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Sara no espaço mental do grupo de pares

CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

4.3. Sara, Abraão e Isaac O primeiro encontro (no hospital)

4.3.3. Sara no espaço mental do grupo de pares

Na análise dos dados o grupo centrou-se sobre a relação intersubjetiva estabelecida ao longo da entrevista de modo a destacar o clima emocional da mesma. A relevância dada ao impacto global da situação sublinhava a diferença entre a análise textual comumente utilizada na análise das transcrições de entrevistas e os processos de pensar sobre a dinâmica emocional intersubjetiva apresentados.

Um dos elementos do grupo destacou a oscilação que Sara fazia entre o plural e o singular e como ela ia tentando fazer dicotomias. A permanente tensão entre a perspetiva da primeira e terceira pessoas, entre o eu e o nós, permitia que Sara pudesse construir uma

narrativa pessoal menos cristalizada, mas depois perdia o fio por colocar em dúvida as suas possibilidades de poder conter o bebé.

(M)… já andávamos a tentar engravidar há muito tempo… Há dois anos tive um aborto … dei um tempo antes de tentar engravidar e depois andei cerca de um ano a tentar e não conseguíamos… diziam que estava tudo bem com o bebé, mas depois foi detetado que o colo do útero estava curto… estava a fazer a minha vida normal… Agora claro, não consigo fazer nada… Eu só queria chegar ao fim… Acho que as pessoas aqui deveriam ter todas algum apoio…

Sara sentia o risco de o bebé se poder tornar numa outra cicatriz. Quando falava no apoio que as pessoas ali deveriam ter, era ela que sentia precisar desse apoio, de alguém que viesse de fora para ela poder sentir que a gravidez é boa. Fez uma denegação quando disse: mas eu estou muito feliz com esta gravidez.

Ao longo do discurso notava-se-lhe uma oscilação de limites entre o eu e o outro fluído (o nós era referido para se nomear como mulher, para se nomear a ela e ao bebé e a ela e ao marido). Daí o seguinte trecho:

(M)… temos pena de nós mesmas… … gostava de lhe poder transmitir que não é com ele que estou triste, mas com isto que nos está a acontecer… nós queríamos aproveitar…

Nela o tempo estava entrecortado entre as semanas da gravidez, não era um tempo contínuo. Utilizava balizadores temporais. No seu discurso havia algo isolado e não conectado. Surgia novamente uma fluidez temporal estranha que novamente era entrecortada, quando referia:

(M) … entrei com 23 semanas, fiz ontem 26, depois falta passar das 26 às 28 semanas, depois das 28 às 32… se chegar às 32 semanas já posso respirar de alívio… e pronto, há dias que eu estou muito em baixo. Eu só queria chegar ao fim… eu sei que tenho que viver por etapas, e ao fim de cada dia dizer para mim mesma: Já passou mais um dia…

O que ela sentia era mais do que preocupação. A intensidade da denegação marcava a intensidade da experiência de algo que não se falava, não se manifestava e até se dizia feliz.

Dizia não poder realizar sonhos, não poder envolver-se em coisas dela, estava impedida de se mostrar e de se ver. Estava confinada à roupa da irmã e à camisa de dormir. Estava num clima de impedimento:

(M)… tenho usado algumas roupas da minha irmã, porque nós temos a mesma estatura e ela esteve grávida há pouco tempo, a minha sobrinha tem um ano… mas agora aqui… gostava de poder andar a fazer compras e andava a pensar comprar um vestidinho de grávida para vestir no Natal e agora não vale a pena, porque só posso ter camisas de dormir.

O sonho dizia-lhe que era possível tornar-se, mas o bebé ainda não era dela, daí revelar:

(M)… já sonhei com um menino e sonhei que estava com ele ao colo e acordei com uma sensação… isto é mesmo verdade? vou mesmo ter um bebé?… Mas não costumo sonhar muito… (chora).

