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3.4 DE PATTA: ENTRE INCÊNDIOS E DISPUTAS PELO CONTROLE DAS

3.4.4 Documentos de Virgilio Silva

As narrativas dos indivíduos relatando as suas experiências podem ser denominadas de testemunhos voluntários, integrados por autobiografias, diários, relatos de viagem, etc., que foram produzidos com a intencionalidade de narrar uma experiência para o conhecimento dos demais. Existem também os testemunhos involuntários, representados pelas cartas de indivíduos

500 THOMÉ, Lauro Nélson Fornari. O município de Encantado através do tempo. Encantado: [s.n.], 1967, p. 118. 501 Vicente Modena era natural de Viggiano-Potenza. Recebeu o diploma de Medicina em dezembro de 1921

pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Ver: MAINARDI, Geraldo. Médicos italianos no Rio Grande do Sul. In: BONI, Luís de (Org.). A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Turim: Fondazione Giovanni Agnelli, 1996, p. 117.

502 BIAVASCHI, Márcio Alex Cordeiro. Relações de poder coronelistas na Região Colonial Italiana do Rio

Grande do Sul durante o período borgista (1903-1928). Tese (Doutorado em História), Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, p. 285.

503 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Carta de Carlos Penafiel a

Borges de Medeiros (n. 438, 26/03/1924 – Fundo Bento Gonçalves/ABM/IHGRGS), apud BIAVASCHI, Márcio Alex Cordeiro. Relações de poder coronelistas na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul

durante o período borgista (1903-1928). Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica do

relatando suas experiências ou reivindicando algo. Conforme Schwartsmann e Penna, observou-se, em pesquisas realizadas no Arquivo Particular Julio de Castilhos (AHRS), no que tange aos imigrantes italianos e seus descendentes, que em várias correspondências delinearam-se os passos para contrabalançar a influência de alguns líderes locais ligados ao sistema de poder anterior, concedendo gradual importância aos antigos colonos.

A leitura das cartas desconstrói a imagem estereotipada do colono trabalhador, mas isolado e passivo, surgindo um outro, em moldes urbanos, questionando velhos hábitos da política local e buscando ampliar o espaço que percebe favorável no contexto da República Velha Gaúcha Positivista504.

Desta maneira, podem ser verificadas na documentação contida no arquivo intitulado Borges de Medeiros – Anta Gorda, na série documental dos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, as origens do conflito que terminaram na destruição do hospital. Os documentos listados a seguir provavelmente faziam parte do processo que foi instaurado contra Virgílio Silva, em decorrência das lesões por ele praticadas contra o professor Lopresti, em 1922. Os depoimentos e declarações mostram as articulações políticas, a participação do clero e as demandas dos imigrantes italianos, no ano de 1922.

A sequência de documentos arquivados mostra o esforço do intendente em reunir provas que corroborassem positivamente a sua conduta. Nesse sentido, a manipulação da existência dos documentos pelo colecionador do acervo propicia, segundo Venâncio, “o destaque e o registro a determinados acontecimentos, ou, inversamente, omitindo ou esquecendo outros. Esta prática acaba por determinar o sentido que o colecionador procura

dar ao próprio arquivo”505.

Existem sete documentos relacionados a eventos que ocorreram em Anta Gorda e que datam de 1922. Cinco depoimentos foram direcionados ao cel. Virgílio Silva. São depoimentos manuscritos que revelam o apoio às condutas do mesmo, nessa localidade. Dois dos documentos foram escritos pelo próprio intendente e foram enviados ao presidente do

504 As fontes históricas que integram o Arquivo Particular Julio de Castilhos constituem-se em um grande número

de cartas e bilhetes de caráter familiar, pessoal e político, notas de compras, fragmentos de diversos escritos, atas, proclamações, documentos relacionados à eleição e à vida política em geral, recortes de jornais, além de cartões e documentos legais. Ver: SCHWARTSMANN, Leonor; PENNA, Rejane. Pasos e pensamentos de estrangeiros em solo brasileiro: algumas reflexões sobre a utilização de cartas e diários na pesquisa sobre imigração italiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 171, v. 446, p. 127-149, jan.-mar. 2010.

505 VENÂNCIO, Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história. In:

GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004, p. 113.

Estado, Dr. Borges de Medeiros. Em quase todos foi aposta a rubrica do intendente Virgílio Silva e um número a lápis; em alguns, este acrescentou nota explicativa. As assinaturas nos documentos também foram reconhecidas.

