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CAPÍTULO 1 IDENTIDADE, RAÇA E PROTAGONISMO NEGRO

2.2 O Músico-poeta

Hoje os poetas em Porto Alegre têm feito uso não apenas da poesia em suas vidas, alguns exercem além do ofício da escritura, a música de maneira formal ou informal realizando shows, cantando em saraus, ou em seus lares30. Os espaços de

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29 Do original: refers to societies in which economic, political, social, and ideological levels are partially structured by the placement of actors in racial categories or races

30 Ruth Finnigan (2007) The Hidden Musicians: Music-Making in an English Town, Wesleyan faz a partir da linhagem dos estudos culturais, um estudo sobre músicos amadores e profissionais na Inglaterra na cidade de Milton Keynes. Busca analisar as várias práticas musicais existentes ao longo da história da cidade. Nesta comunidade, segundo a autora há uma imigração internacional que mudou as práticas da comunidade, tornando-a mais heterogênea. Faz uma etnografia especifica de um lugar situado no espaço e no tempo. Os músicos amadores são centrais em sua análise. Outra referência da mesma autora é artigo O

que vem primeiro: o texto, a música ou a performancer Finnigan (2008), que também aponta a

Saraus têm apresentado historicamente papel importante na vida da cidade, basta lembrar dos poetas e escritores do Parthenon Literário, entre eles o Maestro negro Joaquim José Mendanha, figura importante na cena musical de Porto Alegre como professor e maestro em saraus do século XIX, além de ser responsável pela formação de sociedades musicais, como exemplo a Sociedade Musical Porto-alegrense, União Musical Brasileira, Musical Rio-grandense e Musical 7 de Setembro (FREITAS E CASTRO, 1968). Os encontros de literatura na volta do Mercado Público, ponto de encontro dos intelectuais negros da cidade no século XX, os quais, nos anos 70 Oliveira ajudou a construir.

Porto Alegre, por ser uma cidade urbana e a capital do estado, tem um passado histórico na literatura nacional com o poeta Mario Quintana, Caio Prado Junior, Moacir Sclier, entre outros. Quintana com seus poemas ajudou a construir e revelar essa cidade, hoje com mais de 1 milhão de pessoas assim como ele, o qual Oliveira Silveira era admirador, profundo conhecedor da cidade narrou a vida dos negros e negras no Rio Grande do Sul.

Oliveira Silveira vindo do interior de Rosário do Sul e com mestres das religiões afro-gaúchas fez parte de um contexto que buscava cada vez mais desconstruir a ideia de que o batuque era uma raiz do candomblé no sul do Brasil, Oliveira usou todos os elementos sônicos possíveis em sua linguagem poética, inclusive algumas sendo títulos dos seus poemas e livros para valorização da religiosidade do negro no Sul e desenvolvendo uma musicalidade própria da poesia como afirmou o músico-poeta Ronald Augusto, que foi amigo de Oliveira Silveira.

Obra Reunida do Oliveira Silveira, organizada por Ronald Augusto (2012),

é considerado o livro que dá um panorama da grandeza da obra Silveirista. Ronald é

formado em filosofia, crítico literário, compositor, poeta, escritor e músico. Em entrevista ao programa Músicas do Mundo Etnomusicologia na Rádio da Universidade, ajudou-nos a compreender o sentido da poesia e deu uma versão que contribui para análise e mostra centralidade da questão racial, do racismo como um problema a ser enfrentado:

[...] a poesia não é uma voz natural, a poesia é uma voz cheia de artifícios, o poema não é uma linguagem de todos os instantes, ela é uma linguagem de alguns instantes que a gente usa através de

recursos estéticos para recriar tais e tais situações....a poesia e a literatura pra mim não são discursos que desvelam o mundo, eles são discursos que tornam o mundo mais complexo. Eu entendo a poesia e a linguagem literária como um discurso que não vai resolver os problemas. Claro que os poetas podem falar sobre os problemas do mundo dos escritores, dos artistas, e mesmo que fale em literatura negra contemporânea, ela fala sobre um problema gravíssimo e central da formação brasileira que é o racismo, não tem outro problema pra mim, o problema do Brasil é o preconceito racial. Enquanto o Brasil não souber, a sociedade brasileira não souber lidar com as pessoas negras, com sua população negra, reparar todos os erros históricos cometidos ao negros, nós não vamos achar solução nenhuma, mas a poesia não é esse lugar da solução, é o lugar onde os problemas aparecem esteticamente transfigurados (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Ronald Augusto, nov, 2018)

