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1.3. Sobre o pai e o tornar-se pai

1.3.1. O pai sob o ângulo da criança

A questão do pai associa-se à história da própria psicanálise, desenvolvida por Freud à roda do seu próprio pai e das análises dos pacientes adultos que o conduziram à descoberta progressiva da criança no adulto e ao Complexo de Édipo.

Freud (1909 [1908] / 1969, 1909/1969) refere-se a um pai edipiano que não existe para o filho enquanto agente específico diferenciado da mãe antes da fase fálica-edipiana. Ele é o detentor do princípio da realidade (Ferreira, 2002), um objeto de identificação primário, um ideal ou um rival. Não é somente um personagem real e fantasmático, pois exerce uma função de organizador do psiquismo (Perron & Perron-Borelli, 1994).

O pai do período pré-genital surge com Melanie Klein (1928), com a análise de crianças, sendo ela a primeira a descrever a complexidade do mundo interno do bebé. Para Klein, o fantasma dos pais combinados representa a versão precoce do complexo de Édipo. A relação entre o pai e a mãe é colocada num cenário de cena primitiva, em que os progenitores não correspondem aos pais da realidade externa mas, antes, se constituem como objetos internos da criança (imagos parentais interiorizados). A situação triangular é associada a experiências dolorosas de perda e exclusão. Deste modo, o fantasma de pais combinados, que a criança quer destruir e manter, parece corresponder a uma tentativa para lidar com a angustia de exclusão vivida face aos pais e à relação que une o casal.

As teorizações de Lacan (1938/1984) permitiram organizar os diferentes discursos sobre o pai e constituem um caminho para uma compreensão mais alargada da sua função. Contudo, a tónica colocada sobre a dimensão simbólica da função do pai, desenvolvida por Lacan, pode fazer-nos esquecer que o pai também é um objeto pulsionalmente investido (Brusset, 1990).

A contribuição materna para a instauração do espaço do terceiro fica a dever-se a Winnicott (1957a; 1957b), ao introduzir a ideia de um pai presente no pensamento da mãe. Para este autor, a mediatização da relação pai-bebé continua a pertencer à mãe.

Enquanto o pai edipiano é imbuído de um estatuto de detentor da lei e porta-voz da realidade (Brazelton & Cramer, 1989/2007) tendo, sobretudo, uma função de separação na relação entre a mãe e a criança, o pai pré-edipiano desempenha o papel de suporte e de aprovisionamento alimentar da díada mãe-bebé tendo, portanto, um papel contextualizador desta última (Golse, 2006/2007).

Porém, a distinção entre o pai pré-edipiano e edipiano não é tão clara quanto se poderia supor, sendo que a figura paterna reúne simultaneamente, numa mesma dinâmica, um processo de contenção e alimentação pré-edipianos e um processo de separação pós-edipiano (Golse, 1999/2002; Golse, 2006/2007).

O facto da psicanálise se centrar particularmente na noção simbólica da função paterna, no pai fantasiado ou mítico (Brazelton & Cramer, 1989/2007) poderá ter contribuído para se atribuir uma importância secundária ao pai comparativamente à mãe e realçado a função de separador, interditor do incesto e introdutor de regras do pai como constructo psíquico.

Ora a função paterna é muito mais do que a função simbólica de castração e não é exclusiva do pai. No interior de cada progenitor as duas funções (materna e paterna) estão sempre articuladas (Ciccone, 2011).

Contrariamente à mulher, durante a gravidez o homem não vivencia a satisfação libidinal de ter um bebé no seu corpo. A apropriação desse processo da mulher e a do nascimento do seu filho advém de uma elaboração puramente psíquica, “um processo de pensamento” como sublinha Freud (1939/1969) em “Moisés e o Monoteísmo”.

Se o homem se torna pai essencialmente através do pensamento, tal não significa que o pai esteja congelado nos primeiros tempos de vida do bebé (Bayle, 2006), uma vez que a relação pai-bebé parece desenvolver-se em simultâneo com a relação mãe-bebé desde as primeiras semanas de vida (Abelin, 1975; Blos, 1985; Burlingham, 1973; Herzog, 2001; Pruett, 1983, 1992, 1993). Para o filho, o pai não se constitui enquanto um terceiro como os outros, ocupando um lugar especial na sua vida interior. Para além da importância do pai-que- existe-na-mãe, ele representa uma figura masculina e próxima, um contraste e uma alternativa

à mãe (Golse, 2006/2007). Este pai-que-existe-na-mãe revelar-se-á pela capacidade materna de deixar o campo livre àquele que reconhece como pai do seu filho. Por outro lado, o pai paternal tem um papel de contenção da função maternal e um espaço de amante, para além das próprias qualidades psíquicas que desenvolve com a criança (Anzieu-Premmereur, 2011). Para o bebé o pai é o “diferente” mais próximo, reconhecido como duplo materno e como equivalente de segurança, proteção, poder, conhecimento e justiça. (Ferreira, 2002). Assim, o lugar de terceiro não se situa constantemente como separador mas, antes, oscila entre separador, reparador e companheiro e a função de triangulação, representada classicamente pelo pai, surge como uma função emergente do triângulo pai-mãe-bebé.

