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CAPÍTULO III A TITULARIDADE DO DIREITO A INDEMNIZAÇÃO POR DANO

V. A responsabilidade civil por dano moral resultante de acidente de viação, ocorrendo a

3. A transmissibilidade do direito a indemnização por danos morais

3.1. A transmissibilidade do direito a indemnização por danos morais, em geral O Supremo Tribunal de Justiça não ignorou este problema, embora não lhe tenha dado sempre a mesma resposta.

O Despacho do Juiz de Porto de Mós de 25 de Maio de 1959392 decidiu, com

argumentação muito desenvolvida, pela intransmissibilidade do direito a indemnização por danos morais. No caso “sub judice”, a vítima de um acidente de viação faleceu, em consequência de facto distinto do acidente. Os autores, na qualidade de herdeiros do falecido, propuseram acção reclamando indemnização de 50.000$00 por danos morais sofridos pela vítima do acidente, que falecera sem haver proposto a respectiva acção, invocando os herdeiros que tal direito de indemnização por danos morais lhes tinha sido transmitido por via sucessória. O juiz negou o pedido dos autores, em razão da intransmissibilidade “mortis causa” do direito a indemnização por danos morais, instransmissibilidade que justificou com os seguintes argumentos: (i) o direito a indemnização por danos morais é um direito, por natureza, puramente pessoal e, deste modo, intransmissível à luz dos artigos 703.º, 1737.º e 2014.º do Código Civil, que dizem que são instransmisssíveis os direitos que por sua natureza são puramente pessoais; (ii) só só o ofendido é que pode revelar quais as dores, quais os sofrimentos morais por que passou; (iii) o direito à indemnização por danos morais só se transforma em direito patrimonial a partir do momento em que o ofendido obteve uma sentença conferindo-lhe um direito patrimonial equivalente ao direito pessoal ou, quando muito, a partir do momento em que o ofendido apresenta a sua petição no tribunal requerendo a atribuição da indemnização; (iv) o objectivo que a lei tem em vista ao conceder o direito a indemnização por danos morais é proporcionar ao ofendido os meios materiais suficientes para conseguir prazeres que de certo modo equilibrem ou mitiguem o sofrimento ocasionado — desaparecido o ofendido, igualmente desapareceria a razão por que se lhe

atribui esse direito (faltaria o fundamento para que se arbitrasse uma indemnização aos herdeiros). O juiz conclui pela intransmissibilidade, referindo, não obstante, que “modernamente tende-se para a equiparação dos danos morais aos materiais ou patrimoniais —

Prof. Vaz Serra — Bol. Min. Just. Ano 83.º, pág. 106. Entendo, no entanto, que, para se poder seguir essa orientação, é necessário estabelecer novos princípios na lei. Poderá a corrente que defende a transmissibilidade do direito à indemnização por danos morais ser a melhor “de iure condendo”, mas não “de jure condito” enquanto subsistirem na nossa lei os princípios atrás indicados”.

No sentido da transmissibilidade, refira-se, entre outros393, o Acórdão de 15 de

Janeiro de 1963394, onde aquele alto Tribunal, a propósito de indemnização de danos

morais sofridos pela vítima de um acidente, que veio a morrer posteriormente por causa diferente desse acidente, entendeu que “Não é exclusivamente pessoal, sendo por isso

transmissível, o direito de exigir indemnização por danos morais”: “Os danos morais não são, na verdade, e como diz a recorrente, prejuízos que afectem o património do lesado. Não se destina a sua reparação a reintegrar um património diminuído, mas antes e no consenso unânime a compensar o lesado das dores sofridas, fornecendo-lhe meios materiais de as minorar. Como costuma dizer-se, são o preço da dor e, nos acidentes de viação, são o preço da dor causada pelo acidente. Da lesão causada pelo acidente surge o direito de pedir a indemnização daqueles danos, n.º 2 do artigo 56.º do Código da Estrada. Direito que uma vez nascido, constitui uma relação jurídica de carácter patrimonial de que é sujeito activo lesado e passivo o causador da lesão. Trata-se, efectivamente, de uma relação jurídica desta natureza, visto consistir em dinheiro o objecto da prestação a que o sujeito passivo é obrigado. Ora, traduzindo-se o direito de exigir indemnização por danos morais numa relação jurídica de carácter patrimonial, não há razão legal para considerá-la de natureza exclusivamente pessoal e, por conseguinte, intransmissível. Não pode confundir-se a questão de só o lesado sentir a

