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Isabel, Zacarias e João O segundo encontro (em casa da família)

CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

4.7. Isabel, Zacarias e João O segundo encontro (em casa da família)

4.7.1. Isabel… no espaço mental da investigadora

É a mãe que abre a porta, sorridente. Está maquilhada. Dirige-me à sala de estar. A televisão está ligada. O pai está na sala a dar o biberão ao filho. O bebé carequinha está

enrolado num cobertor azul, deliciado a mamar o biberão. Ainda tem sinais de icterícia. O pai está muito compenetrado no seu papel, encostado ao canto do sofá. Sento-me ao lado do bebé e do pai e a mãe senta-se no outro sofá, dizendo-se assustada com os “barulhos” do filho. Senti que havia uma continuidade na estranheza dela.

Antes de ligar o gravador para a entrevista com a mãe, noto que o bebé fixa muito o olhar no rosto no pai. Comunico-lhes esta observação e o João volta-se para o som da minha voz, detetando a novidade. Cumprimento-o, ele olha-me sem expressão e rapidamente volta a olhar para o pai.

(I) Então, Isabel, pode contar-me como foi desde a última vez que nos vimos?

(M) Ainda estava no hospital… estava… à espera da indução do parto, devia ter umas 36 semanas, mais ou menos… depois tive às 37 semanas, depois induziram-me o parto às 37 semanas devido à colestase, é o limite que eles… que eles esperam, é até às 37. Depois marcaram-me a indução do parto a… no dia nove e depois ele acabou por nascer só no dia 10… pronto. Foi um parto assim um bocadinho complicado, a… começaram-me a induzir o parto… só que… ele estava muito subido, não queria nascer… e… pronto, depois rebentaram-me a bolsa… e… as contrações… e a epidural não fez efeito… foi assim uma coisa!… uhm… depois tive uma complicação do parto porque… a placenta ficou lá dentro e ainda tive que fazer uma raspagem, depois perdi muito sangue, tive que levar duas transfusões de sangue, então foi assim um bocadito complicado, tanto que nos primeiros dois dias eu nem sequer podia pegar nele, não me levantava… estava… enquanto não levasse o sangue não… nem sequer tinha reação (ri), mas pronto, depois passou e correu… e correu bem…

Eu já estava preparada para que me custasse, pronto, como a gravidez… ter sido tão complicada eu não estava à espera que fosse… fosse fácil, mas pronto, mas tanto… tão difícil (ri)… também não estava à espera, mas pronto já… já passou.

O dia, quando eles me o puseram eu nem sequer dei… dei muito conta, porque tinha perdido muito sangue, eles disseram que eu estava… e estava muito mais para lá do que para cá, a… depois é que… já no quarto é que dei conta… pronto, dele. Só que depois estava muito limitada, não conseguia fazer nada, não conseguia pegar nele, não conseguia mudar a fralda, não conseguia… tinha que sempre chamar alguém…

Isabel tinha feito uma antecipação de que não estaria em bom estado e que o marido teria que lá estar, porque o bebé poderia ser trocado ou roubado. O assustador parecia não se transformar, foi necessário repetir a pergunta sobre o que achara do bebé.

(M) Ah, achei que era lindo (ri) ah, e depois eu dizia ah, é como eu sonhei… um nenuco… que não tinha muito cabelo… que eu dizia ah, eu vou ter um bebé com muito cabelo, porque achava que ele ia ter muito cabelo e depois ah, afinal vou ter um nenu… tive um nenuco com pouco cabelo…

Ela não se deixava tocar pelo bebé, sentia que o filho a alarmava, inquietava-se com o estranho.

Dizia: … Estes barulhos que ele faz é que eu… a princípio é que me assustavam, não sabia o que é que ele tinha… parecia que tinha falta de ar… ou parecia… são uns barulhos esquisitos… então, as primeiras noites eu não dormia nada…

Adiante acrescentava: Ao princípio, pronto, nós temos medo de… de tudo, porque ele é muito pequenino… se ele tosse, ou se espirra nós temos medo… se ele… sei lá… sei lá, temos medo de tudo, não sabemos… ele faz aqueles barulhos penso que ele não está bem… se não faz chichi pronto, é porque não faz chichi… pronto, a gente… eu estou sempre… ele é mais descontraído, eu sou um bocadinho mais stressada, mais stressada, se ele está bem se não está… se tem frio, se tem calor, agora já me vou habituando, mas ao início a adaptação foi assim um bocadinho… assim complicada.

