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AS CARACTERÍSTICAS DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA E A ESPECIALIZAÇÃO

Pode-se considerar que são distintas e quase opostas as fases da formação do médico italiano. O estudo universitário se constituiu sob a égide do Estado e foi, ao menos em teoria, igual para todos e organizado de maneira coletiva. Após a láurea, abriu-se a época do privado e da iniciativa individual, sujeitas às normas do mercado.

No primeiro decênio após a unidade italiana, apesar de ser uma aspiração geral, somente um pequeno número de médicos conseguia completar a prática hospitalar para fins de especialização, considerada como um instrumento de competição profissional. Enquanto o desejo de uma maior formação prática estava alicerçado em um sentimento da própria responsabilidade na direção da saúde pública, infere Messina que o impulso à especialização era inegável e que foi determinado pela coação imposta pelo mercado de trabalho74.

1.3.1 O acesso à Faculdade de Medicina

A característica do acesso de estudantes à carreira médica segundo Messina, mostra uma percentagem expressiva de alunos inscritos nas faculdades de Medicina no cômputo geral das faculdades, desde o último quarto do século XIX e que se estende até o pós-guerra.

72 COSMACINI, Giorgio. La vita nelle mani. Storia della cirurgia. Bari: Laterza, 2003, p. 159.

73 SANTOS FILHO, Lycurgo. História da medicina no Brasil (Do século XVI ao século XIX). São Paulo: Brasiliense,

1947, p. 221.

74 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

A percentagem dos alunos inscritos em Medicina mostrou uma grande variação: 29% em 1875, 34% em 1893, 17,5% em 1909-1910 e 21% em 192075.

Os números dos estudantes de Medicina quadruplicaram entre os anos de 1866 e 1896, após a demanda de médicos provinciais e dos oficiais sanitários, induzida pela lei sanitária de 1888. Houve novo período de retração e, a partir de 1910, observa-se um novo aumento dos números dos inscritos que se acentuou durante a Primeira Guerra Mundial e no pós-guerra76.

Entre as causas apontadas, também presentes em outros países europeus, estava a demanda por instrução superior em um ritmo maior que o do aumento populacional, enquanto que a procura por cuidados médicos e por serviços sanitários crescia em níveis menores. O grande e desproporcional número de diplomas conferidos pelas universidades italianas não estava de acordo com a potencialidade econômica e agrícola tanto deste país como as dos outros países europeus, ocasionando um verdadeiro proletariado intelectual77.

A composição social dos estudantes e laureados em Medicina mostra uma afluência de jovens da classe média inferior, ocasionada pela melhoria das condições da pequena burguesia tanto na Medicina como em outras faculdades. Esse grupo buscava ascensão social através de uma profissão que, até o final do século XIX, não era prestigiada, ainda que assegurasse o pertencimento à classe dirigente. Eram conhecidos o auxílio e o suporte econômico de

parentes, principalmente dos “tios-padres”78.

A descrição do diálogo de Michele De Patta com seu tio sustenta essas observações. De Patta abandonou o seminário para se casar. Ao decidir cursar a Faculdade de Medicina de Camerino, foi orientado pelos seus familiares a pedir auxílio financeiro ao seu tio Michele, que era vigário (arcipreste) de Scalea, Província de Cosenza, Calábria.

Preciso ir para Camerino para entrar na Universidade. Decidi ser médico, mas sem dinheiro não poderei viajar nem manter-me lá durante os estudos. O Dr. Ciccio [casado com tia] me falou que tem amigos que poderão ajudar-me lá, que só preciso estudar bastante para a seleção [...] quando me formar, se Deus quiser, lhe reembolsarei tudo o que o senhor gastar comigo. Sei que o senhor poderia, tem aquela propriedade do Monticello, que está arrendada, e não precisa daquele dinheiro. O senhor pode me emprestá-lo até eu me formar? Caso contrário, não

75 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 187.