393 Acórdão de 18 de Novembro de 1932, in «Colecção Oficial dos Acórdãos Doutrinais do Supremo

Tribunal de Justiça», ano judicial de 1932, 31.º ano, n.º 9, págs. 276 a 278 e Acórdão de 15 de Fevereiro de 1952, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 29, Março de 1952, págs. 355 e segs. Referimos nesta nota as decisões que, nos seus fundamentos, aludem expressamente à transmissão, por via sucessória, do direito a indemnização. Muitas outras decisões, seguindo a letra da lei, utilizam o vocábulo "transmissão".

394 In «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 123, Fevereiro de 1963, págs. 558 e segs. e anotado na

dor, com a da dita transmissão. O facto de só o lesado sentir a dor significa que só nele se radica o direito de exigir os danos morais, que hão-de ser avaliados em proporção com a intensidade e extensão da dor sofrida. Não significa porém que uma vez radicado o direito, este seja intransmissível dado o seu carácter patrimonial.”

3.2. A transmissibilidade do direito a indemnização pelo dano da perda da vida Relativamente ao problema da transmissibilidade do direito a indemnização pelo dano da perda da vida, em particular, o Supremo Tribunal de Justiça ponderou argumentação específica no sentido da admissão ou recusa da sua reparação, não tendo sempre decidido da mesma forma. O Tribunal equacionou as questões de saber se obsta à reparação do dano da perda da vida a circunstância de o momento da ocorrência deste dano coincidir com o momento em que se verifica a morte (ou, por outras palavras, por o facto extitntivo da personalidade jurídica ser o próprio facto constitutivo do direito a indemnização) e se o direito a indemnização pela perda da vida só existiria não tendo sido a morte imediata.

Assim, no sentido da reparabilidade, cite-se o Acórdão de 17 de Março de 1959395,

em que foi vitimada uma criança de 6 anos, por atropelamento, tendo o Supremo Tribunal de Justiça considerado transmissível aos herdeiros da vítima — sua mãe — o direito à indemnização por ofensa do direito à existência, ao abrigo do artigo 2366.º do Código Civil e do Decreto n.º 18.625, de 14 de Julho de 1930. O Tribunal atendeu ao facto de o menor só ter falecido no dia seguinte ao do acidente, ”o que tanto quer dizer que, no momento

da sua morte, já existia no seu património o direito a ser indemnizado das lesões por ele sofridas e determinantes da sua morte. Deu-se, portanto a transmissibilidade”. Revogando a decisão

recorrida e mantendo a sentença da primeira instância, deu-se provimento ao pedido da

395 In «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 85, Abril, 1959, págs. 629 e segs., com anotação

favorável na «Revista dos Tribunais», ano 77.º, 1959, n.º 1736, pág. 232. Revogou o Acórdão da Relação do Porto de 19 de Fevereiro de 1958, in «Jurisprudência das Relações», IV, 189, com o seguinte sumário: "No caso de morte por acidente de viação, os herdeiros não têm direito, a título sucessório, a pedir a indemnização pelo valor pecuniário em que se possa traduzir o direito de existência do sinistrado", citado por JOÃO DE DEUS PINHEIRO FARINHA, Código da Estrada Anotado, cit., pág. 189,

autora, o qual, no que concerne aos danos morais, reputou o direito à existência em 30.000$00 e reputou ainda em 20.000$00 os danos pela dor e sofrimento pela perda do filho. O tribunal admitiu, assim, a cumulação do direito de reparação a título sucessório com a reparação por direito próprio, na hipótese coincidentes na mesma pessoa. Em pelo menos dois outros arestos, o Supremo Tribunal atribuiu relevância ao facto de a morte não ter sido imediata.396

