• Nenhum resultado encontrado

Isabel, Zacarias e João O último encontro (em casa da família)

CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

4.8. Isabel, Zacarias e João O último encontro (em casa da família)

4.8.1. A tríada… no espaço mental da investigadora

A última visita também foi adiada pelos pais por duas vezes. Quando a investigadora chegou a mãe estava sozinha com o bebé, o pai tinha tido uma reunião no trabalho e estava atrasado. Não estava no sítio. O João, mais crescido, estava deitado no parque rodeado de brinquedos em posição de gatinhar, movimentava-se no parque para dar conta do que se passava.

Quando perguntei à Isabel como se tem sentido como mãe ela respondeu:

Tem sido sempre cada vez melhor, ele também agora já… interage mais… já… já faz mais gracinhas já… e então… é mais… é bom todas as fases, mas agora acho que ele está numa altura engraçada… é melhor do que tinha imaginado… era uma coisa que eu já queria há imenso tempo, mas eu não sei, acho que é melhor… é diferente do que aquilo que a gente imagina, a gente imagina… um bebé… não é, mas pronto, não estava à espera de ser um bebé tão bom (ri)… ah, claro estava à espera, mas pronto, ele foi mesmo… parece que foi mesmo (ri)… não dá trabalho nenhum.

Diferenciava-se do dizer de Zacarias aquando da primeira entrevista. Ele tinha sido muito perentório a dizer que o filho dava um trabalhão. Isabel estava a tentar inscrever o bebé, mas não estava a conseguir. Havia algo de novo que ela não conseguia dizer, por uma mistura entre ela e o filho que a deixava atrapalhada. Eu procurava dar-lhe referências. Se Isabel pudesse sentir o novo, sem a nostalgia do que já foi, poder-se-ia deparar com um cenário melhor, sem os medos e fantasmas que lhe bloqueavam o pensamento.

Adiante, na entrevista, dizia: Acho que estou mais calma e mais tolerante, mas depois há coisas que… se ele está bem… e se chora porque é que chora, e fico logo muito stressada se ele se aleija e se… chora muito e se tem fome e eu não lhe dou de comer logo naquele instante, fico logo… stressada nesse aspeto, o Zacarias não, então tem fome, calma, vamos preparar… e eu não, tenho que logo preparar aquilo em dois minutos, senão ele chora, coitado, tem fome, é mais nesse aspeto.

O estranho surgia mais uma vez. O bebé e ela tinham passado à categoria de estranho. Isabel mostrava não ter uma proximidade suficiente com o filho. Não conseguia ser e atribuir

um sentido, alguém tinha que lho dar, mas esta ação estava desligada dentro dela própria. Ela fazia tentativas, mas não havia um fio condutor dentro dela, daí referir:

Agora já ando a sonhar com ele a chorar no infantário…

Eu acho que sou uma boa mãe (ri). Tento ser o mais atenta possível. Sou um bocadinho medricas, confesso. Tenho medo que ele… gostava de ser um bocadinho menos. Tenho medo que ele se aleije. Se ele tem o nariz entupido eu penso “ah, está a ficar doente”. Está a ficar doente? Se espirra, o Zacarias diz, então o menino não pode espirrar e eu “ah tadinho, já está constipado”.

Contou um episódio de um acidente do filho, no banho.

Eu só pensei “ai, eu não estou preparada para isto, para ele chorar assim”. Ele assustou-se, e depois ele tem muito hábito de ficar…vai com o choro… E aquilo mete-me impressão, parece que quer chorar e não consegue, parece que lhe falta o ar. Mas o médico diz que pronto, isso é normal, que há uns que fazem e outros que não.

Como a ligação não era possível, depois a separação também não era possível. Via-se bem a difícil ligação da mãe ao bebé, ela parecia não ter conexão com o filho. Não lia o bebé que, por sua vez, continuava a fixar o olhar.

O bebé estava bem ativo. Não era um bebé inerte, mas um bebé do fazer. Aos quatro meses de idade, mais do que tudo, o João deveria estar a ser, a integrar, uma vez que antes do fazer deveria ser. O olhar do bebé não se tinha libertado da sua função de fixação e manutenção da permanência (Ciccone, 2011), mas isso, não o impedia de ser utilizado para a comunicação.

