pela voz, pela roupa, pelo gestual, pela percussão uma identidade negra era politizada, formada por grupos de diferentes denominações. Isso dava o caráter plural do Coral do CECUNE e por essa via sensibilizava lideranças negras, que consolidavam um modo prático da luta política negra e que exercia efeito multiplicador.

O trânsito desse coral por espaços católicos mostra o quanto era necessário entrar na disputa ideológica e apresentar a compleição negra para audiências não familiarizadas. Através do repertório musical vinculado à música popular negra brasileira e também dos cantos clássicos da luta política negra dos anos 80 e 90, como exemplo o hino da África do Sul, mostra essa aproximação pela música entre os dois lados do atlântico.

Dessa forma podemos dizer que havia possibilidade em construir também um catolicismo ao modo dos militantes que tinham trajetória nos APNs (Agentes da Pastoral Negros)60. Onifade, músico-poeta, pertencente à comunidade de terreiro do Ile

Axé Yemanjá e ao coletivo Quilombo da Arte, bem como uma das pessoas que participava ativamente do Sarau Negro Sopapo Poético, foi um dos integrantes desses grupos negros dentro da igreja católica. Tem esse nome africano que quer dizer, aquele

que vem do IFÁ. Sua relação com a igreja se deu na comunidade São José do Murialdo,

conhecida por projetos relacionados à assistência social no Morro da Cruz, onde Onifade teve seu contato com APNs, pela relação com os padres da basílica. Ele lembra

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60 Agentes Pastoral Negros do Brasil, segundo o Portal Geledes, tiveram início a partir de reuniões entre intelectuais negros e religiosos dentro da Igreja Católica, e, se fortaleceu durante a organização da Campanha da Fraternidade 1988, com o tema “Ouvir o clamor desse povo”, foi um marco e deu ênfase para população afro-descendente e o centenário da Abolição da Escravatura (GELEDES, 2013).

a demanda negra silenciada e exemplifica a visita de seu amigo e músico DiPaula quando foram à São Paulo:

[...]acho que eu fiquei uns dois anos com APNs, mas a gente tinha mais sede, a igreja católica limitava....tu sabe que a gente tinha que fazer a construção do texto base, pra em 88 ele ser implementado nas igrejas, e tal, eu e o DiPaula, nós fomos pra São Paulo, pra fazer alguns hinos, compor alguns hinos pra ser cantado, nas igrejas e tal, e foi interessante que a gente chegou lá, e a gente muito afoito né, e eu lembro que o Di Paula fez um hino que não era bem isso que eles queriam né

“nossa senhora aparecida, rainha de toda a bondade”

[...] e o coro comendo, aquela batucada toda. Não mas não é bem assim (risos) não é bem essa ideia. A palavra negro não era pra ser colocada, aquela coisa de que todos somos filhos de deus, que deus não olha cor. Também a gente tava num periodo de exceção, então também as coisas tinham que ser conduzida dessa maneira... O próprio nome Centro Ecumênico de Cultura Negra, ele também veio em função disso, o ecumênico não era visto assim com maus olhos, o ecumênico não soava tão agressivo. Foi a primeira vez que a gente também começou a ouvir a falar em África do Sul, não se tinha tanta informação também, mas ai que a gente ficou sabendo né do que os negros da Africa do Sul passavam e tudo mais (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Onifade, nov, 2018)

E esse apostolado limitava, pela exclusão das práticas musicais negras, algo comum pelo seu sonicótipo negro musical e popular. Eurides de Souza Santos aponta que no final do século XIX “a igreja brasileira lutava para afastar das cerimonias do culto divino as ladainhas e os benditos que surgiam da criatividade popular”(SANTOS, 1998, p.43), assim os negros não perderiam a fé na religiosidade cristã, no entanto, é possível notar que Onifade nota a indigência de espaços ligados à questão negra, e o CECUNE surge então para fazer adentro à igreja católica que era expressar suas musicalidades de forma total, através da batucada, principal obstáculo da igreja católica na época, mesmo com todo o discurso ecumênico.

