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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

10. Mestre-sala dos mares

5.3 O coletivo Negro Sopapo Poético

Um coletivo não é formado apenas por uma pessoa, é necessário um grupo com mesmos interesses. Ele foge aos regramentos das instituições sociais ou ONGs, como: estatutos, filiados, sócios, prestação de contas, eleições, mudanças de gestão e, a parceria público e privado não é obrigatória, nem sustenta o coletivo. Funciona de maneira mais aberta, e também tem seus regramentos, e no caso há pessoas que entram e saem, mas um grupo básico permanece.

Quando é um coletivo negro, o ser negro é o principal regramento, pois faz as pessoas quererem estar juntas com a intenção de avançar na política cultural e antirracista. Os coletivos são uma nova forma de associativismo negro do século XXI. No caso do Sopapo Poético, existe uma instituição que dá suporte para que ações do coletivo aconteçam, é a Associação Negra de Cultura, fundada por Oliveira Silveira.

Em certa medida, elas funcionam juntas, mas com reuniões e objetivos diferentes. O Sopapo Poético foca na poesia, na música, no empreendedorismo negro como mote central do seu trabalho, articulando diferentes grupos, pessoas e movimentos sociais negros. Cada integrante do coletivo tem uma função que é de acordo com suas qualidades e habilidades musicais, organizativas e performativas. As mulheres são maioria no coletivo, são elas que estão em espaços importantes na organização do evento, bem como na divulgação e ampliação da rede de pessoas que formam o coletivo Sopapo Poético, são ainda agentes e suas vozes ouvidas tanto nas reuniões, quanto no dia do evento. É sobre elas que repousa a responsabilidade de abrir a roda de poesia ou iniciar os trabalhos no Sopapo e a parte percussiva conta com Pâmela Amaro Fontoura e Lilian Rocha, duas mulheres negras referências hoje na cidade de Porto Alegre.

Os homens negros não exercem poder sobre essas mulheres, como uma visão patriarcal poderia esperar, pelo contrário, naquele espaço decisões são tomadas conjuntamente entre os gêneros e são complementares.

O fato de ser um coletivo que completa oito anos em 2020, demonstra como se sustenta, e mantem vivo o legado de militância negra pela arte e pela cultura na cidade. Corrobora ainda que não é apenas no evento que o protagonismo das mulheres e dos homens negros se concede de maneira igualitária, ele reflete o modo como o Sopapo Poético funciona, sem hegemonia masculina. O fato de ouvir mulheres negras desde 2012 vai dando aos homens negros entendimento do seu lugar e o seu papel de gênero na sociedade do ponto de vista afrocentrado, os quais hierarquias de poder masculino não se sustentam, pois estão pautadas a partir de outra lógica. Nah Dove (1998) citando o conceito matriarcal desenvolvido por Cheikh Anta Diop, aponta que:

A definição de cultura matriarcal e sociedade como baseada em relações recíprocas, complementares e, portanto, não hierárquicas não sugere que as mulheres foram ao mesmo tempo superiores a mim (DOVE, 1998, p. 522- 523).72

Neste sentido a religiosidade de matriz africana, apesar das transformações históricas ainda mantem as mulheres como protagonistas, e é a partir do caminho da _______________________

72 Do original: definition of matriarchal culture and society as one based on reciprocal, complementary, and therefore nonhierarchical relationships does not suggest that women were at one time superior to me (DOVE, 1998, p. 522-523).

pluralidade interna que o Sopapo tenta demostrar, advindo da religiosidade afrobrasileira, ou melhor, negra e preta, procura abarcar experiências plurais do negro no Rio Grande do Sul. Para o professor José Carlos Gomes dos Anjos em A Filosofia

Política da Religiosidade Afro-Brasileira como Patrimônio Cultural Africano:

A ideologia da democracia racial fecundou toda uma imagem do Brasil como o país do sincretismo, da miscigenação racial. Para essa ideologia a imagem do cruzamento das diferenças está mais próximo de certo modelo biológico, em que espécies diferentes se mesclam uma resultante que seria a síntese mulata. A religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro das diferenças que é rizomático: a encruzilhada como ponto de encontro de diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem como pluralidades (ANJOS, 2008, p. 80).