O pai chegou, tinha a mãe acabado de dar uma papa ao filho.

O João continuou sentado com cinto de segurança na cadeirinha onde tinha comido, todo inclinado para o lado direito. Olhava intensa e prolongadamente para o pai, depois para a investigadora e para a mãe como se seguisse e percebesse o que era dito. Era como se nos quisesse segurar com os olhos.

Zacarias sentou-se no sofá. Continuava a não encontrar o lugar de pai, começou por dizer:

As mudanças têm sido muitas… agora não tenho tempo para fazer as coisas que habitualmente fazia, deixei de jogar futebol… agora o tempo é todo à volta dele…

Dizia que tinha havido muitas mudanças, mas parecia que eram todas relativas ao facto de não poder fazer coisas que antes fazia.

As mudanças de que falava eram negativas, persistia o tema dele: de ter perdido o espaço que supunha ter tido.

Continuo a não sonhar, nunca me lembro dos meus sonhos, acordado sim… sonho com ele, sempre com ele… os dois a andarmos por aí… No futuro é isso que imagino. Imagino-o comigo. Agora ele exige muita atenção, agora nos fins de semana… sou eu mais que estou com ele, que é para a Isabel poder descansar e vejo bem o trabalho que ele dá. Nos fins de semana, quando chega a noite, estou mais cansado do que se tivesse ido a trabalhar. Ele exige muita atenção e vai exigindo mais agora, porque se mexe muito…

Com o tempo Zacarias parecia ter passado a funcionar como a mulher, estava mais acentuado o pegar no filho e ir embora dali. No final da entrevista voltou ao ponto inicial e dizia:

Este estudo foi muito bom para nós, porque nos ajudou a pensar em coisas que de outra forma nunca teríamos pensado. Foi muito importante podermos falar nas coisas. Passámos coisas muito complicadas, muito difíceis, mas valeu a pena. Às vezes estamos aqui com ele e nem acreditamos que ele está connosco… é um sonho que se realizou. As sugestões para futuros pais é que nunca desistam, tenham sempre esperança relativamente aos sonhos que têm. Pode ser difícil… passamos coisas difíceis, mas é possível… A nossa história é a prova disso… lutámos e conseguimos… foi à sexta tentativa mas valeu a pena…

Quando Zacarias se afundou, Isabel recuperou, mas também enunciava um eterno retorno ao ponto inicial, dizendo:

Às vezes estamos aqui os dois e dizemos ah! Ele é lindo… é um bebé tão bonito!... É um sonho… ainda lá ficaram mais dois embriões congelados. Não sei se daqui a dois, três anos não vamos lá outra vez (diz a sorrir).

Poder-se-ia supor que, em termos psíquicos, o João continuava aprisionado nas projeções massivas dos pais e não poderia desembaraçar-se senão com dificuldade da colisão de tais projeções, de modo a evitar a reprodução do mesmo. A dor psíquica encriptada nos pais, sem recursos para a transformar, dificultava não só o processo de tornar-se pais mas também o desenvolvimento do bebé envolto em experiências de não transformação e não continência. Que a mãe ainda não podia ter o bebé dentro dela, porque ainda não o imaginava

fora dela no futuro e o mesmo acontecia com o pai. Que Isabel tinha dificuldades em encontrar o bebé e a sua função materna, fixada como estava no passado. Que Zacarias não lhe servia de continente, uma vez que ele próprio tinha uma identidade que tinha sido pouco subjetivada e só queria sair do lugar. Que o bebé continuava a não ter um lugar no discurso e no sonho destes pais, provavelmente porque os dois se sobrepunham. Que na tríada não haveria um verdadeiro encontro intersubjetivo, porque não havia uma apreensão do outro como diferenciado da sua própria travessia no deserto.

Porém, o movimento do bebé parecia ser uma fonte simbolizante, subjetivante e elaborativa. O João era um bebé ativo que já conhecia os pais, interagia e estrebuchava. Pelo choro, procurava fixar um lugar. Os espasmos do choro, descritos pelos pais, não comportavam unicamente uma finalidade de descarga de tensão, mas também uma dimensão de ser e existir que fazia com que a mãe e o pai experimentassem sentimentos e necessidades que ele não podia elaborar, ao mesmo tempo que fazia ser e existir aqueles pais. A repetição destas experiências faria com que os dados sensoriais de todos pudessem adquirir significados.

