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A pletora médica foi uma queixa constante e sem solução da categoria médica italiana. Ela era considerada essencialmente um fenômeno urbano93. No discurso que havia desde a restauração até o período pós-Primeira Guerra Mundial, era questionado se existiam muitos médicos na Itália ou se estes estavam mal distribuídos. Messina infere que o complesso della pletora não era causado pelo número excessivo de médicos, mas pela sua má distribuição geográfica. Esse fato deu origem a um grande número de médicos desocupados. Ele era percebido tanto por aqueles que escolhiam a condotta medica, a profissão liberal ou o emprego público. Os médicos argumentavam que se o número de médicos fosse diminuído, seria aliviada a concorrência e realçado o prestígio social da categoria94.

Essa sensação era notada também nos EUA, na Bélgica, na Grã-Bretanha e no Canadá. Vozes contrárias surgiram na Itália quando o número dos inscritos nas faculdades de

89 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 248.

90 Ibidem, p. 247.

91 MALATESTA, Maria. Professionisti e gentiuomi. Storia delle professioni nell’Europa contemporânea. Torino:

Einaudi, 2006, p. 171.

92 SORESINA, Marco. I medici tra stato e società. Studi su professione medica e sanità pubblica nell’Italia

contemporanea. Franco Angeli: Milão, 1998, p. 84.

93 SORESINA, Marco. I medici tra stato e società. Studi su professione medica e sanità pubblica nell’Italia

contemporanea. Milão: Franco Angeli, 2007, p. 85.

Medicina começou a subir no final do século XIX. A notícia do desequilíbrio entre a oferta e a procura dos médicos, que era real, pode ter influenciado negativamente no desenvolvimento da fobia da pletora também na Itália. Era notório que a falta de ocupação médica era endêmica nos anos oitenta do século XIX95.

Era evidente a contração do mercado potencial para a profissão liberal. No entanto, segundo Sorresina, dados geográficos ao serem analisados mostravam uma carência de profissionais nos paese, sobretudo naqueles situados nas zonas rurais do Sul, mas que esta ocorria também nas províncias do Norte e da Itália Central96.

Havia uma grande diferença na relação médico/habitante entre as cidades mais populosas e importantes do país e aquela existente no país como um todo; naquelas, existia um maior número de médicos por habitantes que o observado nas províncias. É importante salientar que esta relação favorável não necessariamente significava um serviço sanitário satisfatório. Existiam províncias em que o número de médicos e cirurgiões residentes fora das capitais era menor que o número das comunas existentes na mesma província nas décadas finais do século XIX97.

A sensação de pletora ocorria concomitantemente no Brasil, em 1922. Alguns médicos presentes no Congresso Nacional de Práticos realizado no Rio de Janeiro, naquele ano, creditavam essa percepção ao excesso de médicos formados, o que ocasionava um desequilíbrio na lei da oferta e da procura de serviços. Dessa maneira, para diminuir a concorrência existente entre os profissionais nacionais, sugeriam que fosse, entre outras coisas, limitado o número de vagas nas faculdades de medicina existentes e dificultada a entrada de médicos estrangeiros no país98.

Aristides Rabello afirmou, em discurso proferido na ocasião, que:

O Brasil está repleto de faculdades médicas; agora já não sucede o que dantes sucedia. Não há nenhuma localidade no território nacional, a não ser em alguma aldeia, semi-selvagem perdida na orla da floresta, aqui e ali, onde a vida do homem de gravata é humanamente impossível, que não possua médicos! A benéfica concorrência, tão útil aos necessitados de socorros médicos, já se estabeleceu mesmo entre os profissionais brasileiros. De norte a sul, de este a oeste, na

95 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 196.

96 SORESINA, Marco. I medici tra stato e società. Studi su professione medica e sanità pubblica nell’Italia

contemporanea. Milão: Franco Angeli, 2007, p. 273.

