• Nenhum resultado encontrado

1.2 O ESTADO DA PROFISSÃO MÉDICA E AS POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO NA

1.2.1 A Condotta Medica

O medico condotto estava na base dos serviços de saúde pública italianos. Vinculado à formação da assistência sanitária, sua origem remonta à Roma antiga. Fragmentado o Império Romano e com o surgimento das comunas livres (liberi comuni) no período medieval, a assistência à população, até então conduzida pelas organizações eclesiásticas, passa a ser responsabilidade dos citadinos. O médico, a serviço de instituição pública, recebeu esse nome devido ao contrato (condotta) por ele estipulado. Esta iniciativa representa, pois, a primeira tentativa planificada para reduzir as desigualdades entre as cidades e o campo. A utilização

55 LIMA, Rita de Cássia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de família no Brasil e na Itália:

refletindo questões éticas e desafios contemporâneos. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.

56 COSMACINI, Giorgio. La religiosità della medicina. Dall’antichità a oggi. Bari: Laterza, 2007, p. 133-134. 57 LIMA, Rita de Cássia G S; Verdi, Marta Inez. A solidariedade na medicina de família no Brasil e na Itália:

refletindo questões éticas e desafios contemporâneos. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 13, n. 29, p. 273, abr./jun. 2009.

desses médicos tornou a Medicina acessível aos mais pobres. A condotta foi instalada oficialmente na Toscana, em 163058.

O medico condotto era responsável pela assistência gratuita aos pobres e tinha a obrigação de prestar esse tipo de atendimento a todos os habitantes da comuna, não importando as causas nem os gêneros de doença59. As esposas dos médicos cooperavam para aumentar a renda familiar, auxiliando no fornecimento de medicamentos aos doentes, no dispensário local como fora destacado pelo médico Giovanni Palombini em seu relato de viagem60. O edital publicado no ano de 1910, em Zeri, para concurso de medico condotto, informava que, entre as obrigações solicitadas aos médicos, estes deveriam propiciar tratamento gratuito aos habitantes e aos pobres que se encontrassem de passagem pelo território desta localidade. O salário estipulado era de 2.200 liras por ano, acrescido de 500 liras para a caleche obrigatória, mais 200 liras para o custo e para a gestão do dispensário61.

Os médicos da elite chamavam o medico condotto de “jovem e pobre médico das

comunas”. Tinham para ele um projeto positivo, que consistia em civilizar as camadas mais modestas da sociedade. O “médico proletário”, além de ser um “técnico” que aliviava as dores

das pessoas, era considerado como um operador social que se ocupava dos problemas da coletividade, servindo como intermediário entre as camadas populares e o poder público. Ainda no final do século XIX, o trabalho desses médicos da assistência pública era mal remunerado; eram responsáveis por grande número de pacientes e acumulavam funções que implicavam visitas domiciliares, manutenção de dispensários, aplicação de vacinação, redação de estatística médica e verificação de mortes. Reconheciam-se como refugos sociais, como profissionais abandonados pelo Estado62.

Esses médicos possuíam um conhecimento real das condições de vida da população que estava sob sua tutela, construída a partir de relações de confiança. Nas considerações relativas à vida das grandes cidades da Itália, constata-se que as anotações feitas por

58 FAURE, Olivier. Les stratégies sanitaires. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire de la pensée médicale

en Occident. Paris: Éditions Seuil, 1997, p. 293. (De la Renaissence aux Lumières; v. 2).

59 BUZANO, Ernesto. La condotta medica in Itália: appunti, dottrina, legislazione e guirisprudenza. Milano; Turim;

Roma: Fratelli Bocca, 1910, p. 49-55.

60 SCHWARTSMANN, Leonor C. B. Olhares do médico-viajante Giovanni Palombini (1901-1914). Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 147.

61 CRONACA di un Secolo in Lunigiana. 1910. Disponível em: <http://www.lunigiana.net/XXsecolo/centoanni/

1910.htm>. Acesso em: 5 mar. 2007.

62 NONNIS, Serenella. Le cure dans la ville, novateur malgré lui, Italie, XIXe-Xxe siècles. In: BOURDELAIS,

Patrice; FAURE, Olivier. Les nouvelles pratiques de santé (XVIII-XX siècles). Paris: Éditions Belin, 2005, p. 253-254.

Palombini são carregadas de emoção referentes à saúde das famílias que ele acompanhou. Sua experiência como medico condotto na Itália o habilitou a externar opiniões: “Quantas dores, e quantas desilusões, quantas humilhações, quanta fome, quantos delitos e quantos

suicídios!”63. Ao se recordar da vida em seu país nestes locais, a família é desestruturada, a

mulher possui um papel negativo, verificado quando acompanha nas noites os bêbados nos teatros, nas biscas, nos bailes e nas orgias, os pais se abastecem dos lixos nas ruas e os seus filhos são escrofulosos64.

Nas pequenas cidades da Itália, conforme as memórias escritas por Ricardo D’Elia, o medico condotto, juntamente com o prefeito, com o secretário, com o farmacêutico, com o mariscalo, com o barbeiro e com o vigário, compunham a cúpula das autoridades e das pessoas mais influentes. Era frequente se reunirem na farmácia local. Ele faz uma comparação ao chegar à Vila de São Vicente no Rio Grande do Sul, nos anos iniciais do século XX. O autor constata, impressionado, essa mesma situação, ao presenciar a reunião de homens no albergue onde estava hospedado, que jogavam e confabulavam sobre as últimas notícias65.

Apesar do reconhecimento social citado anteriormente, podem-se identificar as dificuldades que Palombini sofrera no exercício de sua profissão, em sua terra natal, Ascoli Piceno, de acordo com suas recordações anotadas em seu relato de viagem, já no Brasil:

[...] voei, com o pensamento, àqueles penosos tempos, durante os quais fui medico

condotto (municipal) na Itália; à poesia (parece-me que) de Fusinato: “arte mais mísera, arte mais rota, não há, que a do médico que vai em condotta”; aqueles

burrinhos, ou melhor, asnos que me traziam, quando em Venarota tinha eu tantos patrões e ao mesmo tempo em que com dissimulada indiferença, ia ao exator Mestichelli para pedir 50 liras antecipadas sobre meus vencimentos mensais (por assim dizer antecipadas, pois que no fim do mês já seriam minhas), e ele, o bom velhinho, não as negava nunca66.

Sua experiência no exercício da medicina na Itália o habilitou a fornecer julgamentos acerca da vida no Brasil, tornando-os referência para os seus conterrâneos. Suas opiniões relativas à emigração eram solicitadas: “nos poucos anos em que resido no Brasil, recebi diversas cartas de pessoas que desejavam deixar a Itália, onde não possuíam nem casa, nem

terra, nem trabalho. Alguns vieram, e outros já se encontram satisfeitos”67.

63 PALOMBINI, Giovanni. Usos e costumes do Rio Grande do Sul e suas riquezas naturais. [S.l.: s.n.], [s.d.], p. 44. 64 Ibidem, p. 196.

65 D’ELIA, Ricardo. Argentina, Paraguay e Brasile: riccordi e consigli. Turim: Tipografia Torinese, 1906, p. 250. 66 PALOMBINI, op. cit., p. 176.