A quantidade de nós/eu marcava a intensidade e o afastamento entre ela e o outro, ou ela desdobrada. Por vezes não era coerente. Dizia ter tido uma imagem muito clara de um bebé, mas não dizia qual. Havia nela um segredo que se guardava e não podia ser dito, mas a seguir a sua fala revelava qual o bebé que via, era um bebé contaminado por ela, pela tristeza e pela zanga dela. O bebé ser como ela, era equivalente a ser ela. Sara reconhecia-se num estado em que ela e o bebé não são nem um, nem dois, talvez mais do que os dois, por isso dizia:

(M)… não consigo criar assim imagens muito claras do que vai ser… mas naquele sonho que eu tive com o bebé ao colo, tive uma imagem muito clara de um bebé… não tenho uma imagem muito clara de como será… não consigo… Tenho muito medo que ele seja um chorão porque eu ultimamente tenho sido chorona… Eu não queria que ele fosse um chorão, mas se ele for chorão não o posso criticar, coitadinho… pode ser que balance um bocadinho entre a ansiedade da mãe e a calma do pai.

O medo de contaminar o bebé com a sua tristeza e a culpa associada, fê-la introduzir o pai para que o bebé não seja ela. O marido dava-lhe uma função parental e a função parental que o marido lhe dava mudava tudo. Havia o casal de antes e o casal de depois, daí que quando a investigadora lhe perguntava como é que imaginava o marido como pai ela respondesse:

(M) Um pai muito querido e muito dedicado, como ele é… quando temos dúvidas sobre a capacidade do outro para dar apoio… eu nesta situação fiquei… pronto… ele tem-se revelado impecável… não era preciso, nós não precisávamos de passar por este teste, nem eu nem ele, mas já que passámos, que o lado positivo seja esse…

Se antes a Sara era interpelada por fora/desde fora, quando no seguimento da entrevista se referia aos pontapés do bebé e ao facto de ver os pés do filho na ecografia dizendo que deveria ter os pés grandes como os do marido era interpelada de dentro, pelos elementos masculinos. O estabelecimento de uma nova relação e de uma interação mãe-bebé deixavam espaço para um bebé restabelecido e intacto, tal como para uma mãe igualmente restabelecida e intacta. As suas identificações oscilavam entre a mulher adulta e o bebé que tinha.

Ao longo da entrevista revelou que não conseguia falar de outra coisa senão da história do choque. Condensava papéis de várias figuras. Falou dos pais falando dela como mãe e pai, não falou deles como pais dela. A questão temporal continuava entrecortada. A parentalidade atual servia-lhe para falar da parentalidade dos pais.

Havia nela uma condensação no atual. A angústia do atual fazia-a ficar numa espécie de expectativa vazia sobre o que iria acontecer. Nestes dias mais complicados Sara não conseguia pensar e por vezes o dentro e o fora, a vida e a morte, confundiam-se e entrelaçavam-se numa espécie de labirinto. Neste “estado” psíquico não se sabia o que iria emergir.

Porém, no desenrolar das visitas no dizer de Sara ficava mais claro como todo o seu ser e estar assentavam numa capacidade negativa, na espera, no incerto, no não saber e no sonho, mas com tolerância à frustração. Ela sustentava um projeto de vida, manifestava um potencial que parecia permitir tornar-se mãe, estando a preparar-se para todas as eventualidades. A atenção flutuante do grupo entre o dizer de Sara, o dizer da investigadora, a relação intersubjetiva estabelecida e o relevo dado às transformações pela abordagem holística que a análise de dados incluía, permitia-nos constatar que Sara tinha uma mente em transformação e crescimento, o seu O era flexível e apto para tolerar a dúvida e a incerteza (Bion, 1962/1991a). A sua espera revelava uma potencialidade transformadora copoiética (Ettinger, 2005) “… sinónimo de tornar-se cada vez mais capaz de sonhar a própria experiência, sonhar-se existindo” (Ogden, 2010b, p. 24).