97 MESSINA, op. cit., p. 188-191.

98 PEREIRA NETO, Andre de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,

província, na capital, as faculdades lançam a circulação, cada ano, bateladas de médicos, de todos os jeitos, de todos os feitios, desde o modesto candidato ao emprego de campo, até o jovem sábio laureado. Existe mesmo um exagero, uma lamentável pletora. Não precisamos mais facilitar a vinda de outros99.

Essas afirmações de Rabello não são sustendas. Salienta-se que eram poucas as faculdades de medicina existentes no país. Em 1920, havia pelo menos dez instituições nacionais localizadas na Bahia, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo, Belém e Recife. Em Porto Alegre, existiam a Faculdade de Medicina de Porto Alegre e a Escola Médico-Cirúrgica100. Essas faculdades não correspondiam às necessidades de formação de médicos do país. Além disso, ocorria uma inadequada distribuição geográfica. No caso do Rio Grande do Sul, havia uma maior concentração de médicos na capital e uma escassez no seu interior, na primeira metade do século XX101. Entre 1900 e 1920, a relação entre habitantes/médico se modificou de 995 habitantes/médico para 1529 habitantes/médico em Porto Alegre, ou seja, o aumento populacional não foi acompanhado pou um incremento no número de médicos.

Retornado a Itália, as ofertas de emprego relacionadas ao posto de condotta medica não eram cobertas. Os jovens médicos recém-formados não estavam dispostos a aceitar os baixos salários oferecidos, somados à difícil qualidade de vida, o que os levava a escolher carreiras mais remuneradas. O fenômeno era considerado nacional. Para exemplificar, no ano de 1908, dos 106.632 postos recenseados no reino, 995 estavam vagos (9,35%), e distribuídos de maneira desigual pelo país102.

A atividade liberal da profissão médica começou a crescer nos anos da industrialização e foi apoiada por uma política de governo que favorecia a expansão da saúde privada. No ano de 1906, foi abolida a condotta plena, e os médicos condotti foram autorizados a praticarem, também, a atividade privada. Os médicos liberais aumentaram em 39%, de 8983 a 12375, entre os anos de 1885 e 1905, enquanto o crescimento dos médicos condotti foi de apenas

99 RABELLO, Aristides. Internacionalização do exercício da medicina: defesa contra os indesejáveis. In: Actas

e Trabalhos do Primeiro Congresso Nacional dos Práticos. Rio de Janeiro: Publicações científicas, 1923, p. 505, apud PEREIRA NETO, Andre de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001, p. 117.

100 A Escola Médico-Cirúrgica de Porto Alegre foi criada em 1915, sendo suas atividades encerradas em 1932. 101 Censos de 1900 e 1920. Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio

Grande do Sul. Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1951; ARQUIVO HISTÓRICO DE PORTO ALEGRE MOYSÉS VELINHO. Livro de Registro de Impostos sobre Profissões, anos de 1900, p. 4 e 1920, p. 8.

102 PEREIRA NETO, Andre de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,

20% no mesmo período103. Destaca-se que 66% dos médicos estavam concentrados nos grandes aglomerados urbanos com mais de 20 mil habitantes104. O aumento dos médicos foi mais significativo do que o da população italiana ao ser analisado um período mais longo: enquanto a população da Itália aumentou 50% entre os anos de 1881 e 1936, os médicos aumentaram em 74%; a relação entre habitantes/médico se modificou de 1500 habitantes/médico para 1300 habitantes/médico105.

Apesar de a Itália ter entrado na via do desenvolvimento industrial na metade dos anos noventa do século XIX, a qualidade de vida da classe popular era ainda muito baixa para que a demanda de serviços médicos pudesse alimentar o mercado profissional. O indispensável progresso na condição econômica da população, especialmente a rural, deveria ser acompanhado também por uma melhoria no status dos médicos condotti. Entretanto, a melhoria para ambos foi lenta e contrastante. Messina considera que, mesmo quando o número dos inscritos nas faculdades de Medicina voltou a subir, não se verificou uma modificação substancial na relação entre a oferta e a demanda de prestação de cuidados médicos. O sintoma mais grave da má distribuição não havia desaparecido, uma vez que, em diversas províncias, o número de médicos que moravam fora das capitais continuava inferior ao de comunas106.

