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A temporalidade do processo de tornar-se

CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

4.9. Invariâncias nos dados obtidos

4.9.3. A temporalidade do processo de tornar-se

Sendo a gravidez um processo integrado na história única e singular de cada mulher, marcado por um tempo de incerteza e de transformações entre o desejo de ter um filho e a duração da espera, importa pensar como poderemos intuir, unir e interpretar o tempo do tornar-se na gravidez de risco. Neste processo, há que considerar um tempo de sonho (inconsciente) cujas coordenadas temporais generalizam, condensam e deslocam o passado, o presente e o futuro, seguindo a lógica simétrica de Matte-Blanco (1988) e, ainda, um tempo consciente, socializado e linear que tem implícita a irreversibilidade e a causalidade.

Assim, pode pensar-se que os pais, perante a possibilidade de não se tornarem, de não emergir um novo psiquismo, associada ao internamento abrupto durante a gravidez, parecem estacionados no tempo como coisa. A um tempo circunscrito pela necessidade de expulsar a coisa em si que inunda o psiquismo, através da projeção, da identificação projetiva e da

passagem ao ato, por uma questão de sobrevivência. Parados num tempo-espaço psíquico impensável. As emoções deste tempo tornar-se-iam afetos capazes de ser sofridos e integrados, desde que acolhidas e apreendidas por alguém, capaz de “ler” o inconsciente, alguém que se oferecesse como continente temporal e espacial ou, ao contrário manter-se-iam fechadas no tempo? Se a dor da bidimensionalidade do tempo e do espaço restritivo só pode tornar-se tolerada, contida e integrada num tempo de espera suportável e num espaço tri e tetradimensional pela capacidade de abertura do próprio e a disponibilidade do Outro (Meltzer, 1975), essa transformação só poderia operar através de uma abertura intersubjetiva de modo a restabelecer o fluir do tempo e construir uma verdadeira temporalidade.

Na primeira entrevista, a fragilização de Sara era revelada por um tempo parado, relatado como um corte, uma mudança brusca e inesperada. Em todo o seu ser e estar, o não passar do tempo dominava e fazia emergir nela uma necessidade de o fragmentar. Assim, surgia entrecortado entre as horas do dia e as semanas da gravidez, não era um tempo contínuo. A sua narrativa era marcada por uma condensação no atual. A angústia do atual fazia-a ficar numa espécie de expectativa vazia sobre o que iria acontecer no tempo, mas Abraão estava lá como continente espaço-temporal. Este também relatava a sua turbulência emocional, o choque do momento do internamento, não negava a tristeza perante a mudança intempestiva, mas nunca deixou de dar a primazia à mulher permitindo-lhe o restabelecimento do fluir do tempo e da esperança.

O facto intersubjetivo de eu a sentir presa a um tempo instantâneo, doloroso e parcial, do qual parecia querer libertar-se, levou-me a propor-lhe uma continuidade temporal, oferecendo-lhe uma espécie de quadro com as minhas visitas semanais.

Por seu lado, Isabel estava fixada nos percalços dos tratamentos de infertilidade, e parecia aprisionada pelas memórias-momentos dos tratamentos, pedaços de tempo, como se procurasse parar o tempo para poder controlá-lo, não fosse o tempo atual e o tempo futuro destruir-lhe o sonho de tornar-se mãe. Parecia estar grávida de si própria. Todo o seu ser e estar se revelava parado na impossibilidade. Temia não poder conter por muito mais tempo o filho-milagre-promessa. Zacarias, o marido, também parecia estar grávido de si próprio, assinalava o seu transtorno, absorvendo ou mimetizando a gravidez dela, focando-se num tempo circular e oscilante, marcado pela repetição.

No internamento, tanto uns como outros pareciam parados no tempo, imersos na angústia devida ao risco de não se tornarem e de não emergir um novo psiquismo.

Revelavam-se privados de futuro e oscilavam entre o temps du coup e o contre-coup marcado pelas primeiras reações de defesa, tornando difícil saber o que iria emergir après-coup. Mas, apesar destes aspetos comuns, já transpareciam singularidades pois, enquanto os primeiros deixavam antever uma possibilidade de mudança, os segundos espelhavam-se nas mesmas dificuldades.

Quando no tempo de tornar-se surgem novos eventos, que podem, ou não, ser potencialmente traumáticos, seria plausível pensar-se que os mesmos entrariam em ressonância com os anteriores, se apenas considerássemos as questões intrapsíquicas individuais como estados e não como processos e não atendêssemos às questões intersubjetivas.

Na verdade, após o nascimento, para a Sara o tempo mudara. Não estava detida no tempo, a intersubjetividade com o bebé tornara-se prioritária. Construía o seu próprio espaço- tempo e conferia-lhe movimento. Estava segura e capaz para lidar com as adversidades do tornar-se. Já tinha uma função continente. Abraão escotomizava quer o tempo, quer a sua vivência. Era mais lento a adaptar-se à sua nova identidade como pai, mas continuava a dar-se como continente da mulher.

Isabel, por seu lado, ainda não priorizava o tempo com o bebé, continuava prisioneira do tempo fixo dos a prioris persecutórios e idealizados e da inquietante estranheza. No tempo um da gravidez, tinha feito uma antecipação de que no tempo dois não estaria em bom estado, e que o marido teria que lá estar, porque o bebé poderia ser trocado ou roubado. Havia uma continuidade no tempo e na estranheza dela. Não se deixava tocar pelo bebé, sentia que o filho a alarmava, inquietava-se com o estranho. O marido, Zacarias, falava sempre em estar não estando e em como não estando, estava. Não estava no tempo nem no espaço. O seu ser e estar na continuidade era uma espécie de contiguidade ou acoplamento, desvitalizando-se no dia a dia ritualizado, que lhe interditava o exercício de uma função de continente.

Se na história de Isaac a diferenciação dos papéis de cada um dos pais era mantida ao longo do tempo do tornar-se e do crescimento psíquico do bebé, o que facilitava a todos a integração dos vários tempos vividos, no que toca à história de João sentimos que, ao longo do tempo, Isabel e Zacarias apenas iam tomando consciência da sua prematuridade.

Porém, no tornar-se e no crescimento psíquico há que associar as intratemporalidades de cada um dos pais e do bebé, com a temporalidade intersubjetiva da tríada.