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CAPÍTULO 3- O BANDONE DO CAVERÁ, PALMARES E ASSOCIATIVISMO NEGRO

10. Mestre-sala dos mares

6.2 As regrinhas do Sarau

Após a fala de Vladimir uma nova fase começa no Sopapo, é o momento de explicação das regras que determinam o funcionamento do Sarau, Sidnei Borges ou Pâmela Amaro Fontoura exercem esse papel sistematicamente:

Gente o meu papel é falar das regrinhas do sarau tá, todo mundo pode participar, mas a gente tem três regrinhas basicas que é a primeira agente lê, declamar uma poesia de uma autora negra, ou de um autor negro, comprometido com nosso orgulho negro, com nossa libertação, que aqui a gente trata de se exaltar, então vamos nos comprometer com isso... a segunda regrinha, é que quem vier aqui na roda, lê uma poesia por vez, pra que mais gente possa também ocupar esse espaço e falar, e a terceira regrinha é que a gente não se estique muito e de atenção mais pra poesia, que é uma forma que nós aqui no Sopapo Poético encontramos de transcender a nossa militancia, falando através da poesia. Fala um pouco da sua história, legal, mas não se alongar muito, que é pra gente curtir o momento, um dos momentos mais lindos aqui do sarau que é a roda da poesia, vamos frisar bem a poesia, mesmo. São essas três regrinhas. Eu queria também que a gente batesse palmas, uma energia de parabéns pra Maria Conceição Lopes da Fontoura que hoje defendeu a tese de doutorado dela (EDIÇÃO SOPAPO POÉTICO, Pâmela Amaro, out, 2017).

Essas regras são fundamentais para o exercício prático do protagonismo negro na roda. Mesmo a maioria das pessoas sendo negras, há não negros que participam e inclusive aqueles negros que chegam pela primeira vez no Sopapo Poético e imaginam que podem declamar ou ler qualquer poesia. Neste segmento o coletivo é firme ao “controlar” e exercer o poder fidedigno que construíram como espaço de poesia negra na cidade, deixando de maneira direta ao público ou audiência a poesia que pode ser executada, na intenção de promover os escritores (as) negros e negras para não perderem a sua agência para os não negros, me disse Sidnei em conversa informal: “é o momento dele sentir que ele não é protagonista, como é cotidianamente”, ou seja, não é uma exclusão, mas sim um processo educativo tanto para negros e principalmente para brancos ou descendentes de europeus que vão à roda de poesia.

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culturais africanas e seus agentes, que ao longo da história renovam discursos e atualizam suas experiências. É o caso, por exemplo, de Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Fundo de Quintal, mantendo sempre o legado da geração anterior, por isso, mantem-se ainda no cenário nacional, pois o samba é o que estrutura ainda hoje a identidade nacional com suas inúmeras variações. Foi agente, muito mais do que objeto, e muito menos um movimento cedido ou criado pelas elites como um espelho de suas produções artísticas, culturais ou hegemônicas no pós- abolição.

Figura 24. Sopapeiros da esquerda para direita: Pâmela Amaro Fontoura, Naiara Silveira, Sidnei Borges, Vladimir Rodrigues, Fátima Farias, Lilian Rocha, professora Marieta, Kyzzy Barcelos e Jorges

Froes na leitura dramática em homenagem ao Oliveira Silveira.

Fonte: Feijão

No momento em que Cristina, Vladimir, Sidnei ou Pâmela estão falando, um cesto com poesias de autores do Sopapo e também de Oliveira Silveira circula entre a audiência, principalmente entre os que elegeram por bel-prazer participar da roda de poesia. Logo que termina de explicar a regra, momento em que todos fazem silêncio para ouvir, a música retorna novamente como elemento articulador entre a luta política, as narrativas da comunidade e as poesias que serão lidas, declamadas e performatizadas81.

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81 A antropóloga Ruth Finnegan, em seu livro Oral Literature in Africa (2012), também tem se debruçado sobre o trabalho dos músicos negros, mas com uma atenção especial à questão poética. Neste livro, a autora nos mostra como a poesia e a música são elementos importantes nas tradições históricas dos africanos de diferentes países, como África do Sul, Gana, Quênia, entre outros, através do relato de acontecimentos históricos. Além disso, apresenta-nos o quanto os “músicos poetas” transitam por diferentes lugares do continente africano, servindo como músicos profissionais das cortes ou então trabalhando como freelancers em funerais e outros eventos para os quais são contratados. Finnegan, cuja preocupação recai também sobre as performances e a produção musical e sônica, aponta que, diferentemente do modo como pensamos a poesia, como algo exclusivo da criação literária europeia, os africanos produziram também literatura. Para os povos do continente, a oralidade funciona como princípio importante, pois possuem uma longa tradição em que música e poesia estão totalmente imbricadas ao narrarem não apenas heróis, mas também o cotidiano das cidades, dos reinos e dinastias.

