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A TRADIÇÃO DA MOBILIDADE GEOGRÁFICA DOS MÉDICOS ITALIANOS

A mobilidade internacional de membros de elite intelectual não é um fenômeno recente na história da Itália: os médicos são herdeiros desta antiga tradição migratória.

Vários foram os intelectuais italianos que viveram no exterior e influenciaram politicamente os países de recepção. Gramsci cita o Dicionário dos italianos no exterior, de Leo Benvenuti, escrito em 1890. Nessa obra, as categorias dos intelectuais subdividiam-se, entre outras, em embaixadores, antiquários, arquitetos, artistas, astrônomos, botânicos, juristas, engenheiros, historiadores, médicos e viajantes. O autor nota que as classes dirigentes (políticas e intelectuais) de uma série de países foram reforçadas por elementos italianos, os quais contribuíram para criar uma civilização nacional em tais países. Além disso, os intelectuais influenciam a cultura de um outro país e a dirigem. Uma emigração de trabalhadores coloniza um país sob a direção direta ou indireta de sua própria classe econômica e política dirigente, exprimindo consciente e organicamente um bloco social nacional38.

Segundo Cenni, muitos médicos peninsulares se radicaram no Brasil ao final do século XIX e início do XX. Ele credita tal fenômeno ao fato de não haver leis que impedissem semelhante afluxo ou que regulamentassem o exercício desta profissão para os estrangeiros, além da falta de escolas nacionais especializadas39.

Exemplos de médicos atuando em diversas regiões do Brasil sugerem que a presença de médicos italianos é bem mais precoce que aquela indicada pela imigração oficial iniciada em 1875.

Lycurgo Santos Filho (1947), no clássico livro História da Medicina no Brasil (Do século XVI ao XIX), registra que “alguns cirurgiões e entendidos de medicina” de nacionalidade italiana estiveram no Brasil no século XVIII. Cita Antonio Cialli e João Agostinho Guido que “experimentaram e atestaram as virtudes curativas das águas da Lagoa Santa, em Minas Gerais”. Ele considera que foram muito poucos os italianos, contabilizou

38 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995,

p. 67-75.

doze médicos que atuaram no Brasil no período do Império, sendo os mais conhecidos Luís de Simoni e Líbero Badaró, este mais por sua trágica morte40.

Luís De Simoni nasceu no Ducado de Gênova, em 1792, formou-se pela Universidade de Gênova e imigrou para o Brasil no ano de 1817. Atuou como médico na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e, após, partiu para Moçambique, onde foi Físico-Mor. Ao retornar para o Rio de Janeiro, foi diretor médico daquela instituição, trabalhando como médico dos alienados nesse hospital e na enfermaria do Convento de Santo Antônio. O médico liderou com o cirurgião brasileiro Joaquim Cândido Soares de Meirelles a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, futura Academia Nacional de Medicina, onde recebeu o título e o cargo de Secretário Perpétuo, que ocupou durante 37 anos. Simoni e Meirelles foram acompanhados por dois médicos franceses, José Franciso Xavier Sigaud e João Maurício Faivre e pelo brasileiro José Martins da Cruz Jobim. Os três fundadores estrangeiros imigraram devido a perseguições políticas. Compartilhavam com os médicos nacionais a experiência europeia (Meirelles e Cruz Jobim formaram-se na Faculdade de Medicina de Paris) e tinham os mesmos ideais científicos. Simoni foi, também, professor de italiano e latim no Colégio Pedro II e professor de italiano das filhas de Dom Pedro II41.

João Batista Líbero Badaró (1798-1830), formado pelas Universidades de Pávia e Turim, imigrou para o Brasil onde se dedicou ao jornalismo. Influenciado pelo pensamento liberal, fundou o jornal O Observador Constitucional. Seus artigos criticavam o absolutismo e o conservadorismo. Foi assassinado, e este acontecimento desencadeou na campanha que resultou na abdicação do Imperador Dom Pedro I42.

Entre os outros médicos peninsulares que atuaram no Brasil, no período imperal, estão Casanova, médico particular do irmão da Imperatriz Dona Amélia, mulher de Dom Pedro I; Luís Bompani, formado em Modena, tendo sido auxiliar de De Simoni no Rio de Janeiro; Ignazio Bertoldi, jornalista polêmico que imigrou para o Brasil em 1831, tendo trabalhado em Santa Catarina, Rio de Janeiro, Campinas e São Paulo43; Carlos Éboli, que criou um

40 SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil (Do século XVI ao século XIX). São Paulo: Brasiliense,

1947, p. 370.

41 AGUINAGA, Sérgio d’Ávila. Painéis da Academia Nacional de Medicina. História e personagens. Rio de

Janeiro: Academia Nacional de Medicina, 2006, p. 67-68.

42 FLORES, Moacyr. Dicionário de História do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 62-63. (Coleção

Histórica).