Na busca da construção da identidade no coral do CECUNE, a opção é um repertório musical da produção de conhecimento negro, nisso escolhem canções dos músicos Djavan, Moacir Santos e o hino da África do Sul, com o objetivo de produzir uma diferença em relação a outros tipos de coral no Rio Grande do Sul. A escolha reflete o posicionamento político do CECUNE, mesmo com orientação cristã, o coral tinha um repertório que revelava a estética musical negra, além disso, podemos ver que a narrativa do coral influencia no trabalho de Onifade, pelas demandas éticas:

[...] a gente sempre quis cantar, mas não podemos cantar qualquer coisa, e tendo alguns princípios que eu sigo até hoje, como pessoal diz que eu to fazendo carreira solo. Assim, a gente queria cantar algumas coisas que não ofendesse as mulheres nem os homossexuais, nenhum tipo de discriminação, então a gente tinha muito cuidado em escolher as músicas e tal, a gente colocava isso no grupo, vamos escolher essa música, e música que a gente conseguia se adaptar as coisas, tal, ritmo. Embora a gente goste, eu e outros também gostamos muito de bossa nova, mas bossa nova era um ritmo que não vinha dessa coisa mais negra mesmo, bossa nova já é uma coisa que nasce na classe média do Rio de janeiro, e tal, esse ritmo bossa nova, parece que a gente deixou um pouco de lado, e buscava essa coisa mais, que hoje o pessoal chama de raiz mesmo, e algumas coisas africanas. Tivemos o primeiro mestre Andre Silva, depois o Laercio... na verdade eu nunca fui um coralista, fui me adaptando, que na verdade quando eu entrei pro coral, eu queria tocar algum instrumento, mas por falta de vozes masculinas eu fui ficando, e tal, eu não sei exatamente um baixo, mas eu fui me adaptando a função e consegui desempenhar pelo menos razoavelmente, mas eu acho que essa coisa de técnica, tudo mais, a gente aprendeu muito (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Onifade, nov, 2018).

Podemos ver que o grupo, munido de capacidade técnica do ponto de vista vocal e isto passava pela leitura de partituras, tinha o domínio para expressar vocalmente os interesses ideológicos e políticos do coral do CECUNE. Sendo um grupo formado por vozes masculinas quanto femininas, além de um conjunto de percussão formado por atabaques, tambores, ou seja, essa coisa mais “raiz”. Segundo Onifade, tudo era na tentativa de erigir a proposta voltada para o legado musical dos negros brasileiros, na diáspora e na África. Para tal, era necessário deixar uma vertente (citando a bossa nova) à prática musical negra, e aqui podemos entender que muitos principiantes do coral eram coerentes com a proposta que passava pela valorização das músicas proeminentes negras compostas pelos mesmos.

Figura 17. Apresentação do Coral do CECUNE programa Jornal do Almoço em homenagem a morte de Nelson Mandela

O trabalho e a preocupação do coral não eram somente a técnica vocal, também a estética negra visual, com ética de um legado do protagonismo negro como parte fundamental na construção do repertório. Para tal era empreendido todo um trabalho de pesquisa, e as mulheres negras, principalmente tinham esse papel tais como Vera Triunfo, e Suzana esposa de Juarez Ribeiro. Podemos observar que essas mulheres negras não eram apenas integrantes do coral, realizavam outras funções para além dessa, como gestoras, ou seja, elas participavam integralmente no processo de militância à participação do coral, que era equitativamente de ação política. Além disso, o repertório como apontou Onifade em entrevista, era próximo daquilo que o público negro e não negro conhecia ou já ouvia, e por isso não era valorizadas canções autorais, isto mostra a preocupação em produzir empatia com audiência, possibilitando que ela também participasse, ou ativasse algum tipo de memória em relação às canções.

Das inúmeras apresentações, desde quando o CECUNE começou atuar com o Coral, estrategicamente aproximando a comunidade negra, é possível notar sua participação em espaços de prestígios como, a Feira do Livro de Porto Alegre, espaços relacionados aos direitos humanos, nas universidades e programas de televisão61.

Esses espaços constituem espaços de poder e, representar a comunidade negra era uma forma de mostrar a presença negra no estado e no Brasil, sendo que o repertório musical expressava essa multiplicidade de experiências. No blog do CECUNE é possível notar a seleção das canções e o cuidado na valorização da produção musical negra tanto local quando nacional, bem como internacional. Abaixo o repertório musical:

PROGRAMA