76 Ibidem, p. 182-183. 77 Idem, p. 184, 187, 199. 78 Idem, p. 204-208.

poderei estudar e não poderei desposar Ercília. Foi a condição que os tios dela me impuseram. Preciso ter uma profissão, preciso sair de Scalea para poder estudar!79.

De Patta foi aprovado nos exames que lhe permitiram o ingresso na Faculdade de Medicina na Universidade de Camerino, em 1910, e logo se casou com sua prima Ercília, com a ajuda financeira do tio-padre. Sua mulher colocara seu dote à disposição para custear os seus estudos, o que possibilitou sua ida para a destacada Universidade de Bolonha, onde ficou por um curto período. A seguir, pediu transferência para a Universidade de Nápoles, para ficar mais próximo da mulher e do filho que nascera80. Recebeu seu diploma de Doutor em

Medicina e Cirurgia, podendo exercer também Farmácia, Odontologia e Radiologia, conferido

pela Universidade de Nápoles, em 1916. Segundo Pillar, “não era comum, naquela época, um moço de Scalea ir estudar numa universidade”81. (Figura 1).

Figura 1 - De Patta, mulher, filhos e babá em 1916

Fonte: PILLAR, Igéa L. De Patta. Da Calábria

ao Brasil. A história de um médico italiano. Porto

Alegre: [s.n.], 2004, p. 51.

79 PILLAR, Igéa L. De Patta. Da Calábria ao Brasil. A história de um médico italiano. Porto Alegre: Igéa De

Patta Pillar, 2004, p. 34-35. (Igéa era filha de Michele De Patta. Nasceu em Restinga Seca, em 1928).

80 A Universidade de Nápoles é uma das mais antigas universidades europeias, foi criada em 1224. 81 PLLAR, op. cit., p. 34-35, p. 40-44.

1.3.2 A especialização pós-láurea acadêmica

A partir dos anos oitenta do século XIX, torna-se mais evidente que se especializar em qualquer ramo da Medicina era necessário também para o médico prático. Essa especialização foi decorrência da necessidade de atualização dos conhecimentos médicos ocasionados pelo progresso da terapia, dos métodos de pesquisa, de investigação e dos meios de diagnóstico, e pela multiplicação de oferta de cursos de curta duração, oferecidos nas faculdades ou nas diferentes escolas de aperfeiçoamento ou de especialização82.

No início do século XX, os manuais existentes para a escolha e exercício profissional sugeriam que era necessário um curso de especialização além do exercício prático. A finalidade era de distinguir-se em algum ramo particular da ciência médica. Essa

especialização era diferente da “peregrinação médica” antiga, quando o ideal do jovem

laureado era poder fazer uma vigem ao estrangeiro, com o exemplo de médicos célebres, para visitar hospitais e universidades estrangeiras, observar o estado da ciência e aprender os últimos segredos da clínica. Compunha-se de viagens de estudo ou períodos de aperfeiçoamento que poderiam ser de um ou dois anos, realizados pelos melhores alunos das faculdades. Era frequente a ida a Viena, Paris, Wurzburg, Edimburgo e Berlim. Muitos destes

“especialistas” tornaram-se titulares de cátedras ou médicos-chefes de hospitais de fama

renomada, e difundiram na Itália os ambientes científicos de ponta de centros europeus. O governo italiano concedia bolsas a um limitado número de médicos para especialização de seus estudos na Itália ou em outros países europeus. Entre as cidades mais importantes da Itália, citam-se Florença, Pavia e Milão83.

Multiplicou-se a oferta de cursos de aperfeiçoamento e/ou especialização. Dois fatores foram fundamentais: a lei de 1888 e a consciência da competição pelos postos de trabalho baseados na pletora médica. Esses dois fatores influenciaram a instrução pós-láurea considerada como aperfeiçoamento e/ou especialização. A pletora e o sentimento de insegurança fizeram a especialização tornar-se necessidade. A corrida à especialidade foi ao mesmo tempo causa e efeito de tantos cursos especiais, destinados aos laureados. Apesar de

82 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 238-239.

deixar mais longa a formação médica, a especialidade adquirida habilitava o médico na concorrência com seus pares84.