O pensamento da investigadora, que antes tinha sido invadido pelo atual, era a prova que no aqui e agora da investigação, como na clínica psicanalítica, nunca se conhece profundamente o que lá está, a intersubjetividade inconsciente, daí a importância da análise da relação transfero-contratransferencial.

Ao longo do tempo compreendi que tanto Isabel como Zacarias tinham desejado este filho como um “objeto transformacional” que os tornaria diferentes. Valorizei a sua “abertura” à investigação como preocupação pelo outro e esperança de “vir-a-ser”. O meu sentimento para com eles foi-se revelando marcado pelo respeito, compaixão e esperança de que os pais e o bebé fossem capazes de ser e se tornar. A reverência-rêverie (Ettinger, 2010) para com a tríada dizia-me que lá, onde havia vazio, a vida ainda poderia existir. Após o último encontro cabia-me sonhar o que os pais não podiam sonhar ainda. Não se tratava de fazer sobrepor o modelo da criança e dos cuidados maternais ao modelo do sonho, mas antes de me abrir, como Winnicott (1951/1975a), ao modelo da transicionalidade. Para acedermos ao novo no processo de tornar-se implica não ficarmos bloqueados no objeto transformacional. As nossas experiências só poderão ser elaboradas através dos fenómenos transicionais.

O bebé não poderá reduzir-se ao traumatismo dos pais. A história do João poderá constituir uma prova de que a função de triangulação, classicamente representada pelo pai, é uma função emergente de um sistema- mãe – pai – bebé, para a qual qualquer um dos polos tem uma parte ativa, em termos de atualização de um potencial de triangulação.

Este é um exemplo que incita à prudência quanto ao recurso exclusivo de avaliações descritivas assentes num ponto de vista sincrónico, que não podem dar-nos conta do tornar- se, uma vez que o mesmo assenta num ponto diacrónico e no vivido contratransferencial do investigador. Nesse sentido, Isabel e Zacarias não sendo ainda, poderiam vir a ser, com um bebé ativo, capaz de cocriar a sua vida interna, com uma potencialidade para transformar os traços do trauma e da dor em beleza.

4.8.2. A tríada… no espaço mental do grupo de pares

Isabel continuava a falar no duplo sentido. Deslocava dela para o bebé, dizia que estava muito engraçado mas a seguir ficava um perigo.

(M) Ele é muito atento e já conhece e pronto, já faz aquelas coisas… temos é que ter mais cuidado porque ele já está um perigo, já se vira, já mexe em tudo, agora…

Porém, parecia estar num modo novo face às situações, mas não o sabia falar, (não tinha palavras para isso) ficava atrapalhada. Estava a tentar inscrever esse novo modo de estar mas não estava a conseguir, no entanto o bebé estava ativo.

(M)… eu estava à espera ah, com a gravidez, pronto, que tinha tido… que ele fosse muito ansioso que me chorasse dia e noite, agora é muito calminho, dorme nove horas por noite… faz algumas birrazinhas, mas nada de especial, come bem… por acaso não dá trabalho nenhum.

Diferencia-se do dizer do pai da primeira entrevista. Ele tinha sido muito perentório a dizer que o filho dava um trabalhão. Depois referenciava-se e usava o marido de diversas maneiras:

(M)… Acho que estou mais calma e mais tolerante, mas depois há coisas que… se ele está bem… e se chora porque é que chora, e fico logo muito stressada se ele se aleija e se… chora muito e se tem fome e eu não lhe dou de comer logo naquele instante, fico logo… stressada nesse aspeto, o Zacarias não, então tem fome, calma, vamos preparar…

Reforçava-se a ideia identitária dela, ela usava o marido como ele era e como ele estava. O que quer que ele dissesse era utilizado por ela. Ela dizia o que ele dizia, ele reconhecia o limite deles, ele dizia que se esgotava e ela ficava viva. Ele não funcionava onde ela funcionava, mas ela só funcionava porque ele não funcionara. Se ele dizia eu fraquejo, ela diz não. Para ele era eu fracasso lá onde ela recupera. Havia nestes pais uma relação de vampirização. Desta forma ela não conseguia imaginar o bebé no presente, dentro dela.