É justamente esses problemas transfigurados na poesia, na literatura e na música, bem como nos aspectos da sonicidade musical negra que buscamos provocar neste capítulo na intenção de refletirmos e produzir interpretações através de uma análise etnomusicológica.

Essa tarefa nos leva a não cair em dicotomias, em tal caso as diferenças no que é música e o que é som, mas sim nos apontar como esses elementos operam dentro da poesia, tornando-a mais complexa a partir da sonoridade.

Figura 5. Ronald Augusto e Oliveira Silveira

Esses “problemas transfigurados”, apontados por Ronald Augustos são solenes para analisarmos o quanto a tradição diaspórica negra tem utilizado a literatura como forma de ação política. O sônico ajuda o leitor a construir a interpretação da poesia, em consequência os saraus negros mexem tanto com as audiências negras, dado que é o momento em que a poesia e a música se encontram tornando-se obrigadas a ocupar o mesmo espaço e estarem em interação, Nketia nos ensina que:

No nível superficial, o nexu poderia ser de subordinação, com a música servindo como "pano de fundo" ou um meio de criar e manter uma atmosfera para sustentar uma atividade ou estimular a interação intencional (NKETIA, 1990, p.87)31

E essa interação que certamente fascina Oliveira Silveira, que sempre manteve viva essa relação buscando diferentes formas para que a música emergisse em som, através do ritmo ou da rima, da métrica do samba em seus versos, das ações que realizava com o grupo Semba, ou ainda fazendo indicações de espaços culturais, grupos musicais, gêneros musicais em suas poesias.

Ronald Augusto comenta sua surpresa em relação a esse lado musical do poeta da negritude:

[...] toda a experiência de amizade fraterna, que eu tive com o Oliveira, ao longo de sei lá, 20 anos foi genial, ele era uma pessoa super gentil, assim educadíssimo, nunca vi o Oliveira perder a cabeça, jamais com nada, e ele nunca foi um sujeito acovardado como se diz assim, pô é só olhar a literatura dele. Um intelectual negro ligado a essas questões, também, além de ser um grande poeta, super gentil, educadíssimo, mas nunca deixou de fazer a critica contundente quando era necessário fazer, mas essa parte dele de músico, a gente foi descobrir bem depois, eu falei que a gente conviveu durante uns 20 anos e mais, eu acho que lá pela metade que eu descobri isso, mas a gente nunca fez nenhuma parceria, mas de vez enquanto ele tocava umas músicas. Eu e acho que Jorge Fróes também, as vezes nos encontrávamos no apartamento dele, um dia lá no apartamento dele tinha um violão, ele pegou e tocou, depois descobri também que ele tocava gaita. Ele tinha o grupo Semba de arte e cultura negra, ele rebanhava, reunia a gurizada jovem, e fazia eventos, saraus. Ele tocava também atabaque, tocava violão muito legal também, e as composições muito bonitas, tem uma que é assim (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Ronald Augusto, nov, 2018).