(I) Têm tido visitas?

(M) É assim… Ao início as pessoas vinham mais… mas ao início era assim um bocadinho mais complicado porque eu estava… levei muitos pontos… eu nem sequer me conseguia sentar … eu estava mesmo… O Zacarias é que tinha quase de fazer tudo… porque eu não me sentava… para lhe dar biberão sentada não, tinha que estar deitada, depois para lhe dar banho também não conseguia… se bem que eu a dar banho… atrapalho-me um bocadinho, ele ajeita-se melhor… a dar banho.

(P) Tem um bocadinho de medo de o deixar cair.

(M) É… então ele ajeita-se melhor a dar banho… então no início… Eu também dou… mas tenho mais receio… ele é mais despachado no banho… depois ele mexe-se muito no banho, ele gosta muito.

Durante toda a entrevista senti desconforto e confusão, não conseguia perceber o que a Isabel queria comunicar e, perante o silêncio que se fazia sentir, ao invés de clarificar o seu dizer, ia-lhe sugerindo possibilidades de se familiarizar com o bebé. Contudo no seu discurso o bebé ainda não tinha lugar, porque o todo o seu espaço era preenchido pelas queixas recorrentes.

4.7.2. Zacarias… no espaço mental da investigadora

Nesta entrevista Zacarias dizia que o nascimento do filho tinha sido um acontecimento único, mas muito cansativo, que o lugar que tinha para ocupar era muito desconfortável, por não lhe terem dado condições. Ao mesmo tempo, tinha medo de não estar no lugar. Como se pensasse “eu tenho que ficar vigilante”, mas quando estava no lugar sentia que o sítio era mau para ele. Este era um modo que lhe era particular.

Contava: Eu fui para lá terça-feira, eram, sei lá, 8 da manhã e ele nasceu na quarta às 7 da manhã… aquilo foi… muito cansativo.

Mais adiante dizia: Eu tava preocupado porque quis assistir sempre a tudo e preocupado que ela estivesse bem também, como é óbvio. E a pessoa… pronto, a pessoa não sai dali. Foi estar ali de sentinela à porta, à espera que fosse chamado.

As coisas complicaram-se bastante não é, por causa da anestesia e de tudo o resto. E pronto, de alguma forma (com a médica conhecida) sentimo-nos sempre ali mais… mais acompanhados na verdade.

Dizia não se sentir o mesmo: Ele tinha o quê, 3 semanas, não foi Isabel? Quando eu tive que ir ao Estrangeiro uns dias. E foi chato, porque a cabeça da pessoa não está completa. E às vezes pronto, existem coisas, pequenos pormenores que temos de ali estar concentrados, e parece que a cabeça já não… não está... pronto, está dividida, é diferente. Uma coisa é estar em casa todos os dias e pronto… Estar aquelas horas todas e saber que ele está bem, não é que ele estivesse mal, mas o pensamento era “chegar a casa, chegar a casa”. Foi… foi muito chato… mas enfim, teve que ser (ri)… completamente.

Eu era guiada pelo meu sentir-pensar “feeling orientation” (Searles, 1965/2005, p.530). Tinha momentos em que sentia como se o espaço entre mim, os pais e o bebé desaparecesse. As palavras e ações repercutiam-se imediatamente dentro do meu psiquismo sem passar pela área intermediária da representação. Deste modo ia vivendo o impacto das

fantasias e emoções dentro de mim, sem que nenhuma distância atenuasse a força do acontecer. Os meus movimentos eram a confirmação de que a imprevisibilidade é rainha no campo da intersubjetividade (Eiguer, 2006).

4.7.3. Isabel… no espaço mental do grupo de pares

Desde o início da entrevista pudemos observar que a investigadora ia fazendo aproximações para conseguir fixar Isabel a um ponto, mas também estava num movimento duplo porque a mãe se esvaía na atrapalhação.

(M) Estes barulhos que ele faz é que eu… a princípio é que me assustavam … então, as primeiras noites eu não dormia nada… foi um parto assim um bocadinho complicado… a epidural não fez efeito… foi assim uma coisa!… uhm… depois tive uma complicação do parto porque… tive que fazer uma raspagem, depois perdi muito sangue, tive que levar duas transfusões de sangue, então nos primeiros dois dias eu nem sequer podia pegar nele, não me levantava… nem sequer tinha reação (ri), mas pronto, depois passou e correu… e correu bem.

