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3.2 LUIGI CARDELLI E O RELATÓRIO OFICIAL SOBRE DOIS ESTADOS

3.2.1 A experiência profissional em São Paulo

Cardelli iniciou seu trabalho na cidade de Boa Vista, em São Paulo. Possuía um gabinete médico localizado no hotel em que se hospedava. Nota que, antes de sua chegada, os cuidados de saúde eram feitos por um farmacêutico não diplomado, por curandeiros e por parteiras sem instrução. Atendia doentes, também, em Ibitinga em alguns dias durante a semana, chegando a percorrer cerca de 60 km nos seus deslocamentos.

A cena de sua chegada, ou melhor, quando o seu gabinete médico está finalizado, poderia inserir-se nas características recorrentes das cenas de chegada dos relatos de viagem, as quais, segundo Pratt, constituem momentos significativos para a identificação das relações de contato futuras baseadas na reciprocidade, e o estabelecimento de termos de sua representação360. Nessa ocasião, Cardelli manda fazer os móveis de seu gabinete, que incluem um armário para guardar seu instrumental cirúrgico. Constata que várias pessoas vinham visitar seu gabinete para admirá-los e conhecer o “homem prodigioso” que os utilizava. Não achava estranho, pois sabia ser o primeiro médico que trabalhava na região. Como representação, a cena é governada pela reciprocidade, uma vez que Cardelli está consciente da necessidade de satisfazer a curiosidade dos habitantes que, em troca, irão aceitá-lo como médico, em uma disputa com os outros provedores de cuidados de saúde.

359 TEYSSEIRE, Daniel. La dénonciation des erreurs populaires em medicine autour de 1820. In:

BOURDELAIS, Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de santé (XVIII-XX siècles). Paris: Éditions Belin, 2005, p. 155.

O médico preocupa-se em listar os casos em que foi atuante, o tratamento preconizado, a utilização dos medicamentos, e como ocorreu o processo de cura. As doenças mais frequentes que encontrou foram: malária, ancilostomose, abscesso hepático, psicose, envenenamento por mordedura de cobra, tênia, lepra, bicho do pé, berne e tracoma. Usava quinina e timol no tratamento da malária. Cita a participação do governo brasileiro no tratamento do tracoma, o qual se constituía pela propaganda do estímulo ao asseio, e o abandono e/ou a segregação a que os leprosos estavam sujeitos.

A dificuldade de inserção do imigrante italiano é salientada na dificuldade do próprio médico em falar e compreender o português, apesar da semelhança das línguas e na presença de diferentes dialetos italianos que dificultava o entendimento entre os mesmos. É apontada a questão da má higiene dos imigrantes italianos residentes nos dois estados. Esses achados relativos às características de inserção do imigrante italiano foram também identificados em relatos de viajantes à Argentina361.

As questões relacionadas à higiene pessoal aparecem repetidamente no relato. O médico preocupa-se em enfatizar as condições de falta de asseio em que vive a população imigrante italiana tanto em São Paulo quanto no Rio Grande do Sul. Essas constatações estão em acordo com o pensamento da época. Conforme Vigarello, o discurso erudito e dominante utilizado pela burguesia em relação às classes populares, no final do século XIX, preconiza que a higiene não só provoca resistência, como assegura ordem. Dessa maneira, “ser asseado,

é proteger e reforçar o corpo”362.

Como o ocorrido com D’Elia, ao relatar as disputas entre médicos e curandeiros no Paraguai, Cardelli demonstra um interesse específico em discorrer sobre os casos particulares em que teve que interagir. Um deles, que considerou emblemático, originou-se das abordagens terapêuticas sugeridas por três curandeiros para o tratamento da filha do prefeito da cidade, que apresentava crupe [difteria]. As indicações incluíam uma infusão de espiga de milho, uma “cura espírita”, pois a criança estaria possuída por um espírito maligno e, por último, a administração de uma solução de excremento de cachorro dissolvido em água363.

361 BLENGINO, Vanni. Los viajeros italianos en la Argentina. Confluenze, Universidade de Bologna, v. 1, n. 1,

p. 1-16, 2011.

362 VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. A higiene do corpo desde a Idade Média. Lisboa: Fragmentos,

1985, p. 179-180.

363 Chamado eufemisticamente de jasmim de cachorro, este chá era utilizado para casos de coqueluche e asma

no interior de São Paulo, conforme o Inquérito sobre costumes populares da Sociedade de Etnografia e

Folclore de São Paulo, publicado em 1937. Este mesmo composto era conhecido no Rio Grande do Sul. Consistia em “excremento de cão roedor de ossos, que, exposto ao tempo, lavado pela chuva e seco pelo sol,

Suas observações sobre as condições de saúde da população eram frequentemente direcionadas para a saúde das mulheres. Frisa a frequência dos casos de trabalhos de parto complicados e suas sequelas, muitas vezes originados pelas poucas condições de asseio das parteiras, da ausência de assepsia percebida durante o trabalho de parto, e a falta de interesse destas em se instruírem, o que ocorreu em ambos os estados em que trabalhou. O médico enfoca seu desprezo pelas formas de vida e crenças das parteiras. Ele as incrimina pela presença de severas sequelas pós-parto:

No município as parteiras são quase todas analfabetas e aquelas poucas que não o são, nunca estudaram obstetrícia; são empíricas vulgares, que não tem, em realidade, prática alguma com o ofício. Falar a estas donas de assepsia e de anti-assepsia é falar numa língua que elas não entendem364.

