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CAPÍTULO 3. METODOLOGIA

3.1. Introdução

O campo da atual pesquisa qualitativa foca-se não só no que sabemos e como sabemos, mas também no que fazemos com o que sabemos, incluindo abordagens reflexivas críticas à verdade e aos valores (Wallwork, 2003). Segundo Denzin e Lincoln (2011):

We occupy a historical moment marked by multivocality, contested meanings, paradigmatic controversies, and new textual forms. This is an age of emancipation; we had been freed from the confines of a single regime of truth and from the habit of seeing the world in one color. (p. 95)

Assim, a existência de múltiplas realidades por si só deve conduzir o investigador ao aprofundamento de aspetos “que necessitam de um mergulho intensivo, mais do que um olhar extensivo” (Eizirik, 2003, p. 29), onde predomine a lógica da descoberta e não a da verificação e a consciência de que toda a verdade é sempre parcial e incompleta, o que faz com que os conflitos decorrentes da investigação possam levar ao avanço da ciência, conforme se estabelece no modelo de quebra de paradigma de Kuhn (1962/1970). Segundo Denzin (2009, p. 82) “we must create a new narrative, a narrative of passion, and commitment, a narrative which teaches others that ways of knowing are always already partial. . . ” Contudo, apesar de uma progressiva consciencialização acerca da influência do investigador na recolha e análise dos dados, em geral a maioria dos estudos qualitativos assume os discursos dos participantes sem levar em conta os vários processos mentais como a ansiedade, o desejo ou as identificações projetivas (Hollway, 2004, 2010b, 2011).

No que respeita à pesquisa qualitativa, o uso da psicanálise, como discurso científico hipotético-dedutivo, tem vindo a proporcionar novos insights sobre os fenómenos sociais e culturais (Whitehouse-Hart, 2012), trazendo indiscutivelmente novos sentidos para o que se entende por objetividade ou replicabilidade (Klauber, 1968). Este entendimento significa que a psicanálise se poderá apropriar do paradigma qualitativo de investigação, ao mesmo tempo que é apropriada por este, numa partilha de raízes epistemológicas (Barbieri, 2008), que se estende a características metodológicas, técnicas e éticas.

Embora a verdade do Ser se revele inatingível, porque todos os modelos e os métodos que visam à sua apreensão são e serão sempre limitados,

a possibilidade de podermos captar o nosso objeto de estudo só pode operar num espaço e num tempo criados e recriados por dois sujeitos, ambos implicados subjetivamente numa interação que só o contexto e os saberes respetivos limita e delimita, espaço e tempo onde opera a intersubjetividade (Marques, 1999, p.34).

Assim, e apesar das questões éticas relativas ao uso de conceitos e técnicas, projetadas dentro de um ambiente clínico protegido, para a pesquisa qualitativa, a integração da psicanálise em projetos empíricos constitui uma mais-valia para o conhecimento e significa considerar que os conflitos são inevitáveis e fazem parte da psicopatologia da vida quotidiana (Freud, 1901/1969; Hollway, 2009a, 2009b, 2010b, 2011). Atender aos conflitos intrapsíquicos e intersubjetivos, para além do divã, pressupõe a necessidade de se prestar maior atenção ao papel do investigador, sobre o que é dito e pensado durante as observações e entrevistas. O facto da subjetividade do investigador ser hoje aceite como uma ferramenta para a compreensão e como um valioso instrumento na pesquisa científica, especialmente na investigação qualitativa, em estudos observacionais baseados em entrevistas, não significa que constitua um potencial obstáculo para a compreensão rigorosa do objeto de estudo ou que o paradigma utilizado seja o subjetivo mas sim o intersubjetivo. Só este paradigma nos permite explorar, aceder e compreender o nosso objeto de estudo com vista a uma aproximação à verdade consensual e intersubjetiva.

Assim, o self do investigador, em diálogo interno com os seus objetos, não é uma unidade separada do que pretende investigar no mundo externo, pelo contrário, ele vive uma tensão permanente consigo próprio e com os outros. Por estar envolvido com todo o seu Ser, no encontro intersubjetivo, pode afirmar-se a não existência de uma relação objetiva entre o investigador e o contexto da sua pesquisa, uma vez que todas as interpretações ocorrem na relação e não na mente individual de uma pessoa (Ogden, 1999; Symington, 1988). Deste modo, o reconhecimento das características inconscientes da e na comunicação entre entrevistador e entrevistado, o papel da subjetividade do investigador e o impacto das suas defesas (inconscientes) na geração e interpretação de dados, são fundamentais para que se possam fazer afirmações sobre a precisão e validade dos mesmos.

Os afetos mobilizados nos encontros entre pessoas, tal como as experiências empíricas, têm demonstrado a ocorrência da transferência como uma forma de comunicação

inconsciente e não-verbal (Schore, 2010). Os processos de transferência, contratransferência e identificação projetiva não são exclusivos da clínica ou da pesquisa empírica psicanalítica uma vez que podem ocorrer universalmente, intrapsiquicamente e em qualquer encontro entre duas ou mais pessoas. Apesar de noutros contextos e relações estes processos, principalmente inconscientes, poderem não ser pensados, os mesmos afetam o modo como os investigadores estão na presença dos investigados e o modo como compreendem a realidade. Desta forma, o insight sobre o papel dos sentimentos contratransferenciais dos investigadores durante o processo de investigação tem vindo a ser destacado em várias pesquisas (Andersen, 2003; Brown, 2006; Hollway & Jefferson, 2000; Midgley, 2006). O que distingue a pesquisa que utiliza a psicanálise de outras abordagens de pesquisa qualitativa (que dão relevo à subjetividade e à transparência) é o facto de nas primeiras os investigadores operarem na intersubjetividade, atenderem aos conceitos psicanalíticos e estarem em alerta para possíveis invasões do inconsciente na experiência de investigação. O amor, o ódio, o conhecimento, os desejos e as defesas podem afetar o processo de investigação em todas as suas etapas, pelo que é necessário um nível profundo de autoanálise. Mas, como é impossível fazer-se uma autoanálise completa, o trabalho de intervisão ou de supervisão constitui um recurso para consolidar a função analítica e entender as várias intrusões de forma a usá-las como uma ferramenta para promover a compreensão da investigação.

Assim, a nossa posição ontológica, epistemológica e metodológica, levou-nos a projetar uma pesquisa empírica, psicanaliticamente informada, sobre os processos envolvidos no tornar-se mãe, tornar-se pai e tornar-se bebé, tendo em conta a intersubjetividade consciente e inconsciente dos participantes (sendo o investigador considerado como participante).