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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

10. Mestre-sala dos mares

6.1 Que poema é esse? É o poema Negro

Figura 21. Entrada da música que poema é esse

Fonte: Feijão

Os sopapeiros entram dançando ao som do toque de tambor, de uma música ou então tocando e cantando. A música Poema Negro, uma versão adaptada da música do bloco afro bahiano Ilê Aye conhecida como Mundo Negro, de Camafeu, gravada pelo grupo Rappa74 e por Gilberto Gil, tem sido apresentada no Sopapo Poético e tem se

transfigurando em espécie de entrada:

Que poema é esse Eu quero saber É o poema negro

_______________________ 74 Faixa 12

que viemos mostrar pra você

Somo crioulo doido e somo bem legal Temos cabelo duro é só no black power Somo crioulo doido e somo bem legal Temos cabelo duro é só no black power75

Adaptar canções populares ao interesse do sarau, como também aproveitar canções de artistas locais é uma marca dos cantos do Sopapo Poético, pois são canções que normalmente a audiência já teve algum contato, o que facilita a participação de todos cantando e batendo palmas, aliás é nesse momento que audiência aparece e interage cantando, dançando ou batendo palma junto aos sopapeiros. Depois dessa canção Cristina espera a audiência se acalmar e vai estabelecendo diálogo com os tambores, com os ancestrais, os orixás, concomitante à luta política negra e junto à audiência:

Boa noite, é com grande alegria que a Associação Negra de Cultura, traz seu projeto Sopapo Poético, edição de julho de 2017, data muito especial, e é bom ver essa casa cheia, lotada, com tantas atividades hoje, em homenagem a nós, negros e negras. Então no dia de hoje, 25 de julho, 1992, lá na República Dominicana no primeiro Encontro de Mulheres Afrolatinoamericanas e Caribenhas, as mulheres lançaram essa data, uma data de luta das mulheres negras, espalhadas pela diáspora. Hoje também comemorámos o dia da mulher negra brasileira, o dia de Tereza de Benguela, mulher negra líder quilombola lá no Mato Grosso que com toda a coragem defendeu o quilombo depois da morte e assassinato de seu marido, por mais de 30 anos. Então hoje é uma data importante para homens e para nós mulheres negras também. Então a noite de hoje promete todos esses avanços, que nós mulheres negras, o nosso companheiro tivemos na nossa caminhada, mas infelizmente nem tudo alegria, a nossa Imperadores tá passando ai por uma dificuldade que sempre acompanha nós negros, né, é o imobiliário, é o ranço do padre que não quer, é a vizinhança, diz que a gente faz muito barulho, e cada vez nós vamos indo pra mais longe. Saímos da Colônia Africana na Mariante... saímos da Cidade da Baixa, da Baronesa do Gravatai... e fomos indo cada vez mais longe, cada vez mais longe. Saímos do Mont’ Serrat e fomos cada vez mais longe. E assim tá acontecendo com a Imperadores. Então eu queria dar um minuto para nosso amigo da Imperador para ele fazer um rápido relato bem ligeirinho, porque eu acho que é importante nós estarmos unidos, é aquela historia, hoje é a Imperador, amanhâ o Sopapo, depois o Odomode, e se nós não tivermos unido a luta fica mais difícil, é aquela velha história, quando for eu não vai ter ninguém pra me ajudar. Então nós temos que estar nessa corrente (EDIÇÃO SOPAPO POÉTICO, Maria Cristina, julh, 2017).

A narrativa de Maria Cristina76 acarreta temas importantes do discurso sobre

a raça no Rio Grande do Sul, em especial da população negra que pelo seu longo _______________________

75 Black Power é um slogan político e um nome para várias ideologias associadas que visam alcançar autodeterminação para pessoas de ascendência africana. É usado principalmente, mas não exclusivamente, por afro-americanos nos Estados Unidos e também no Brasil.

processo histórico de ocupação da cidade, desde sua fundação vem passando por processos de exclusão social e de gentrificação. Pela experiência das práticas culturais negras e seus deslocamentos pela cidade é possível notar na parte final de sua narrativa, sonicótipo negro na percepção daqueles que não gostam dessas práticas musicais e sempre tratarem como barulho.