Eu venho do pelourinho32,

passei pela igreja do ouro, eu não entrei, meu irmão,

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31 Do original On the superficial level the nexus could be one of subordination, with music serving as "background" or a means of creating and maintaining an atmosphere for sustaining an activity or stimulating purposeful interaction.

eu não entrei não,

a cruz e a espada macomunada querendo o nosso coro.

lembrei, pensei, que desaforo

Ele disse que ele foi a salvador, e lá ele não quis entrar na igreja, não vou entrar ele disse não vou entrar nessa igreja. É uma igreja famosa e museu. Ele não entrou em função desse passado da igreja. Ele era muito coerente, as vezes ele era severo até demais com ele mesmo com a história dele mesmo, mas ele era genial.... uma vez eu fiz uma música com o poema dele, estilo antilhano caribenho, ele gostou, foi muito legal (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Ronald Augusto, nov, 2018)

O lado compositor de pequenos sambas também era parte da vida de Oliveira Silveira por toda a sua experiência musical presente no seu passado em Rosário do Sul. Fazer um samba tratando de recordar o histórico opressor que a igreja continha era uma forma dele responder por meio da música, e isso justamente para não cair na estética do belo, que toda a construção histórica possui, mas sim trazer a sua contradição, uma igreja que foi cúmplice do processo de escravização dos africanos.

Outro momento importante em que a música opera de forma constante foram os Saraus que realizava em Porto Alegre. A cada poema ou poesia interpretada, Naiara Silveira em entrevista ao programa Músicas do Mundo, propalou-nos e cantou um verso proferido durante as rodas de poesia realizadas no mercado público no final dos anos 70, no que chamou dos “altos do Mercado Público” (segundo andar do imóvel) que reuniam, segundo ela, poetas negros para divulgar os seus poemas e também músicos, nas sextas-feiras à noite, onde Oliveira Silveira divulgava através de um jornal chamado Boletim da Roda. Conforme Naiara, ele “fazia em Xerox, distribuía na roda” e entregava na esquina democrática para as pessoas que passavam pelo centro de Porto alegre.

Poesia na roda33

Quem chegou é bem chegado Umbigada em você

Pra dizer, dar o seu recado

Abria com essa música, o pessoal falava o seu poema, depois vinha de novo, infelizmente eu não tenho registros, nem foto, nem mesmo gravação desse momento (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Naiara Silveira,dez, 2017).

_______________________ 33 Faixa 3

Ao ir para o centro de Porto Alegre e oferecer em mãos os convites para as rodas de poesia, o poeta sai do lugar consagrado de contemplação e se aloca perto de sua audiência, expõe seu corpo, rosto, seu conhecimento para fazer amizade e sensibilizar através da arte. Essa atitude mostra um poeta da rua, meticuloso a tudo e a todos.

Figura 6. O grito da periferia- Paulo Correa

Fonte: Paulo Correa

O grito, presente na obra do artista plástico Paulo Correa, é revelador dessa

necessidade que a poesia e os músicos-poetas negros nutrem na cidade, uma vez que buscam serem escutados; revelando uma cidade pequena diante da acuidade do negro como parte desta história.

Essa abertura das rodas de poesia no Mercado com a música era uma forma de conectar a tradição de saraus presentes na cidade. Oliveira dá continuidade ao legado dos poetas afro-gaúchos, intelectuais e acadêmicos das diversas áreas que lidavam com a literatura. O escritor soube como ninguém tirar proveito de sua formação acadêmica, luta política ao mostrar sua perspectiva local como negro no Sul do Brasil, sem perder a referência africana.

Ele então cria o grupo Semba, para divulgar o trabalho artístico, musical e poético dos negros do sul, entre os anos 1979 a 1999. Segundo sua filha