A primeira missiva escrita pelo intendente Virgílio Silva, direcionada ao presidente do Estado, Dr. Borges de Medeiros, é composta de 24 páginas não numeradas e datada de 8 de outubro de 1922506. Explica ao presidente do Estado que havia um grupo de inimigos em Anta

Gorda que fazia “perseguições e perfídias” contra a sua pessoa. Os moradores de Anta Gorda

queriam a destituição do seu cargo de intendente e, para tanto, foi organizada uma profusão de listas de adesão entre os moradores da vila e que seriam enviadas a Borges de Medeiros, para que o intendente fosse destituído, tuti quanti. Além da pressão das listas, havia rumores de que um grande número de eleitores se absteria das urnas nas eleições presidenciais próximas, caso o presidente do Estado não destituísse Virgílio Silva do cargo de intendente. O intendente narra que “esta espécie de ameaça é muito comum naquele povoado onde a

autoridade constitucional só é respeitada pelo emprego da força da qual jamais usei”. Atesta

que o médico Vicente de Modena poderia confirmar as suas observações.

Relata ao presidente que foi “traiçoeiramente alvejado pelos Borroni, De Patta,

Kümmel”. Borroni era advogado do distrito, Kümmel era o representante da Comissão de terras, e De Patta, o médico da vila. Além desses, o delegado de Polícia Geraldo Costa estava envolvido na organização das listas. Virgílio Silva alega que o motivo que originou tais listas era que seu filho praticava advocacia nessa localidade. Lembra a Borges de Medeiros que havia solicitado previamente o cargo de coletor estadual de Anta Gorda para seu filho, cargo que não foi dado. Seu filho era coletor estadual em Garibaldi, mas ficara doente. Fora feita a solicitação do emprego em benefício do filho por este estar muito doente, tinha hemoptise e que seu médico recomendara que fosse para Suíça em busca de tratamento. Agradeceria a Borges de Medeiros se houvesse um “cargo de promotoria ou juizado, ou outro emprego que demandasse menor esforço intelectual a fim de não prejudicá-lo emasiadamente em sua saúde

já combalida”507. Entrementes, seu filho poderia advogar em Anta Gorda, o que era

necessário, visto este ser muito pobre e ter que sustentar mulher e quatro filhos. Outrossim, informava que o padre de Anta Gorda, Catelli, também era perseguido pelo Dr. De Patta e pelo advogado Dr. Boroni e que o padre queria ir embora daquela vila.

506 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

nº 1768. Intendência Municipal, Gabinete do Intendente. Encantado, 8 de outubro de 1922.

Mas a situação do filho do intendente advogar em Anta Gorda causou revolta na comunidade. O cel. Virgílio Silva fora acusado de empregar familiares em cargos públicos. Explica que, de fato, tinha dois familiares na intendência de Anta Gorda, um sendo subintendente do 2º Distrito, Anta Gorda, e o outro guarda da coletoria, que eram funcionários públicos antes mesmo de sua indicação para intendente.

Há uma série de queixas e solicitações dirigidas ao presidente do Estado. Relata que os habitantes e colonos de Anta Gorda queixam-se de não haver uma estrada entre Encantado e Anta Gorda e que ocorreram modificações no traçado da mesma, mas isso estava além das suas atribuições de intendente devido ao seu elevado custo508. Virgílio Silva informa ao presidente do Estado que o chefe do escritório de comissão de terras e colonização, Guilherme Kümmel, e o seu auxiliar, Celeste Zapelon [guarda florestal], conspiraram contra a sua pessoa e influenciaram os colonos em posição contrária à dele. Solicita também a demissão de Geraldo Costa do cargo de chefe de polícia, pois este estava agindo contra a sua autoridade, o que era agravado, visto ser um funcionário público.

A segunda carta do intendente cel. Virgílio da Silva endereçada ao presidente do Estado foi despachada em 2 de dezembro de 1922509. Já ocorreram as eleições estaduais para

presidente do Estado, e Borges de Medeiros havia sido o eleito na conferição do escrutínio de Anta Gorda. Diz que os rumores continuavam, temia ser demitido após a eleição, mesmo sendo Borges de Medeiros vitorioso. Refere que ele estivera previamente com os colonos e que havia solicitado o apoio destes para a eleição presidencial de Medeiros, e que questionava se não havia sido o seu próprio prestígio que causara a vitória deste último, nesta vila. Mas preocupa-se, também, com o delegado de Polícia, Geraldo Costa, que tramava para que fosse demitido de seu cargo. Alega que este contava até com o apoio do clero. Considera-o

“vaidoso como ninguém, deixa-se explorar até pelo clero que, sedento de ganância, suga-lhe o

cobre em alta soma, a título de donativo às igrejas do município e deste modo se tornar

508 A ampliação da rede de estradas da zona colonial era uma das grandes preocupações da administração do

Estado. Englobava a construção de estradas de rodagem e caminhos vicinais, pondo-os em contato direto com estações ferroviárias e portos. Ver: ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Mensagem

enviada a Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo presidente do Estado, Antonio A. Borges de Medeiros, em 20 de setembro de 1920, p. 59.