Figura 22. Abertura do Sarau com Maria Cristina

Fonte: Feijão

Giba Giba foi uma das pessoas que chamava atenção para isso e Cristina retoma a narrativa dele na intenção de conscientizar a audiência. Ao som do tambor, sua fala vai sensibilizando e afirmando a necessidade de sistematização e luta coletiva para travar os avanços da especulação imobiliária e o preconceito, que chamo de etnomusical fruto desse processo de diferenciação histórico social na humanidade em que as práticas e experiências musicais negras são tratas como balbúrdia, como ruído, ou seja, como algo menor.

A narrativa dela também mostra a agência das mulheres negras e coloca os homens negros como parte importante dessa luta, em outras palavras, a narrativa não é exclusiva para mulheres negras, ela busca abranger homens negros também.

Figura 23. Homenagem a mestre Izolino

Fonte: Feijão

Após a fala de Cristina e sua saudação aos orixás, algo que faz sempre no prelúdio saudando Bará77, nos apresenta a forte relação do evento com a mitologia e

com religiosidade de matriz africana e na experiência política negra. José Carlos Gomes dos Anjos afirma:

vejo no nomadismo das formas afro-brasileiras a possibilidade de organização política sem os riscos de asfixia burocrática por fixação demasiadamente mecânica numa identidade essencializada. Existe uma forma desterritorializada de se fazer grupos e política que não deixa de reivindicar direitos e territórios, mas o faz de um modo essencialmente diferente da forma tradicional de se constituir enquanto grupo político: trata-se do que chamaria, num paralelo com a ecologia, de grupo político de identidade socio-degradável. A pessoa e a identidade corporada inicial não param de desestruturar seus parâmetros básicos para se conectarem em novos processos de identidade (infra-pessoal, sexual, de parentesco, étnico, religioso, etc.) (ANJOS, 2008, p..92)

Ao reivindicar direitos e territórios passando pela saudação aos orixás o Sopapo Poético compreende e alcança o patrimônio cultural afro-brasileiro e negro. Cristina faz questão de fazer referência a Xango78, outro Orixá. As narrativas poético-

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77 Segundo Braga em seu estudo etnomusicológico do batuque Jêje Ijexá (1998), Bará é o primeiro dos orixás a ser homenageado. Nenhuma “obrigação” ou “matança” é iniciada sem que comece por ele. É o orixá que age nos “cruzeiros”, abre ou fecha os caminhos, portanto, é orixá das questões imediatas relacionadas a dinheiro, trabalho e amor (BRAGA, 1998, p.55).

78 Xangô é o orixá que governa o trovão, o fogo e a justiça, além de ser o “dono dos tambores”, franca alusão à música. Seus “filhos” são impulsivos, tal qual o “pai”, porém, com um grande senso de justiça. É um orixá muito temido e respeitado na “nação” (BRAGA, 1998, p. 58).

musicais de justiça são centrais no evento. Estes dois orixás, Xangô e Bará, exercem no espaço da roda de poesia uma força e segurança necessária para o Sarau.

Após a saída de Maria Cristina entra Vladimir Rodrigues, que anuncia o convidado da noite e perpetra uma fala breve acerca do convidado e as relações do Sopapo Poético com a ancestralidade e com a justiça.