O Sopapo Poético é um espaço atravessado pela religiosidade de matriz africana, movimentos sociais negros e pelo legado da arte, literatura e música negra, o qual denuncia os efeitos do eurocentrismo no sul do país. O conceito de afrodiáspora abre a possibilidade de compreender os efeitos do eurocentrismo no subdesenvolvimento dos países africanos, anteriormente ao processo de constituição da modernidade, pois possibilita entender de acordo com Renato Nogueira: em Ubuntu

como modo de existir: Elementos gerais para uma ética afroperspectivista:

[...] as bases racistas, os processos históricos e as implicações da escravização impetrada por árabes e europeus de povos negro-africanos a partir do século VIII, as migrações forçadas de povos negro-africanos na condição de pessoas escravizadas para o próprio continente europeu e, em seguida, para colônias europeias entre os séculos IX e XIX, além das relações entre elites europeias e classes dirigentes africanas, com a cumplicidade de setores dessas elites africanas, foram estabelecidas relações assimétricas que foram decisivas no estabelecimento do modelo europeu de Estado-Nação e subdesenvolvimento dos países africanos no cenário mundial (NOGUEIRA, 2012, 148).

Seus integrantes atuam como servidores públicos, professores, ativistas sociais, músicos, escritoras e trabalhadoras formando uma pluralidade de experiências sociais negras que se multiplicam e ressoam na experiência musical e poética negra no sul e no Brasil, atentas à produção do conhecimento de textos de referência negra, em razão do legado deixado pelo poeta Oliveira Silveira através da Associação Negra de Cultura, e também fruto de pesquisas individuais de alguns de seus integrantes.

Uma das regras do coletivo é justamente, ser pessoa negra, e que tenha família negra73. Além disso, depois de sair das reuniões, refletia se eu poderia ser

sopapeiro e acompanhar todos os eventos do Sopapo Poético, agenda de reuniões, representação na mídia e em outros espaços, sendo professor da rede pública que trabalha 50 horas semanais, além dedicação fora desse espaço, à leitura acadêmica e ao mesmo tempo cumprir as obrigações compartilhadas do lar.

Ou seja, tinha de haver um compromisso total com o projeto Sopapeiro, mesmo sendo músico participei quando solicitado a tocar e acompanhar o sarau. E noto que aos poucos foram percebendo que eu não poderia ser sopapeiro, pois exigia uma série de atributos, ser audiência era um lugar mais confortável, porém não menos tenso, pois me via sempre com a vontade de querer participar, mas esperava o convite.

As pessoas que fazem o Sopapo Poético reservam a última terça de cada mês, dia de Xangô, o orixá da justiça, trovão e fogo. Certamente o dia escolhido pelos arquétipos que esse orixá traz como referência, para o Sarau Sopapo Poético:

O sagrado enquanto alteridade é carregada para “dentro” fazendo explodir a unidade do sujeito. Trata-se de uma vivência da alteridade numa concepção de pessoa completamente diferente daquilo que a modernidade ocidental nos apresenta: o “outro” introduzido no “mesmo” fazendo explodir a mesmidade como possibilidade de pensar e ser. Que essa operação de diferenciação tem a ver com o percurso por um território de imensas possibilidades de ser, a linguagem émica o diz na expressão“se ocupar” – o santo, o exu, o caboclo “se ocupa” da pessoa, faz de seu corpo um território no qual pode cavalgar. O corpo, que é o “cavalo de santo”, o terreiro é o lugar de sobreposição de territórios (ANJOS, 2008, p. 86).

Os sopapeiros dedicam-se, de março a novembro, nesse dia, entre outros, para a política cultural negra e a luta antirracista, dando contribuições enormes ao campo da educação, em especial da música, ajudando na construção e valorização de _______________________

73 Asa Hilliard, em Historical Perspectives On Black Families (1985), em uma conferencia sobre famílias negras aponta o controle reduzido das famílias negras no processo de socialização das crianças e os efeitos da mídia sobre essa socialização. Vê a importância do uso da história, da cultura na preservação, sobrevivência, e enaltecimento da família negra. Segundo a autor, uma familia negra “é uma família que tem uma memória comum. A família negra saudável é uma família que tem valores comuns. A família negra saudável é uma família que coopera por causa de sua memória e valores comuns. “A família negra saudável é uma família que possui um sistema educacional formal e informal que ocorre fora das escolas públicas ou em qualquer outro lugar e é conduzido pela família”. Do original: “is a family that has a common memory. The healthy black family is a family that has common values. The healthy black family is a family that cooperates because of its common memory and common values. The healthy black family is a family that has a formal and informal educational system that takes place outside the public schools or anywhere else and is conducted by the family” (HILLIARD, 1985, p.9).

repertórios musicais negros voltadas para especificidade negra, tudo isso a partir de um legado do qual o Sopapo Poético é herdeiro. Portanto ser sopapeiro não é uma tarefa simplória, requer dar conta tanto de sua agenda pessoal, tanto da coletividade artística, deixar se ocupar assim pelo espírito sopapeiro e pelas aprendizagens que o terreiro, como território sopapeiro proporciona de possibilidades.