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3.3 GIOVANNI PALOMBINI E A PROPAGANDA PARA A IMIGRAÇÃO

3.3.1 O relato de viagem e a geografia médica

Guiado por uma postura científica em consonância com o tempo, os tópicos de saúde encontrados em seu relato revelam elementos da topografia médica, prática generalizada na Europa a partir da segunda metade do século XVIII, e de geografia médica413. Os empreendimentos, liderados por clínicos e por higienistas das potências coloniais europeias, estavam voltados para a construção de um conhecimento médico adequado à patologia e às terapêuticas tropicais414.

A Geografia Médica é a disciplina que estuda a geografia das doenças, isto é, a patologia relacionada aos conhecimentos geográficos. Ela apresenta a importância do meio geográfico no aparecimento e na distribuição de uma determinada doença. Surge a partir dos séculos XVI e XVII, em decorrência do processo de expansão dos países imperialistas nas regiões tropicais, com fins de conquista e de colonização. Origina-se da necessidade de se conhecer a distribuição das doenças para a defesa dos povos indígenas e para oferecer melhores possibilidades de fixação aos colonizadores415.

O texto Dos ares, das águas e dos locais, de Hipócrates, é o primeiro tratado de Climatologia Médica conhecido e também o primeiro tratado de Antropologia. Escrito para um médico itinerante que chega a uma cidade desconhecida, esta obra dispõe os aspectos que o profissional deve observar no tratamento das doenças mais frequentes. Segundo Jacques Jouanna, a saúde e a doença dos homens dependeriam não somente da maneira como viviam,

412 MARTINS, Roberto Duarte. A construção do espaço no Sul do Brasil. De fronteira ao MERCOSUL: o caso

de Jaguarão. Atas do II Colóquio Internacional de Geocrítica. Scripta Nova, Revista Eletrônica de Geografia

y Ciências Sociales, Barcelona, n. 69, v. 54, 1 ago. 2000. On line. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocri

t/sn-69-54.htm>. Acesso em: 20 jan. 2013.

413 BARRETO, M. R.; ARAS, L. M. B. de. Salvador, cidade do mundo: da Alemanha para a Bahia. História,

Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 160, jan.-abr. 2003.

414 EDLER, Flávio Coelho. De olho no Brasil: a Geografia Médica e a viagem de Alphonse Rendu. História,

Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, p. 926, 2001.

415 LEMOS, Jureth Couto; LIMA, Samuel do Carmo. A geografia médica e as doenças infecto-parasitárias.

mas, sim, de toda uma sorte de fatores naturais que se impunham. As influências, como a situação do local, a orientação solar ou de vento da cidade, a qualidade das águas e do solo, produziriam efeitos sobre os indivíduos que sobreviveriam e reagiriam segundo a função de sua natureza, do sexo e da idade416. Esse determinismo do meio sobre o homem explicaria as diferenças físicas e políticas entre os povos417.

A historiografia sobre as causas ambientais das doenças mantinha uma orientação empiricista. De acordo com Flávio Edler, o protocolo destas observações, baseado na tradição neo-hipocrática, utilizava a terminologia das causas etiológicas que definiam as alterações da saúde. Desse modo, eram examinados os itens circunfusa, ingesta, excreta, percepta, applicata e, por fim, os gesta418. As doenças dividir-se-iam em causas próximas, remotas, predisponentes e determinantes. As causas determinantes, divididas em seis classes classificatórias, seriam as que produziriam a doença ao achar o corpo predisposto a contraí-la419.

As origens dessa terminologia remontam a Galeno. Para esse médico grego, cuja importância persistiu até o século XIX, as causas etiológicas das doenças poderiam ser internas ou externas. Entre elas, a mais importante era a ação do ar ambiente. Para se prevenir contra os riscos e se chegar a uma idade avançada, era preciso seguir as normas da higiene, essencialmente se ocupar da vigília e do sono, do exercício e do repouso, da fome e da sede, dos alimentos e da bebida. Tais noções tornar-se-iam canônicas na Antiguidade tardia sob o nome de sex res non naturales. No meio bizantino, começou-se a atribuir à saúde ao bom uso dos seis elementos não naturais: ar/meio, exercício/repouso, alimentos/bebidas, sono/vigília, evacuação/repleção e as paixões420.

Esses fatores ditos “não naturais” eram essenciais, a fim de se evitar os acontecimentos “contranaturais” (como se chamavam comumente as doenças), ou para

remediá-los, caso a pessoa já os tivesse. Aqui, os meios terapêuticos, que tinham por objetivo

416 JOUANNA, Jacques. La naissence de l’art médical occidental. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire

de la pensée médicale en Occident. Paris: Éditions du Seuil, 1995, p. 42. (Antiquité et Moyen Age; v. I).

417 GOTTSCHALL, Carlos Antonio Mascia. Medicina hipocrática: antes, durante e depois. Porto Alegre:

Stampa, 2007, p. 41.

418 EDLER, Flávio Coelho. De olho no Brasil: a Geografia Médica e a viagem de Alphonse Rendu. História,

Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, p. 928, 2001.