Este modo de dizer da Isabel fez com que a investigadora repetisse as perguntas ou recorresse a perguntas muito concretas, como se também tivesse que lhe arrancar a ferros o que sentira e pensara. Isabel parecia não ir de outra maneira. Ela não sabia como se apropriar do filho e o que fazer. Vinha com uma história de um estranho, lá detrás. Falava com alguma estranheza desde o princípio, quando referia ter medo de expulsar o bebé, ter medo que o bebé lhe fosse roubado. Sentia que tinha que ter cuidados redobrados para o manter. Estava a falar de um estranho em casa. O seu objeto interno ou era hemorrágico, impondo transfusões, ou era qualquer coisa que lá estava e só saía a ferros e ventosas. O que era para ficar, esvaía-se. Daí esta sequência:

(I) Pode-me contar como foi o dia de ontem?

Esta era uma pergunta concreta que a investigadora nunca tinha colocado. Sentia-se que estava tudo intoxicado por coisas que estavam lá presas e o resto esvaía-se.

(M) O dia de ontem… foi… (olha para o marido).

Com uma pergunta concreta ela não se conseguia posicionar. (P) O dia de ontem não sei, eu …

Zacarias não suportava falar dela com o bebé.

(M) Pois tu não estiveste em casa ainda (diz ao marido) agora tenho… pronto, o dia de ontem… passamos a noite.. damos-lhe a maminha… o biberão, depois o Zacarias sai para ir trabalhar… eu fico com ele… a manhã toda, pronto, depois tenho aquelas horas… normalmente não tenho tempo para fazer nada, estou muito ainda dependente dele… a… pronto, dou-lhe o biberão, mudo-lhe a fralda, agora pouco mais se pode fazer… porque ele também ainda não… não interage muito… Depois à hora de almoço a minha mãe traz-me o almoço e fica aí a tarde e depois entretanto o Zacarias chega, damos-lhe banho e pronto...

Em grupo pudemos constatar como Isabel se inquietava com as minhas perguntas. Olhava para o marido como se não conseguisse responder por ela. Começava a descrever o dia começando pela noite. Respondia juntando o marido na alimentação do filho, como se o marido também tivesse maminha para dar. O biberão e a mama eram a mesma coisa. Confundia-se com o bebé. Dizia-se dependente do bebé e não que o bebé era dependente dela. Toda a descrição é como se ela não conseguisse estar com o bebé. Quando estava com o bebé estava com ele, mas quando chegava alguém ela saía. A mãe vinha alimentá-la a ela e acompanhá-la durante a tarde. Quando o marido chegava, davam o banho.

(M)… ao início era assim um bocadinho mais complicado porque eu estava… levei muitos pontos… eu nem sequer me conseguia sentar… eu estava mesmo… O Zacarias é que tinha quase de fazer tudo… porque eu não me sentava … para lhe dar biberão sentada não, tinha que estar deitada, depois para lhe dar banho também não conseguia… se bem que eu a dar banho… atrapalho-me um bocadinho, ele ajeita-se melhor… a dar banho.

(P)Tem um bocadinho de medo de o deixar cair…

O pai amplificava a aflição dela. Ele dizia-lhe: Estás ligada, mas tens medo. E ela confirmava:

(M)…tenho medo de o deixar cair, de ele escorregar… ele é tão pequenino, depois ele mexe- se muito no banho… ele gosta, ele gosta muito.

Neste trecho tornava-se claro que havia uma continuidade na estranheza dela. Ela não sabia como se apropriar do bebé e o que fazer. Porém, quando estava posicionada conjugalmente, tomava vida. Tinha momentos em que falava de forma mais desimpedida. Dizia que os homens não têm medo, daí ser o marido a dar o banho ao bebé porque ela tinha medo de o deixar cair. Ele trazia-lhe a ordem, corrigia-a, mas não a sossegava.