Em 1888, o Parlamento Italiano aprovou um novo código de Higiene Pública e Saúde. As condições higiênicas da nação italiana, sob os ataques sucessivos da imprensa, ocasionaram essa renovação que ocorreu no governo do Primeiro-Ministro Francesco Crespi. Uma série de acontecimentos, salientados por médicos e por outros investigadores, levou a essas medidas. Destacam-se, entre outros fatores, uma epidemia de cólera; os fatores indutivos de mortalidade, como a pelagra, más condições de trabalho em minas e fábricas; a necessidade de conscientização da população sobre as condições de vida e de saúde; o aumento do número de conscritos militares rejeitados85.

Várias escolas e cursos de Medicina surgiram em toda a Itália. É importante salientar que eram escolhas não acessíveis a todos, e que implicavam em despesas e falta de ganho financeiro durante o período de ensino. Era, sobretudo, nas cidades, onde a relação médico/habitante era mais desfavorável e que a situação sanitária era tão grave que houve uma corrida às especialidades mais relevantes. O resultado era visto nas revistas médicas, nos jornais da Ordem e do Sindicato Médico, mas também em propagandas e anúncios colocados nos banheiros públicos e nas estações ferroviárias, no limite do bom gosto e da credibilidade, de médicos se autoproclamando especialistas86.

Ocorreu o surgimento, concomitante, de falsos especialistas, considerados perigosos para seus clientes e desleais com os seus colegas. Difundiam a prática de pretensas especialidades em avisos, placas, folhetos, propagandas e agradecimentos nos jornais87. As áreas que aparentavam ser as mais lucrativas em Milão, entre os anos 1900 e 1930, eram as

das chamadas “doenças venéreas” (15%), a obstetrícia e ginecologia (13%), às quais se

associava frequentemente uma especialização em pediatria ou em “doenças nervosas”88. A especialização era mais uma resposta à concorrência entre os médicos, especialmente nas cidades, do que um empenho na direção da ciência ou de uma ação social.

84 MESSINA, Analucia Forti. Il sapere e la clinica. La formazione professionale del medico nell’ Italia unita.

Milano: Franco Angeli, 2007, p. 242-248.

85 PAVOLINI, Emmanuele; VICARELI, Giovana. The social and political background for the promulgation of

the Code of Public Hygiene and Health in the 1880s: moderate reformism in post-unification Italy. Annals of

the Fifth European Social Science History Conference, p. 24-27, Mar. 2004.

86 SORESINA, Marco. I medici tra stato e società. Studi su professione medica e sanità pubblica nell’Italia

contemporanea. Franco Angeli: Milão, 1998, p. 282.

87 MESSINA, op. cit., p. 247. 88 SORESINA, op. cit., p. 282.

Essa especialização oferecia ao médico a possibilidade de alcançar posições profissionais vantajosas. A busca da especialização foi também alimentada pelas novas circunstâncias, entre as quais a difusão do seguro social, que aparentava restringir a demanda de tratamento médico voltado para o livre exercício, empurrando mais para a procura de especialistas89.

Uma das especialidades realizadas pelos médicos era a farmácia. Havia uma estratégia dos laureados que, com um ano de prática na farmácia de um hospital ou junto a um farmacêutico autorizado a receber estagiários, conseguiam um diploma de farmacêutico, útil para quem devesse exercitar a medicina como profissional liberal ou como condotto, em locais onde não existisse uma farmácia90. A láurea em Medicina e cirurgia era necessária também para o dentista, que se chamava odontoiatria91. O exercício de odontoiatria, regulado desde 1889, estabelecia a necessidade de láurea em Medicina, mas o seu exercício continuava a incluir um grande número de dentistas práticos92.