Nesse momento, a seleção da música é um Swing, gravado por uma das referências negras no sul do país, Bedeu, falecido em 1999, mas que deixou um legado de valorização da cultura negra. A música Tá na Hora serve como motivo de incentivo à participação, principalmente dos homens que entram na roda de poesia:

Tá na hora meu amigo antes que cê esqueça

De mandar pra todo mundo que cê tem nessa cabeça Tá na hora de dizer a verdade

Abre seu peito e canta bem alto Pra toda cidade ouvir

Tá na hora meu amigo antes que cê esqueça

De mandar pra todo mundo que cê tem nessa cabeça Na cabeça tem um chapéu

Em cima da aba tem o céu Que é tão bonito

Tá na hora meu amigo antes que cê esqueça

De mandar pra todo mundo que cê tem nessa cabeça82

Considero a música acima um clássico do swing no Rio Grande do sul, incorporado ao rito sopapeiro e acompanhado por Vladimir Rodrigues no violão junto dos músicos que fazem parte da banda, uma delas é sempre Lilian Rocha e Pâmela Amaro Fontoura, essa última normalmente é quem canta toda a canção, junto com a audiência que faz o coro.

O swing, assim como o samba, é um dos gêneros musicais negros mais tocados no Sopapo Poético, e essa é uma canção que faz parte da roda de poesia83, não

meramente pelo conteúdo da sua letra que é convite na participação do Sarau, mas também, pelo seu modo rítmico, ao longo de sua “levada”, sendo fundamental na ativação da memória musical dos ouvintes, fazendo referência indireta a grandes nomes _______________________

82 Faixa 14

83 A experiência musical e poética não é exclusiva da experiência negra. Entendemos como aponta o livro

Palavra Cantada: Ensaio sobre música, poesia e som, abordada essas relações e conexões, referidas pelas

autoras como “fatos de palavras cantadas”, que teriam como abrangência desde a canção popular urbana até o canto erudito, acrescentando ainda os poemas, formas de arte vocal como aquelas dos indígenas, das comunidades afrodescendentes, das populações rurais, entre tantas outras (MATOS; TRAVASSOS; MEDEIROS, 2008, p. 7).

desse gênero em nível nacional, tais como: Alexandre Rodrigues, Luiz Wagner e o grupo Pau Brasil, que foram homenageados pelo Sopapo Poético, bem como outros artistas. Isto, afirma o quanto esse ritmo afeiçoado por sua musicalidade negra no Sul, pelas próprias narrativas de seus integrantes desempenha função essencial na estrutura da identidade musical negra, destarte, outros gêneros musicais como o rap e a música negra afro-gaúcha, que mescla os díspares gêneros musicais produzidos no Rio Grande do Sul e que aquilatam o patrimônio musical negro afrobrasileiro.

Figura 25. O primeiro poema lido a roda do Sopapo Poético e a segunda performance musical (Pedro Acosta)

Fonte: Feijão

Essa canção, normalmente é aquela que tange poetas homens para ingressarem na roda da poesia. Eles habitualmente coadjuvam, como Sidnei Borges, e recitam seus poemas, ocasionalmente memorizados, outras vezes com auxílio de manuscritos, impressos ou do celular, elemento presente principalmente entre os poetas negros de Slam que participam do Sarau do Sopapo Poético.

Os sopapeiros em todo tempo performatizam seus poemas, estando entre os que fazem parte da audiência, almejando o momento de serem chamados. Essa expectativa pelo chamado produziu uma ansiedade e angústia em mim quando fui parte da audiência convidada a ler um poema, não que não tenha sido outras vezes convidado, mas que por alguma razão, nunca consegui ler, porque abria mão para dar lugar a outro

poeta, em uma delas o tempo da roda tinha se esgotado e não fui chamado por Fátima Farias.

No final do trabalho de campo participei e escolhi o poeta Jorge Fróes, pois ele havia me oferecido um dos seus últimos trabalhos que dizia:

Eis que me descobri A vida humana começou em meu continente de origem,

e a minha mãe (África) é a mãe de todos os homens.

Eis que me descobri. Que as favelas, que as prisões,

que os menores abandonados, na sua grande maioria

são meus irmãos Eis que me descobri no meu riso grande, no meu jeito,

apesar de todas as dores, um jeito alegre de viver

Eis que me descobri e me descobrindo, descobri minha força. Minha força não aceita comparação com o super-homem minha força não pode ser medida

com dinamômetro, porque minha força

é uma força viva: África, Harlem, Brasil... Minha força luta todos os dias para continuar sendo ela mesma.

Minha força luta todos os dias, por casa, comida, lazer, dignidade para vida humana. Minha força ensinou e ensina

ao mundo os caminhos da liberdade Eis que me descobri, e me descobrindo, descobri

que minha força é uma força negra

Figura 26. Remanescentes do Pau Brasil em Performance na roda de poesia. Ao centro, Alexandre, lado esquerda, trovão e à direita, Ci e Giraya84

Fonte: Feijão

Depois de ler essa poesia cantei a música Tá na hora, de Bedeu, e pude ver a audiência cantando junto comigo. Essa canção foi executada ao vivo pelo grupo Pau Brasil que foi homenageada pelo Sopapo Poético em novembro de 2018. Uma sensação muito boa, a música ajuda a tirar o nervosismo e a diminuir a ansiedade, bem como dá coragem para entrar na roda e para sair da roda também, produz uma energia ou um axé.