43 Em São Paulo, Bertoldi atuou em prol da organização dos italianos que chegavam em massa, e na busca de

soluções para os problemas originados por este grande deslocamento populacional. Ver: CONSTANTINO, Núncia S. de. Italiano na cidade: a imigração itálica nas cidades brasileiras. Passo Fundo: Editora da UPF, 2000, p. 64.

estabelecimento hidroterápico em Nova Friburgo, em 1874, e Afonso Lomonaco, autor do livro Al Brasile, relato de sua viagem pelo Brasil realizada entre 1885 e 188744. Não há a informação de que algum deles tenha estado no Rio Grande do Sul.

Luis Finotti é um dos primeiros médicos que se tem notícia oficial de atuação no Rio Grande do Sul, no período republicano, conforme a documentação presente no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Seu nome surge em Porto Alegre quando é multado por exercício ilegal de medicina (1892). Há a interferência do cônsul italiano que redige um ofício para o presidente do Estado, General Barreto Leite (1891-1892), em prol do súdito italiano45.

Nessa correspondência, o cônsul informa que o Dr. Luis Finotti é médico-cirurgião, formado pelas universidades dos reinos da Itália e da Bélgica. Trabalhou no estado de Minas Gerais e, no momento, trabalhava em Caxias onde auxiliava na Inspetoria de Terras e Colonização46. Ao decidir exercer a medicina nesta capital, e, antes de abrir o seu consultório médico-cirúrgico, o médico quis que seus diplomas e outros atestados de benemerência

adquiridos no Brasil fossem conhecidos, “por deferência a autoridade de higiene deste

estado”.

O cônsul ficou surpreso em saber da publicação no jornal da capital, por um expediente da Inspetoria de Higiene que, com base no artigo 7§ 9 de um antigo regulamento sanitário, multava o Dr. Finotti em 200$000 réis, pelo exercício ilegal de medicina. Conforme o cônsul:

O dr. Finotti exercita nesta capital a sua profissão de médico cirurgião em base do artigo 71§ 5 e 17 da constituição do estado que declara livre todas as profissões morais intelectuais e industriais e garantem em todo o estado o seu exercício pacífico e intelectual.

É princípio absoluto de direito, comum a todos os povos civis, que as leis fundamentais de um estado, ou seja, a própria constituição, não pode ser em qualquer de seus artículos limitada, diminuída ou suspendida se não pela legislação mesma da Nação que a compilaram e por essa razão nenhum regulamento pode

44 SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil (Do século XVI ao século XIX). São Paulo: Brasiliense,

1947, p. 370-372.

45 ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Consulados. Consulado da Itália. Documento nº 109.

Ofício dirigido ao Gal. Barros [sic] Leite.

46 A Inspetoria Geral de Terras e Colonização tinha em seu cargo a fiscalização e imediata direção de serviços

relativos à distinção das terras públicas das do domínio particular, à medição, demarcação, divisão, descrição e registro das terras devolutas, à legitimação de posses e à revalidação de concessões e sesmarias; e bem assim, a colonização e imigração compreendendo o estabelecimento de imigrantes e em geral todos os serviços desta espécie como também as hospedarias para imigrantes. Podiam ser criadas delegacias da Inspetoria Geral de Terras e Colonização nos Estados de recebimento de imigrantes estrangeiros possuidores de núcleos coloniais e naqueles possuidores de terras devolutas. Cabia aos delegados propor ao Inspetor Geral a nomeação dos médicos dos núcleos coloniais e hospedarias. Ver: IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigração e

colonização. Legislação de 1747-1915. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do

modificar a substância, tanto mais quando este regulamento a que se refere à Inspetoria de Higiene é anterior a promulgação da constituição do estado e baseado na constituição menos liberal do Império irrevogavelmente abolida no Brasil47.

Solicita, ainda, que fosse imediatamente declarada nula a multa infligida ao médico pela Inspetoria de Higiene e que o citado súdito real italiano pudesse pacificamente gozar dos benefícios dos artigos 71 §5 e 17 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Sabe-se que Finotti se estabeleceu como médico em Porto Alegre. As informações obtidas no Livro de Registros de Impostos sobre Profissões de Porto Alegre acusam a sua presença no período de 1897 a 1901. Conforme o registro, ele trabalhou em três locais diferentes nesta cidade, a saber: Rua dos Andradas, Rua Marechal Vitoriano e Rua General Justo48.

A influência precoce da Medicina italiana pode ser observada na participação do cônsul italiano em agosto de 1893, quando encaminhou um ofício ao Presidente do Estado, sr. Julio de Castilhos, solicitando a divulgação do XI Congresso Médico Internacional aos médicos e aos

“cultores da ciência médica”, o qual seria realizado em outubro daquele ano, em Roma49. Nessa

cidade, haveria também uma exposição de Medicina e Higiene. Na correspondência, estava incluído um modelo de formulário a ser preenchido pelos interessados. A comissão central representante deste evento no Brasil era composta pelo Visconde de Alvarenga, decano da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e pelos agentes diplomáticos de Sua Majestade, o Rei da Itália, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em Porto Alegre50.

1.2 O ESTADO DA PROFISSÃO MÉDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO NA