Como, do ponto de vista biológico, não existe um pai sem uma mãe, o modo de teorizar o pai tem herdado as questões ligadas à mãe. Neste propósito, no que concerne às funções do pai, Monique Schneider (1989) alerta-nos para a idealização das teorias que o separam da mãe. Querer teorizar sobre o pai, isolando-o da mãe, pode significar uma clivagem ou uma defesa de um lado demasiado maternal que reenvia a uma mãe controladora ou invasiva ou, ao contrário, a uma mãe ausente na sua presença (Schneider, 1989), constituindo uma defesa de uma mãe cega e surda às necessidades do bebé ou da criança que existe no autor. Porém, apesar de aceitarmos esta possibilidade, consideramos que as teorias sobre o pai podem ir além da amálgama habitual entre o pai e o papel do pai e entre o pai e a função paterna, criando e conferindo maior importância às questões intrapsíquicas e intersubjetivas do pai como sujeito, de forma a contrariar a tendência que existe na minimização de estudos que tratam os ajustamentos psíquicos do homem ao longo do processo de tornar-se pai. Uma vez que o trabalho psíquico decorrente deste processo ainda não foi suficientemente explorado, neste trabalho interessa-nos o pai que se torna pai não somente a partir do bebé ou a partir da relação que estabelece com a mulher-mãe do bebé, mas também a partir da subjetividade e intersubjetividade que o define e o estabelece no seio da tríada.

Thèrèse Benedek (1959) foi das primeiras autoras da psicanálise a mostrar que o homem e a mulher, no que respeita à procriação, têm um funcionamento psíquico equivalente. Para esta autora a “crise” da paternidade faz regredir o homem a uma fase anterior da sua maturação libidinal. Durante a gravidez da mulher o homem partilha com ela os seus fantasmas e projeções e revive as suas identificações com os seus próprios pais. As primeiras experiências com o filho reativam nele o amor maternal possibilitando-lhe uma nova

gratificação libidinal. Trata-se do pai que tem um papel precocíssimo junto do bebé, capaz de conter as angústias da futura mãe, um expectant father em função do olhar dos seus próprios pais sobre ele, que vive a paternidade com grande proximidade da experiência da maternidade.

Mas então o que é ser pai? Um complemento da mãe, um substituto materno que assegura e sustenta, protege e maternaliza a mãe e o bebé? Um amante da mãe e parceiro da cena primitiva, promotor da triangulação edipiana? A incarnação da lei e do interdito? Um suporte identificatório e de aprendizagem para a criança? Um criador, fonte de atração? Haverá uma franca dicotomia entre a mãe e o pai, uma vez que há sempre uma mãe em cada pai e um pai em cada mãe? Estará a função paterna de um pai ou de uma mãe simetricamente sobreposta ou será antes solidária?

No que toca à criança, sabe-se que esta precisa de um pai e de uma mãe para construir a sua identidade (Chiland, 2001). Ainda que uma presença ou uma ausência do pai na realidade externa não constitua forçosamente uma presença ou uma ausência psíquica do pai, a relação que o pai estabelece com o filho é influenciada pela relação que este tem com a mãe, sendo que esta última tem um papel essencial na facilitação ou pelo contrário, no boicote, do vínculo entre pai-bebé (Bayle, 2006; Brazelton & Cramer, 1989/2007; Correia, 2009). Nas palavras de Celeste Malpique (1990) quanto mais cedo se estabelecer uma interação pai-filho forte e positiva, mais o desenvolvimento cognitivo e a capacidade expressiva e criativa do bebé se diferenciam.

No que toca à mulher/mãe o pai será “…o sustentáculo do narcisismo da mãe. O que é de capital importância para o tipo de relação que esta última estabelece com o filho” (Coimbra de Matos, 2002, p. 169), construindo uma relação libidinal, positiva, doadora se, por sua vez, a mãe estiver suficientemente impregnada de satisfação amorosa e segura na sua qualidade de pessoa, mulher e mãe (Coimbra de Matos, 2002). Nestes casos o casal suporta as funções maternas e paternas de cada membro. Ao contrário, se a relação de casal estiver imbuída de conflito e/ou se desenrolar sob uma dinâmica disfuncional, a proximidade entre pai-bebé torna-se mais difícil, pois o pai é aquele que a mãe designa como tal, de forma explícita e implícita (Correia, 2009; Golse, 2006/2007).

No que toca ao homem que vai ser pai será atualizada a dimensão enigmática das suas origens. Ser pai excede o saber da biologia da reprodução, da genética e da história familiar,

na medida em que é, também, um facto de cultura, conduzindo a novas inscrições no inconsciente.

Assim, o ser pai poderá encarar-se quer como uma condição quer como uma função da paternidade do homem que reconhece aquele filho como seu, que reconhece a companheira como mãe da sua criança, que aceita essa criança na sua nova função e que concomitantemente também é reconhecido como pai pela companheira e pela própria criança. Os três reconhecem-se mutuamente como ligados uns aos outros e partilham a função de terceiro. Tal, implica ultrapassar a visão clássica segundo a qual a função de triangulação é unicamente representada pelo pai, para a conceber como uma propriedade emergente da tríada mãe-pai-bebé (Noël & Cyr, 2009, 2010).

O espaço paterno surge sempre como sendo coconstruído pela mãe e pelo bebé, no âmbito das interações precoces, através das várias situações triangulares que confrontam o bebé com uma dimensão de terceiro, que desenham um espaço nem-mãe-nem-bebé, percursor da futura função paterna do pai. Assim, muito antes da criança poder ter uma representação do pai enquanto objeto total e sexuado vai ser confrontada com um terceiro mais parcial, que prepara a construção da representação paterna na sua completude (Golse, 2006/2007).

É necessário integrar os contributos oriundos de diferentes especificidades teóricas do campo psicanalítico, de forma a melhor compreender o pai, a articulação da função materna e paterna deste e atender ao tornar-se pai.