509 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

simpático aos padres”510. Para complicar mais sua situação, informa que o Dr. Borroni contava com o apoio dos colonos para a sua destituição e que estava certo que seria deposto.

Na missiva, aparecem elementos que confirmam a inquietação de Virgílio Silva em ser demitido. O intendente afirma que estava preocupado em completar o seu quatriênio no cargo, que seus subordinados ficariam indefesos caso fosse destituído do mesmo, que ele fazia parte do partido, sendo um velho correligionário, que era um direito que lhe assistia por lei a permanência no cargo, e que não havia justa causa para flagrante atitude.

Os documentos abaixo descritos mostram o apoio de destacados moradores de Anta Gorda à conduta do intendente. Nota-se que os mesmos procuram identificar a participação de De Patta em conluios contra o cel. Virgílio.

O depoimento escrito por Vicente de Modena aprova a conduta do intendente e sua

“ilibada administração”511. Depõe contra a atuação do delegado de Polícia Geraldo Costa, do

guarda florestal Celeste Zapelon, do escrivão distrital e de outros que se reuniam para tramar a deposição do intendente Virgílio Silva. Acrescenta que ele próprio, o padre e o farmacêutico resolveram qualificar-se para eleitores estaduais, reforçando o seu apoio nas eleições estaduais para presidente do Estado. Neste depoimento não cita De Patta. O documento foi reconhecido em cartório.

O oficial de justiça Gustavo Poletto escreve que, chegando na casa de comércio de propriedade de seu cunhado Angelo Angelini, ouviu o Dr. Oreste Dioniso Borroni, o engenheiro Guilherme Kümmel e o Dr. De Patta conspirando contra o intendente Virgílio Silva, que não o consideravam como bom administrador512.

O vigário de Putinga, padre Domingos Carlino, em documento redigido em italiano, relata que aconselhou aos colonos a não assinarem as listas que solicitavam a saída do intendente513.

O padre Erminio Catelli informa ao intendente que não se dá com o Dr. De Patta, que possuem divergências quanto às obrigações do médico no hospital. Sabia que queriam que o

510 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

nº 1769. Intendência Municipal, Gabinete do Intendente. Encantado, 2 de dezembro de 1922.

511 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

1768, escrito manualmente nº 1, Dr. De Modena, Operador. 26 de setembro de 1922.

512 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

1768, nº 4, de 4 de outubro de 1922.

513 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Anta Gorda. Documento

afastassem de suas funções nesta localidade, e pedia que o intendente tomasse as devidas providências para que ali permanecesse514.

O último depoimento foi redigido por Hiawatti Lautert, que era subintendente em Anta Gorda. Diz que presenciou uma reunião política entre o delegado de polícia, escrivão distrital e guarda florestal, respectivamente Geraldo Costa, Carlos Moro e Celeste Zapelon. Resultou que estes distribuíram listas de assinaturas entre os colonos, as quais eram endereçadas ao presidente do Estado e que atacavam a administração do intendente. Achavam-se também aliados no mesmo objetivo os Drs. Oreste Borroni e Michele De Patta515.

Percebe-se que os documentos recolhidos nesta série documental tentam comprovar a participação de De Patta em questões políticas no município de Encantado, as quais buscavam a deposição de seu intendente, envolvendo colonos, habitantes de Anta Gorda, representantes da comissão de terras, suspeitos de charlatanismo, padres e o delegado de polícia. Nas entrelinhas dos documentos, há referências a uma série de conflitos e disputas que envolviam médicos, clero, imigrantes e seus descendentes, e os políticos, entre eles a questão de nepotismo pela indicação de familiares do intendente a cargos públicos. A rivalidade entre os médicos De Patta e Modena sugere uma disputa por clientela.

O médico possuía contato com pessoas provenientes de diferentes estratos sociais da comunidade local. Devido a sua importância, causada pelo prestigio angariado durante seu exercício profissional, pode desempenhar o papel de intermediário privilegiado entre os moradores de Anta Gorda e os representantes oficiais. Desta maneira, não é de estranhar que De Patta fosse cooptado por grupos políticos locias ou que fosse capaz de recrutar adesões.