Registra que ocorriam muitos casos de complicações relacionadas ao parto e ao puerpério, como morte por infecção puerperal, metrite, endometrite, prolapso uterino e outras complicações. Com frequência, recebia parturientes que tinham metrite crônica ou ruptura de períneo. Em especial, relata o caso de uma paciente com febre puerperal devido às poucas condições de higiene apresentadas durante o parto. Era uma jovem de 20 anos, de notada beleza da região. A sua cura foi reconhecida, o que reafirmou sua reputação profissional. No mesmo dia em que iniciou o tratamento da paciente, sua presença foi solicitada em outros dois casos de complicações pós-parto.

Destaca a necessidade do envio para o local de enfermeiras diplomadas. Para tanto, preocupa-se com a educação das mulheres em relação à saúde delas. Ensinou duas mulheres analfabetas a ajudá-lo nos trabalhos de parto, e o farmacêutico a proceder à anestesia, pois não tinha auxiliares devidamente habilitados. Conforme o médico, “em pouco tempo eu ensinei duas mulheres analfabetas, mas inteligentíssimas senhoras do povo a ajudar-me na sala cirúrgica. Sem provocar de minha parte nenhuma demonstração de descontentamento”365. Em decorrência da situação encontrada, opina que o Ministério do Exterior Italiano e o

fica alvo como os ossos de origem”. Ver: ANDRADE, Mario de. Namoros com a medicina. Porto Alegre:

Livraria do Globo, 1939, p. 85 e 127. Conforme Witter, este composto fora receitado para indivíduos que ficaram doentes após a inoculação de pus variólico na Vila de Santa Maria, em meados do século XIX. Ver: DAUDT FILHO, João. Memórias. Rio de Janeiro: s.n., 1949, p. 260, apud WITTER, Nikelen Acosta. Dizem

que foi feitiço: as práticas de cura no sul do Brasil (1845 a 1880). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 101.

364 CARDELLI, Luigi. Fra gli emigrati nel Brasile: tre ani di esperienza medica (1907-1910). Bolonha:

Stabilimento Poligrafico Emiliano, 1910, p. 17.

Comissariado de Emigração fariam bem em enviar parteiras italianas diplomadas para ensinar as parteiras locais366.

A opinião do médico referente às parteiras é modificada quando passa a ter o suporte das mulheres durante as suas atividades diárias e nos partos. Como Cardelli salienta, elas foram progressivamente orientadas em suas atividades e desempenharam adequadamente suas atividades. Percebe-se que, em seu discurso inicial, o médico apresentava as parteiras como defensoras do obscuratismo popular. Isto está em consonância com a ideologia positivista, que os considerava como as autoridades mais competentes para exercerem as condutas e medidas preventivas relacionadas à cura, e porta-vozes da modernidade e da higienização.367

Infere Nikelen Witter que “o uso descontextualizado dos comentários de viajantes, considerados como visões parciais de uma realidade fugaz”, contribuiu para a construção de uma história das mulheres onde está presente a passividade, com mulheres inexpressivas e ausência das mulheres negras. Destaca que os relatos tinham como principal caracterísitica a deferência àquelas da elite. A autora salienta as atividades das parteiras, em Santa Maria, e a posição privilegiada que elas passaram a ocupar, pois não raro se estabeleciam importantes laços de afinidade com suas clientes, participavam da vida íntima das gestantes a quem atendiam, o que incluía se transferirem para as suas casas principalmente quando moradoras em áreas rurais, antes do parto e permanecendo durante o puerpério368.

Da mesma forma, é possível que esta suposta passividade feminina possa ser questionada em relação à participação das esposas dos médicos, uma vez que estas tinham convívio constante com a atividade de seus conjuges, dado a proximidade física de seu ambiente doméstico com o local de trabalho, e a escassez de auxiliares. Desta maneira, suas mulheres possuíram um papel fundamental na difusão das novas práticas de cura.

366 Em 1897, foi fundado o Curso de Partos na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. Foi idealizado por

Protásio Alves, diretor da Enfermaria de ginecologia e partos. Este curso foi criado com a finalidade de instruir mulheres, preferentemente casadas, que desejassem exercer a profissão de parteiras. O teste de seleção constituía-se de prova de língua portuguesa acompanhada de ditado e outra de matemática. O curso tinha um ano de duração. As mulheres tinham acesso a pouco instrumental e era-lhes vedado receitar medicamentos ou fazer cirurgias. Parteiras estrangeiras noticiavam suas atividades em jornais de Porto Alegre, no mesmo ano. Citam-se Maria Venturini Recco, com experiência nos hospitais de Veneza e Pádua, e a alemã Helene Mierisch Wagner. Ver: BRANDÃO, Nadja dos Santos. Da tesoura ao bisturi, o ofício das

parteirs 1897-1967. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História,

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998, p. 83 e 93.

367 Ibidem, p. 225.

368 WITTER, Kikelen Acosta. Os muitos obséquios das senhoras: mulheres em Santa Maria, século XIX. In:

WEBER, Beatriz Teixeira; RIBEIRO, José Iran (Org.). Nova história de Santa Maria; contribuições recentes. Santa Maria: [.n.], 2010, p.271-275.

Cardelli, de alguma forma, levou a mudanças nos modos de vida da população que foram incorporadas ao cotidiano urbano de Boa Vista das Pedras e Ibitinga. De acordo com Gouveia, no contexto do processo de urbanização no interior paulista, no auge do período cafeeiro, os imigrantes europeus importavam hábitos e experiências urbanas diferenciadas às cidades do café, uma multiplicidade de bens e serviços cuja oferta dependia de um saber-fazer específico dos mesmos369.

Devido à premência de fazer exame de convalidação, pois estava sendo chantageado e recebendo ameaças por exercer ilegalmente a medicina, opta por transferir-se para o Rio Grande do Sul, evitando multas e processos. Essa escolha era decorrente do seu conhecimento da não necessidade de prestar exame em Faculdade de Medicina para convalidação de diploma médico neste Estado.