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3.4 DE PATTA: ENTRE INCÊNDIOS E DISPUTAS PELO CONTROLE DAS

3.4.3 A versão do médico Vicente Modena

Essa versão foi publicada no livro Tarimbas (1941), no capítulo denominado Anta Gorda, em que Vicente Modena relata a sua passagem por essa localidade. O trecho do livro foi incluído na obra de autoria de Lauro Thomé, quando este faz um contraponto com as versões citadas anteriormente.

Vicente Modena omitiu nomes na narrativa e troca o seu nome para Mota Vieira e o de De Patta, para Ruperti. Modena sustenta que foi apontado como sendo o causador do episódio de Anta Gorda, em sua versão do ocorrido496.

É importante salientar que, nesta narração, Modena chama De Patta de charlatão. Nas entrelinhas, podem-se observar o espectro da liberdade profissional existente no Rio Grande do Sul, a disputa de clientela entre os dois médicos, a construção de um hospital por De Patta, a sua utilização do recurso de propaganda para angariar pacientes, a competição entre os médicos, os acordos políticos, a polêmica entre De Patta e o religioso, a rivalidade entre o Delegado de Polícia e o intendente municipal, com a partidarização de opiniões entre os moradores.

As características do exercício de De Patta são denunciadas por Modena:

Desgraçava o Rio Grande a malfadada liberdade de profissão. Devido unicamente a ela, os elementos indesejáveis pululavam, oriundos de todos os lugares, onde as suas atividades encontravam óbices nas leis moralizadas. Por isso mesmo, fazendo frente aos profissionais honestos, em cada canto do estado podiam ser encontrados médicos e medicastros de qualquer jaez. Pudera! Se a exigência única, para que se estabelecessem, consistia no imposto de indústrias e profissões! Daí a denominação de doutores de sessenta mil réis.

Nesta enxurrada surgiu um que se avantajou pelo rompante e pela audácia. [...] Intitulava-se oficial de um exército europeu. Graças a sua logorréia conseguiu persuadir os colonos a se cotizar e levar a termo a construção de um hospital. A sua atuação entrou a fazer furor.

A propaganda, realizada por todos os meios e processos, canalizava doentes, não só das circunvizinhanças como de zonas remotas. Ao exagero das primeiras aparições sucedia, pouco a pouco, uma desilusão crescente497.

Nesta citação, Modena sugere que De Patta comprara o seu diploma no Brasil por 60 mil réis. É uma crítica à aplicação do Decreto 8.569, de 5 de abril de 1911, também chamado de Reforma Rivadávia, quando houve uma liberalização do ensino superior.

496 MODENA, Vicente. Tarimbas. São Paulo, [s.n.], 1941, apud THOMÉ, Lauro Nélson Fornari. O município de

Encantado através do tempo. Encantado: [s.n.], 1967, p. 115.

A competição que existia entre os dois médicos foi transposta para o plano da disputa política. A tomada de partido pelos habitantes da localidade revela-se entre Modena e De Patta; o cel. Virgílio Silva passa a apoiar Modena, e o Delegado de Polícia Geraldo Costa, De Patta, com suas implicações. A atuação profissional de Modena (ou Mota Vieira) é exaltada, ao mesmo tempo em que aceita e reconhece o prestígio político do intendente, como explica a seguir:

Governava o município de Encantado o cel. Virgílio Silva, até então, uma das pouquíssimas exceções políticas, pela sua bonomia e lisura e, por isso mesmo, sempre recompensado com a mais negra das ingratidões. O delegado de polícia, porém, protegido seu, apenas elevado a um cargo, que nunca soube ocupar, teve a sua ambição despeitada e espicaçada. Não passou muito tempo até surgir nele a veleidade de suplantar o seu benfeitor e substituí-lo no curul municipal [...] Cercou- se de capangas a pior laia e acumpliciou-se com a camarilha sinistra chefiada pelo charlatão. Nesse ínterim, os absurdos médicos e cirúrgicos deste começavam a clamar aos céus. O descontentamento brotava a cada passo498.

Modena considera que a sua instalação no município levou ao “desagrado aquele que dominava o campo em caráter absoluto”, ou seja, De Patta, e se jacta da recepção que lhe foi

oferecida:

A situação política não só acolheu [Modena] com cavalheirismo, como lhe facilitou quanto pode, pois via nele um elemento necessário ao município, com credenciais suficientes para inspirar confiança sob todos os pontos de vista e constituir um apoio precioso para prestigiar o domínio da ordem, que se procurava subverter de todos os modos. [...] Com o fim de denegrir o médico recém-chegado, o charlatão lançou mãos de tudo [...] Cresciam os créditos do profissional, em detrimento dos desmandos do intrujão499.

O autor escreve que o episódio do atentado contra o padre Catelli ocorreu em frente ao hospital, sugerindo que não havia dúvida da participação de De Patta no mesmo. Além disso, considera que foram tantos os absurdos praticados pelo bando chefiado por este último, que os políticos conseguiram, ao final, a sua expulsão da cidade, que aconteceu sob estrodosa salva de foguetes. Reconhece que a oposição logo lhe apontou como responsável do seu afastamento e que entrara no caso da mesma maneira como Pilatos entrara no Credo. Decide

“retirar-se para a capital do estado, depois de um ano e meio de trabalho insano, durante os

quais formara uma clientela apreciável, atuando sempre, malgrado a desigualdade da luta,

498 THOMÉ, Lauro Nélson Fornari. O município de Encantado através do tempo. Encantado: [s.n.], 1967, p. 117. 499 Ibidem, p. 117.

num terreno superior e elevado”500. Esta última informação combina com o tempo de formação do médico, que tinha menos de um ano e meio de formado na ocasião501.

As informações seguintes sobre o paradeiro deste médico mostram que atuava no povoado de Santa Teresa, 5º distrito do município de Bento Gonçalves, em março de 1924. Segundo Biavaschi, Modena estava envolvido em confrontos de lideranças daquele distrito que causavam embaraços aos interesses do Partido Republicano Rio-Grandense na região502. Conforme carta de Carlos Penafiel dirigida a Borges de Medeiros:

A agitação naquele distrito é feita por três “entidades”: um médico, que nem é eleitor, o dr. Vicente de Modena; o ex-escrivão Helvécio Lisboa, rapaz muito trôpego, de péssimo caráter e sem nenhum valor; e o sr. José Francischini, comerciante [...] O dr. Vicente de Modena [...] Está há pouco tempo em Santa Tereza, onde fundou uma casa de saúde, convidando o sr. Helvécio Lisboa para farmacêutico. Aquele está formado há três anos e é assisista do comitê Annes Dias, de Porto Alegre. É filho de um companheiro nosso, que tem aí, em frente do Banco da Província, uma casa de jogo. Chegou na localidade e entrou logo em luta com o sr. Neffre Teixeira, subintendente, por que este exerce a medicina como curandeiro503.

Percebe-se que a disputa pelo exercício da medicina está também presente nesse município, como ocorrera em Anta Gorda. Estavam sendo questionadas as atividades de charlatães e curandeiros nos cuidados de saúde e suas relações de compadrio com os políticos. Os médicos exigiam os seus espaços, ao mesmo tempo em que eram criadas casas de saúde.