Em contrapartida, recusando indemnização pela perda do direito à existência, cite- se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Julho de 1964397: Os pais de uma

menina de 4 anos de idade, que morreu em resultado de atropelamento398, reclamaram

indemnização por danos materiais e morais causados pelo acidente que vitimou a sua filha, incluindo no pedido a indemnização pelos danos morais sofridos pelos autores e a indemnização pelo dano moral correspondente ao valor da vida da filha (o dano moral

ponto 38, e MANUEL BAPTISTA LOPES/HUMBERTO AYRES PEREIRA, Código da Estrada actualizado e anotado, cit., pág. 332.

396 No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 1952, in «Boletim do

Ministério da Justiça» n.º 29, Março de 1952, págs. 355 e segs., entendeu-se que "o direito à indemnização é um direito patrimonial que cabe inegavelmente à viúva e filhos do inventariado porque surgiu no momento do contacto da viatura causadora do desastre com o sinistrado, e perdurou até ao momento da morte deste que determinou a indemnização posteriormente fixada. É assim que entre aqueles dois momentos, nasceu o referido direito patrimonial, desde logo transmissível à viúva e filhos do sinistrado, porque a herança, nos termos do artigo 2014.º do Código Civil, além do mais, abrange todos os direitos do autor da herança, direito que logo se transmitiu à viúva e filhos do sinistrado no momento da morte deste (art.º 2011.º do Código Civil)".Sucede, porém, que, nos termos dos autos e da fundamentação, estava em causa a reparação dos danos morais próprios das vítimas mediatas. No Acórdão de 5 de Dezembro de 1962, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 96.º, 1963-1964, n.º 3250, págs. 199 e segs., em que havia sido pedida pelo irmão da vítima mortal de um acidente indemnização pela violação do direito à existência da vítima, tendo a vítima falecido algumas horas após o acidente, solteira, sem descendentes nem ascendentes, o Supremo Tribunal recusou arbitrar a indemnização pedida pelos seus irmãos, na qualidade de herdeiros, de acordo com as regras da sucessão legítima, não porque o direito a indemnização pela violação do direito à existência não fosse transmissível, mas porque o direito a indemnização transmitir-se-ia, por força do artigo 56.º do Código da Estrada, às pessoas referidas no artigo 16.º da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, e pela ordem ali indicada, do que resultaria que o direito dos irmãos estaria condicionado à menoridade de 16 anos, como também a ter a vítima a seu cargo a alimentação dos mesmos — condições que não estariam presentes nos autos. Adiante criticaremos este entendimento.

397 In «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 98.º, n.º 3290, págs. 70 e segs., com anotação

crítica de VAZ SERRA.

398 Não é possível apurar, através da leitura do Acórdão, se a morte foi ou não imediata ao

sofrido pela criança com a sua morte).399 O Supremo Tribunal de Justiça elevou a

indemnização pelos danos morais directamente sofridos pelos autores, mas negou provimento ao pedido de indemnização pela vida da filha: “Os recorrentes principais

pretendem, como atrás ficou dito, que na verba respectiva se inclua o dano moral sofrido pela vítima com a perda da sua vida. Dizem que ela adquiriu o direito de ser indemnizada por esse dano e o transmitiu aos seus pais. Não têm razão. Verificada a morte, que teria dado lugar ao crédito de indemnização, já a vítima não podia adquirir direitos, A sua personalidade desaparecera. Por conseguinte, os seus pais não podiam suceder-lhe num crédito que ela não chegou a ter”. No

mesmo número da Revista de Legislação e Jurisprudência400, Vaz Serra anota criticamente

o entendimento do acórdão segundo o qual, para cômputo da indemnização, não pode atender-se ao dano moral sofrido pela perda da vítima. Para Vaz Serra, (i) é transmissível aos herdeiros do lesado o direito à reparação dos danos morais a este causados; (ii) entre os danos reparáveis, conta-se o da perda da vida, mesmo que a morte tenha sido instantânea; (iii) o direito de indemnização transmite-se aos herdeiros do lesado.