419 PAIVA, Verónica. Medio ambiente urbano: una mirada desde la historia de las ideas científicas y las

professiones de la ciudad. Buenos Aires 1850-1915, 2000, p. 160. Disponível em: <http://revistaurbanismo.u chile.cl/n3/indice.htlm#a>. Acesso em: 12 out. 2007.

420 SOTRES, Pedro Gil. Les régimes de santé. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire de la pensée

tradicionalmente a restauração do equilíbrio dos humores, deveriam auxiliar o poder curativo da natureza, o vis medicatrix naturae próprio a todo indivíduo421.

Levando em conta a saúde como a manutenção do equilíbrio e de uma harmonia natural, o pensamento tradicional determinava a utilização preventiva e terapêutica de diferentes procedimentos considerados naturais, notadamente a dieta, as sangrias e os banhos. Salientava-se a importância da non naturalia para manter e para se recuperar a saúde, recomendando-se especialmente a sangria como estratégia terapêutica422.

Percepta era a denominação dada para os costumes, a sexualidade, a higiene pessoal e as emoções fortes, tais como as paixões, a cólera, o medo e a alegria excessiva. Applicata era tudo o que se aplicava imediatamente ao corpo, ou seja, as vestimentas de muito ou pouco abrigo, demasiado ajustadas, os banhos, os cáusticos, os álcalis e vários sais metálicos postos em contato com o organismo que prejudicariam a vida.Gesta eram as ações, os exercícios violentos, a vida sedentária. Englobavam também os movimentos habituais e as atividades profissionais423.

A expressão Ingesta estava relacionada com os alimentos e com as bebidas. Eram consideradas as substâncias introduzidas nas vias orais, como alimentos de má qualidade ou mal condimentados, alimentos indigestos, venenos, vômitos deglutidos ou purgantes. Sobre a utilização do termo Excreta, eram consideradas as excreções, a retenção de matérias fecais ou da urina, a supressão das regras, as hemorroidas e a supressão da transpiração424.

O termo Circunfusa avaliava as condições de meteorologia, de hidrologia, de geologia, de clima e das habitações425. Considerava o que rodeia as pessoas e o que poderia ser a causa determinante de uma enfermidade. Como exemplo, incluía-se o ar muito quente, o frio carregado de umidade de miasmas deletérios, os vapores de animais ou o ar das prisões. A diferença na temperatura ou a eletricidade presente na atmosfera poderiam causar ainda várias

421 PORTER, Roy. Les strategies thérapeutiques. In: GRMEK, Mirko Drazen (Org.). Histoire de la pensée

médicale en Occident. Paris: Éditions du Seuil, 1997, p. 206. (De la Renaissence aux Lumières; v. 2).

422 Ibidem, p. 206-207. (De la Renaissence aux Lumières; v. 2).

423 EDLER, Flávio Coelho. De olho no Brasil: a Geografia Médica e a viagem de Alphonse Rendu. História,

Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, p. 928, 2001; APÉNDICE de La medicina y su división.

[s. p.] In: LE-GRAND, Inocencio Maria Riesco. Tratado de embriologia sagrada. Madri: Tipografia Greco- latina, 1948, s.p. Disponível em: <http://www.filosofia.org/aut/irg/embri30.htm>. Acesso em: 20 nov. 2006.

424 PAIVA, Verónica. Medio ambiente urbano: una mirada desde la historia de las ideas científicas y las

professiones de la ciudad. Buenos Aires 1850-1915, 2000, p. 160. Disponível em: <http://revistaurbanismo.uch ile.cl/n3/indice.htlm#a>. Acesso em: 12 out. 2007.

425 EDLER, Flávio Coelho. De olho no Brasil: a Geografia Médica e a viagem de Alphonse Rendu. História,

afecções426. A infecção ocorreria a partir da propagação de certas enfermidades por uma atmosfera contaminada por elementos nocivos de toda a natureza, como germes, fermentos, miasmas e emanações deletérias e que levaria à propagação da doença a um grande número de indivíduos427.

O interesse na Geografia Médica diminuiu a partir das últimas décadas do século XIX, devido às pesquisas de Louis Pasteur sobre a etiologia bacteriana das moléstias infecciosas, que atribuíram às doenças exclusivamente a situação de penetração e a multiplicação do agente causal. Para Andrade Lima, apesar do desenvolvimento das ciências, da tecnologia e do advento da Medicina científica moderna que ocorre a partir da segunda metade do século XIX, o ideário prescrito nos compêndios de formação hipocrática permaneceu arraigado nas mentalidades; tais textos contribuíram fortemente para a formação da consciência médica popular e impregnaram os hábitos e as práticas da vida cotidiana428.

A partir de uma análise de conteúdo do relato de viagem de Palombini, verifica-se que este segue a influência dos protocolos da Geografia Médica. A pesquisa desenvolvida permitiu estudar o pensamento do médico e as influências científicas que atuaram em seu exercício profissional, como a disciplina da Higiene429. Neste texto, privilegiar-se-ão algumas

das categorias relativas ao impacto direto sobre a saúde, que são as evocações sobre suas atividades profissionais, a alimentação, a tríade tuberculose-sífilis-alcoolismo, os costumes, a higiene corporal e a vida nas cidades.