Boa noite pessoal, em mais então uma edição do Sopapo Poético. A gente tem a grande alegria e imensa honra de receber mestre Izolino. Então falar de samba, falar de carnaval sem mencionar a figura do Izolino quem conhece da matéria sabe que é impossível. É impossível falar de samba no Rio Grande do Sul, sem falar, sem mencionar nego Izolino, e a gente então tem a sorte e o prazer de conviver desse momento com ele. O Sopapo Poético acredita nisso, acredita na ancestralidade, a gente precisa sempre tá trazendo o que fomos, o que nós estamos sendo também. Quanto a nível de lugar, esse lugar é um lugar de ancestralidade sempre esteve ligado a comunidade negra, já foi sede de escola de samba, já foi sede da Associação das Entidades carnavalescas, hoje é o Centro de Referencia do Negro. E nós estamos aqui, nos estamos lutando para que continue sendo da comunidade negra, independente do que aconteça ai fora, esse espaço é nosso, e de cada um de nós, aqui que organizamos, e das pessoas que vem aqui são responsáveis por isso também, as entidades que vem aqui, os coletivos que realizam atividades também, sabem da importância desse espaç. E esse espaço já recebeu mestres como o grande mestre Giba-Giba, seu Nilo Feijó, mestre Irene dos Santos, teve aqui este ano com a gente, tantos outros, Paraquedas, Paulo Romeu, Iara Teodora, e hoje nós temos a grande alegria de receber mestre Izolino, pra quem não conhece vai ser uma baita experiência, e vamos ai em agradecimento ao mestre que tá ai com a gente. A nossa feira afro que voltou, e esperamos que seja pra sempre, aquilo que a Cris falou, é o dinheiro nosso também, capacidade econômica, capacidade de gerir os nossos projetos. Um grande salve, então, um grande salve a feira afro do Sopapo Poético (EDIÇÃO SOPAPO POÉTICO, Vladimir Rodrigues, set, 2017).

Aqui podemos verificar o espaço do CRN como um lugar que foi se demudando com o tempo e que o Sopapo dá continuidade a este espaço existencial negro na cidade de Porto Alegre ocupando território e reivindicando direitos. Vladimir faz questão de evocar nomes relacionados à música e a luta política negra pela cultura negra e o samba, que é a base para que essa narrativa acontecesse, serve de fundo musical enquanto narra79. Aliás, o samba é um dos gêneros musicais mais tocados pelos

convidados do Sopapo Poético, grande parte das performances tem esse gênero musical como parte de suas experiências musicais. No gráfico abaixo, a começar do levantamento online é possível perceber o quanto ele ocupa lugar importante.

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79 A experiência da música ligada a questões políticas, identitárias e diaspóricas é identificada em trabalhos como os de Elizabeth McAlister (2012), que analisa a experiência musical da diáspora negra no Haiti, país marcado por uma história de luta negra, sendo o primeiro das Américas a livrar-se do julgo colonial francês. A autora observa que, seja na música gospel e evangélica haitiana, de orientação mais cristã, ou no Rara, mais ligado às tradições religiosas de matriz africana, a questão da diáspora é algo central para analisarmos o repertório musical, bem como os gêneros musicais utilizados como forma de afirmação da diáspora.

Gráfico 4. Gêneros musicais no Sopapo Poético

Fonte: Pedro Fernando Acosta da Rosa

Apesar de artistas relacionados aos gêneros como o Funk e Pagode (ROSA, 2016) não fazerem parte dos homenageados do Sopapo Poético, mesmo tendo inúmeros artistas pela cidade e essas práticas fazerem parte da cultura popular negra, isto se deve a esses gêneros serem historicamente como parte da cultura de massa. Ou seja, serem considerados, ainda, uma cultura musical carente de politização, não preocupada inteiramente com as demandas da comunidade negra, o que reputamos um equívoco, pois pagodes do fundo de quintal, o funk consciente têm conteúdos políticos, mas que não são explorados pela mídia tradicional.

Esta ausência evidencia a existência de um critério estético, já que convidados devem ser importantes para luta política cultural negra. Assim, se no campo da poesia essa distinção não acontece, visto que poemas de amor e de sexualidade, inclusive convidados muitos vezes sem ligação com movimentos negros, apenas tendo produzido literatura, sem nenhuma espécie de engajamento, são convidados para fazerem parte da roda de poesia, esse mesmo critério poderia ser aplicado às escolhas dos convidados musicais. Contudo, podemos perceber por meio de suas edições que, estas atendem ao grande espectro de experiências musicais negras em vários gêneros musicais, e o samba desponta como uma das experiências mais fortes e presentes nas edições analisadas do Sopapo Poético80.

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80 A distinção é para mostrar que o samba constitui-se como elemento importante para os negros brasileiros, pois possibilitou uma maior visibilidade, sendo um lugar que mantem viva as tradições