4.7.4. Zacarias… no espaço mental do grupo de pares

Zacarias estava no caminho, cumprindo o papel que era suposto cumprir. Continuava com uma preocupação filiativa, de lugares, falava sempre em estar não estando e em como não estando estava. Não estava no tempo, nem no espaço. Quando questionado como foi o dia do nascimento do filho responde:

(P) Foi… Foi único, claro, mas foi muito cansativo, foi um dia… eu nunca me lembro de estar assim… foram muitas horas… eu ‘tava preocupado porque quis assistir sempre a tudo e preocupado que ela estivesse bem também, como é óbvio. E a pessoa… pronto, a pessoa não sai dali. Foi estar ali de sentinela à porta, à espera que fosse chamado.

(I) Para descrever o dia de ontem, não o vai descrever como a mãe, não é? Como foi o seu dia de ontem?

(P) O dia de ontem foi sair de casa de manhã, trabalhar e pronto e chegar a casa ao final do dia. Que eu ontem já era para estar em casa, mas pronto, ainda não foi possível, porque eu tinha coisas no trabalho para acabar. E pronto, chegar a casa é muito melhor do que, não quer dizer que antigamente fosse mau, mas ainda é melhor, como é óbvio, não é…

… Uma coisa é estar em casa todos os dias e pronto… Estar aquelas horas todas e saber que ele está bem, não é que ele estivesse mal, mas o pensamento era “chegar a casa, chegar a casa”. Foi… foi muito chato… mas enfim, teve que ser (ri)… completamente.

Entretanto, no momento, o bebé continuava a não conseguir ser e estar, por não ocupar um lugar na mente dos pais. No colo de Zacarias, comia e dormia, depois passava para o colo da mãe e olhava. As interações eram marcadas pela funcionalidade.

A investigadora tentou dizer aos pais que o bebé já os conhecia, falando com o bebé e com os pais e estes pareciam não a ouvir, falaram-lhe nos avós:

(I) É curioso, é! (rindo e falando para o bebé) E gosta… Ele fixa muito o olhar … como olha para a mãe, e como estava a olhar para o pai. Já vos conhece bem.

(P) Os avós estão aí todos os dias e a gente põe-se aí a chamá-lo e parece que ele já se põe a procurar o som.

(M) O meu pai diz “Ah ele já sorri para mim”(ri). (I) Mas não vai demorar muito para ele sorrir. (P) Mais um mesito, se calhar, talvez.

Em grupo pudemos analisar a forma como eu me dirigia ao pai, que ia no sentido de fixar coisas, reafirmava as questões que se estavam a colocar relativamente ao modo de funcionamento.

A análise global da entrevista permitiu-nos interpretar que faltava uma coordenação harmoniosa no casal, enquanto ela falava das origens, ele falava dos lugares. Ela estava fixada nas origens, tinha uma preocupação identitária. Ele tinha uma preocupação filiativa, de lugares. Nem ela nem ele usavam o objeto, ela só o usava quando o marido estava muito perdido, suportava-se na incerteza dele. A marca era a instabilidade do lugar para ambos e enquanto casal.

No final da visita Isabel fez questão de mostrar à investigadora o quarto do filho, demasiado ocupado. Mostrou o lugar do bebé demasiado ocupado. Não havia espaço livre, tal como no interior da mãe (um lugar de terceiro investido, entre ela e o seu bebé), e o pai parecia não ocupar esse lugar (assumindo o lugar de terceiro específico, investindo o seu filho).

4.7.5. Convergências, divergências e espaço intermediário

Havia um acumular de elementos concretos que ocupavam o espaço mental com caráter aterrorizador, em especial para a mãe, impedindo-a de viver e se tornar. Quer a mãe quer o pai exerciam um grande impacto sobre a mente da investigadora, levando-a a estados de imobilização temporária. Então, sentia que a mãe não lhe estava a dizer nada, porque esbarrava no oco das palavras, no vazio. Ia pondo palavras para dar um sentido. Sentia a descontinuidade do discurso. A impressão no momento era de que as entrevistas eram demasiado rápidas e sua a leitura demasiado demorada, a ponto de todo o grupo se sentir perdido.

No vai e vem entre a mãe, o pai e a investigadora, a última fora a argamassa deles. O que parecia é que Isabel não era fertilizada por este masculino, solicitava que ele ficasse junto, donde que, quando ele estava à distância, quando era suposto gerar, não gerava, ecoava. Ele também não era o elemento masculino que fertiliza. Ele era o que passava e não ficava. Era esta a infertilidade do casal.