Existia, portanto, uma potencial demanda de serviço sanitário que poderia ter sido ocupada pelos novos formandos em Medicina se um número maior de cidadãos italianos pudesse pagar pelos cuidados médicos, pois um exame rápido das condições sanitárias e de doenças que existiam na Itália ao final do século mostrava que os cuidados médicos eram necessários e insuficientes.

É importante destacar que, no estudo apresentado por Messina, há uma única referência aos médicos que foram para o estrangeiro nos anos setenta do século XIX, período considerado de início da imigração italiana oficial para o Brasil. O autor informa que estes médicos eram considerados como desesperados, pois emigravam para o Novo Mundo em vez de complementarem seus estudos com uma experiência hospitalar107.

103 MALATESTA, Maria. Professionisti e gentiuomi. Storia delle professioni nell’Europa contemporânea. Torino:

Einaudi, 2006, p. 177.

104 SORESINA, Marco. I medici tra stato e società. Studi su professione medica e sanità pubblica nell’Italia

contemporanea. Franco Angeli: Milão, 1998, p. 272.

105 Ibidem, p. 272-273.

106 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 191-192.

O medico condotto Ricardo D’Elia, ao decidir pela emigração para o Brasil, em 1888, admitiu à sua esposa duas razões para deixar a Itália:

[...] agora eu não estou mais sozinho a precipitar na minha habitual extravagância, mas eu assumi um sacrossanto dever; aquele de procurar a tua felicidade e a da nossa idolatrada filhinha. Outro pensamento me incita de ir para a América com muita confiança, que farei fortuna; que se outros em condições piores que a minha foram felizes, por que não esperá-la eu também e depois retornaremos logo ao meio dos nossos queridos que tanto nós amamos108.

Entre as razões destacadas para a vinda de médicos italianos para o Brasil, Salles, em estudo dos médicos italianos que se estabeleceram no estado de São Paulo, identificou motivos particulares às famílias e às características da profissão médica na Itália de finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Havia uma crise geral por que passava a sociedade italiana no período, ocasionando um processo de decadência social, que era vivido pelas famílias no contexto social mais amplo. Verifica-se que, até a primeira década do século XX, os médicos eram jovens recém-formados provenientes de famílias com grande número de filhos, em grande parte a imigração era individual ou de um ou dois membros da mesma família – eram, em geral, os filhos do meio –, o que demonstra razões de hierarquia intrafamiliar; registra-se ainda que muitos foram os casos de emigração de homens solteiros. A opção de prestígio encontrava-se nas áreas militar, religiosa ou jurídica; nesse sentido, a opção pela carreira médica levava a uma falta de expectativa de manutenção do status familiar109.

Além dos motivos já citados, encontra-se a situação da ciência e da clínica médica na Itália. A Medicina italiana distinguia-se da do resto da Europa no século XIX; é importante ressaltar que a laicização do atendimento médico que se seguiu à Reforma protestante por toda a Europa não se verificara plenamente na Itália. O controle exercido pela Igreja nos hospitais obstaculizava a ascensão na carreira do seu corpo clínico. Segundo Maria do Rosário Salles, o controle religioso católico das práticas médicas dificultou a absorção das descobertas que revolucionaram a Medicina no final do século XIX – a Revolução Pastoriana110.

108 D’ELIA, Ricardo. Argentina, Paraguay e Brasile: riccordi e consigli. Turim: Tipografia Torinese, 1906, p. 20. 109 SALLES, Maria do Rosário. Médicos italianos em São Paulo (1890-1930): um projeto de ascensão social.

São Paulo: Editora Sumaré/FAPESP, 1997, p. 80 e 83.