O grupo Semba ele foi criado em 1979 com alguns membros do Grupo Tição, depois as pessoas foram saindo e entrando adolescentes, acabou que o grupo se formou em um grupo basicamente de adolescentes, que o líder mais velho era o meu pai, e o meu pai sempre teve essa preocupação com a autoestima do adolescente negro, o fato dele se apropriar de sua história, de suas origens, de sua cultura. O grupo trabalhava com a cultura do negro em forma de dança, o grupo trabalhava com jongo, lundu, samba de roda, afoxé, dança dos orixás, maçambique, e a música, partido alto, jongo, bloco afro, maçambique .... Essas músicas tanto eram cantadas em Português, quanto em Yoruba também, nós fazíamos pequenas esquetes tratando a questão do racismo, e a poesia fazia parte das nossas apresentações. Nos ensaios, nós recebíamos muitas informações, estudos sobre tudo que nós iríamos apresentar, não era uma coisa assim solta, cantar por cantar, era um grupo sério, apesar de ser um grupo formado por adolescentes, nos tínhamos um respeito muito grande pelo nosso líder. Eu, e ele também sabíamos que precisávamos de momento de descontração, a energia imperava. O repertório vinha dele, ele que trazia as informações que escrevia as músicas enfim, mas ele sempre trazia o estudo daquilo ali que nos iríamos apresentar. Foi uma grande fase. Esse grupo permaneceu por 20 anos um pouco mais talvez, teve grande importância na vida de seus componentes, foi um divisor, nos viajávamos, nos conhecemos lugar diferentes, hoje ainda mantemos amizade, tamanha importância, solidez, o vinculo, tudo. Agora nos temos filhos, os filhos também convivem, e essa era a preocupação do meu pai, a questão da formação da família negra, a sua manutenção, a base de uma resistência de uma raça é a família, e ele se preocupava muito, e através desse grupo então foram namorando, casando, foram formando novas famílias. Anualmente nos fazíamos um espetáculo apresentado no Teatro de Câmara, sempre abria espaço pra nós, além de eventos, que o grupo organizava na Casa de Cultura, em outros espaços, clubes, escolas, fomos pra Osório no Maçambique, fomos pra FENADOCE em Pelotas, pro Uruguai, Rio de Janeiro na festa da beleza negra (PROGRAMA MÚSICAS DO MUNDO, Naiara Silveira,dez, 2017).

Neste dia, Naiara foi com um caderno de anotações, gravou o programa acompanhada ao violão com Vladimir Rodrigues, na época integrante do grupo afroentes e um dos fundadores do Sopapo Poético. Eu estava bem nervoso naquele dia, era uma das entrevistas mais importante que já tinha feito naquele ano, com a filha de um grande ícone da luta política negra. A narrativa de Naiara Silveira mostrou para mim o quanto o Oliveira Silveira tinha a preocupação com juventude negra, família negra e também com a valorização do patrimônio cultural africano no Brasil.

Aquele programa abriu outra porta para que pudéssemos pensar Oliveira Silveira além de músico-poeta, o seu papel de educador, ou o seu ofício de professor influenciando sua atividade cultural e política negra pela via da cultura através do grupo Semba. Ou seja, Oliveira articula não apenas a ação poética simbólica e representativa do negro, ele constrói através do exemplo, como desenvolver uma política cultural para comunidade negra. Para tal, como apontou Ronanld Augusto, ele fazia questão de lançar seus livros nas escolas de samba, principalmente em lugares onde a comunidade negra estava presente de alguma forma. Isto de uma maneira ou de outra influenciou gerações mais jovens que hoje fazem Saraus Negros na cidade de Porto Alegre.

Um dos elementos importantes apontado por Naiara Silveira foi o papel que a música tinha no trabalho do seu pai, o batuque e os orixás também eram constantes em sua narrativa e, conforme ela afirma que a “dança dos orixás” era algo presente na proposta do grupo Semba. O batuque denuncia a história da presença negra na cidade pela sua sonoridade, pelos ritmos alucinantes dos seus tambores, pelos cantos dos orixás, uma presença que mesmo com todo o trabalho feito por Oliveira, Mestre Borel, Pedro Homero entre outros persiste no imaginário sul rio-grandense branco em sua maioria como perigoso, assim, como seus sons e seus ritmos, ou seja, o sonicótipo negro causa medo.

Oliveira nos leva para dentro da experiência histórica e sintetiza esta fala diretamente ao público por meio de suas poesias e músicas, desenvolve uma linguagem de fácil entendimento, principalmente os seus poemas mais sônicos. Por essa razão ele é referência principal de poesia negra no Rio Grande do Sul.

Não é uma tarefa fácil superar Oliveira Silveira em razão do trabalho que desempenhou não apenas como poeta, mas como ativista, educador, escritor, entre outras funções que exerceu na vida, entre elas fez parte do Conselho Nacional de Educação durante as gestões do ex-presidente Lula.