Zacarias, por seu lado continuava a não saber estar no lugar de pai. (I) Tem sentido que tem havido mudanças?

(P) Ah sim… As mudanças têm sido muitas… agora não tenho tempo para fazer as coisas que habitualmente fazia, deixei de jogar futebol… agora o tempo é todo à volta dele…

As mudanças de que fala são negativas, persistia o tema dele: perdi aquele espaço. (M) Mas agora já começaste…

(P) Pois… Comecei esta semana. Mas o que eu quero é poder levá-lo comigo. Estou desejoso de poder ir com ele para todo o lado. Ir com ele e ensinar-lhe a andar de bicicleta… ir com ele a jogar futebol… essas são as mudanças que quero fazer.

O tema de inscrever o filho na filiação desaparecera e ressurgia a questão de não saber qual o lugar dele, surgia a questão de “vamos por aí” e nela confirmava-se a sua questão inicial.

Isabel e Zacarias investiam o seu filho como um ideal, um prolongamento de si mesmos onde o espaço para o terceiro era limitado. Eram pais solteiros em termos psíquicos, sujeitos psíquicos monoparentais. Mesmo com o bebé cá fora estavam fixados no trauma. O bebé não tinha existência para eles, eles não o conceberam psiquicamente. O próprio do trauma é o colocar o imaginário em congelação, tornando o sentido impossível. Assim, o filho “inconcebido” surgia como uma reprodução do conhecido ou duplo de si mesmos, daí a dificuldade que tinham na representação do bebé. Os dois estavam congelados, fixados no trauma, por isso usavam tanto a palavra congelados. O seu exemplo constitui uma prova de como a infertilidade pode permanecer na mente humana, mesmo depois do nascimento de um bebé, dificultando o tornar-se mãe, pai, o devir do bebé e o papel da investigadora. Uma prova de que a infertilidade não decorre de tal ou tal coisa precisa, de tal ou tal sujeito singular, não só por não existir causalidade psíquica, mas também por revelar que é a história

conjunta do homem e da mulher, caracterizada por um entrelaçado complexo, que produz a infertilidade do casal.

4.8.3. Convergências, divergências e espaço intermediário

Gabbard e Ogden (2009, p.312) recomendam: “In order to think/dream our own experience, we need periods of personal isolation no less than we need the participation of the minds of others.”

Para mim, o tempo que mediava os encontros com o grupo significava um tempo de sonhar por conta própria, antes de trabalhar com os pares. Sonhar por conta própria e escrever esses sonhos é igualmente uma forma de pensar. Na investigadora há uma reflexão silenciosa sobre si mesma, sobre o que tem a dizer de si e do outro e sobre as respostas imaginadas desse outro. A complexidade deste processo torna-se ainda maior quando um texto é cocriado por várias subjetividades.

Tornar-se investigador, como tornar-se mãe, pai e a emergência do psiquismo do bebé implica um trabalho psíquico contínuo de cada um. Da contemplação solitária ao insight, da interação vivida e imaginada com os outros, as questões intersubjetivas implicam sempre uma sensibilidade especial de colaboração, transcendendo as categorias de significados sentidas como únicas e destacando as invariâncias entre as várias subjetividades.

Na análise do grupo todas partilhámos o sentimento de que na investigação psicanalítica, como na clínica:

The other and the earth need to be known through affective communicaring in self- fragilization. The knowledge revealed in this way, of the invisible chords to which our senses are not yet attuned, is at the basis of the ethical obligation to attend to the vulnerability of the other . . . through care and compassion and in wonder and reverence.

(“Bracha L. Ettinger”, 2014) Assim, na história desta tríada o facto de o bebé me ter oferecido o melhor dele próprio, o seu olhar de fascínio, sobressaindo do campo da investigação, constituía uma exigência de significação. Esta exigência traduzida na minha implicação em primeira pessoa, associada à posição autorreflexiva em terceira pessoa e aos intensos movimentos psíquicos decorrentes do trabalho do grupo de pares integrados com uma experiência de rêverie, diziam-me que lá a vida ainda poderia existir.