• Nenhum resultado encontrado

O direito a indemnização por dano moral como direito ainda não diferenciado do direito a

CAPÍTULO III A TITULARIDADE DO DIREITO A INDEMNIZAÇÃO POR DANO

III. A autonomização pela jurisprudência da categoria do dano moral, por contraposição ao

2. O direito a indemnização por dano moral como direito ainda não diferenciado do direito a

A laboriosa tarefa empreendida pela nossa jurisprudência contribuiu não apenas para a definição do conceito do dano moral, mas também para a identificação das especificidades de regime que a reparação do dano moral pode reclamar, por confronto com o regime aplicável à indemnização do dano material. Não obstante, importa evidenciar que, à data da entrada em vigor do Código Civil de 1966, a reparação do dano

354 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 1964, in «Boletim do Ministério

da Justiça» n.º 140, págs. 438 e segs. Este Acórdão arbitrou uma indemnização de 100.000$00 à viúva e três filhas menores de vítima de acidente de viação, considerando que o facto de as filhas da vítima serem ainda muito novas não afasta a existência de danos morais, em relação a elas: "se as órfãs, por suas idades, a mais velha contava só seis anos, foram poupadas à dor imediata da perda do pai e das circunstâncias em que ocorreu; será essa mesma idade que agravará a dor e suas inevitáveis consequências que devem sentir — sentir o sofrer — à medida que vão atingindo o uso da razão. Só então se aperceberão da falta do pai cuja imagem talvez se tenha já dissipado. É sempre um prejuízo — um dano incalculável e irreparável — a perda dos carinhos, dos afectos e da educação, pela palavra e pelo exemplo, de um bom pai, mesmo de um pai humilde. Certo que nem todos os filhos caídos na orfandade se aperceberão de um tal prejuízo. Mas terá de se reconhecer — e sem risco de paradoxo — que precisamente esses serão as maiores vítimas de semelhante dano que, por não ser material, só como moral o podemos classificar".

moral, enquanto direito de indemnização autónomo do dano material, não era ainda ideia consolidada.

Na verdade, em grande parte dos casos submetidos a juízo, a fixação do montante da indemnização por acidente de viação foi feita sem distinguir claramente, para efeitos de regime, o dano material do dano moral. Tal prática foi justificada pelo entendimento dominante nos tribunais de que a indemnização por acidente de viação era uma

indemnização única, segundo a interpretação dada ao artigo 56.º, n.º 2, do Código da

Estrada, não se impondo fixar cifras autónomas para os danos materiais e morais. Estes, quando identificados como categoria diversa do dano material, eram considerados como um dos critérios a ponderar na fixação do quantitativo global da indemnização por acidente de viação.Cite-se, para ilustrar esta afirmação, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 1965355.Neste aresto, relativo a uma hipótese de ferimentos

causados por acidente de viação, o Supremo Tribunal entendeu que “o dano moral, assim

como o grau de culpa do agente e as situações e condições do lesado e do responsável, ao contrário do dano material, não é redutível a dinheiro, mas concorre, juntamente com aqueles elementos, para, em prudente arbítrio, fixar a indemnização”. Com base nesta consideração, o acórdão

retirou, para efeitos de regime, autonomia ao dano moral e degradou-o a elemento a ponderar na fixação da indemnização, impugnando o critério adoptado na primeira instância e na Relação, de determinar, separadamente, o montante dos danos materiais e o montante dos danos morais, somando depois as duas verbas.

Vaz Serra356 anotou criticamente este aresto, entendendo que a satisfação do dano

moral tem autonomia, não sendo o dano moral um elemento — equiparável ao grau de culpa do agente e às situações económicas e sociais do lesado e do responsável — a ponderar na fixação da indemnização por danos materiais. A satisfação do dano moral destinava-se a compensar o lesado, que podia até não ter tido danos materiais. Segundo o autor, a prática comum dos tribunais de fixar uma indemnização única por danos materiais e morais, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 2, do Código da Estrada, deveria ser,

355 In «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 98.º (1966), n.º 3304, págs. 291 e segs., com

preferencialmente, substituída pela fixação de indemnizações separadas, pois “os critérios

de avaliação do dano e da indemnização não são os mesmos para as duas espécies de danos e cada uma delas pode suscitar questões específicas (…) Servirá, isso, até, para tornar possível ou facilitar aos tribunais de recurso a apreciação acerca da observância, na fixação de cada uma, das regras a que, respectivamente, devem considerar-se sujeitas”.357

Se o entendimento dominante foi o de que a indemnização por acidente de viação era uma indemnização única, segundo a interpretação dada ao artigo 56.º, n.º 2 do Código da Estrada, é importante referir que os tribunais identificaram alguns aspectos de regime em que a reparação por dano moral poderia justificar um tratamento diferenciado, em particular no que respeita ao critério de fixação do montante da indemnização e à prova do prejuízo.

Com efeito, a questão de saber se o critério de fixação do montante da indemnização por acidente de viação deveria ser o mesmo, independentemente de se tratar de dano material ou de dano moral, foi controvertido pela jurisprudência. Tratou-se de saber se apenas a indemnização por dano moral deveria ser fixada pelo prudente arbítrio do julgador, com recurso aos elementos descritos na alínea b) do artigo 138.º do Código da Estrada de 1930 e no n.º 2 do artigo 56.º do Código da Estrada de 1954, caso em que a

356 «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 98.º (1966), n.º 3304, págs. 291 e segs.

357 Adoptando o mesmo entendimento deste último aresto, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de

Justiça de 20 de Março de 1957, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 65, Abril de 1957, págs. 351 e segs., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 1965, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 146, Maio de 1965, págs. 404 e segs. (indemnização por morte da vítima), e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 1966, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 100.º, n.º 3336, págs. 42 e segs., onde o Supremo Tribunal acrescenta que "O julgador não é obrigado a discriminar as diferentes verbas integradoras da indemnização total que fixe em seu arbítrio" (cfr. a anotação desfavorável de VAZ SERRA a págs. 47 e segs.). Cfr., ainda, decisão anterior do Supremo Tribunal: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Fevereiro de 1961, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 94.º (anos 1961-1962), n.º 3209, págs. 309 e segs., e no «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 104, Março de 1961, págs. 430 e segs., em que reitera o entendimento das instâncias de que o dano moral resultante das lesões sofridas pelo autor em acidente de viação — lesão ocular e fractura no úmero direito, e aleijão consequente — são indemnizáveis, mas questiona a fixação de um valor autónomo para este dano feita pelas instâncias, e arbitra uma indemnização global por todas as consequências do acidente.

fixação da indemnização seria matéria de direito e não de facto358, ou se também caberia

calcular a indemnização por dano material de acordo com o mesmo critério.359

No que concerne à prova do dano moral, demonstrar-se-á, no ponto do nosso trabalho dedicado à reparação do sofrimento padecido pelos familiares da vítima, que os tribunais admitiram uma presunção de existência deste dano.

358 Cfr. o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 1936, in «Colecção Oficial dos

Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça», 35.º, ano judicial de 1936, pág. 227, na «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 69.º (1936), págs. 94 e segs., e na «Revista dos Tribunais», ano 54.º (1936), nº 1235, pág. 233, o qual fundando-se na circunstância de a lei mandar fixar a indemnização pelo prudente arbítrio do julgador, decidiu que é matéria de direito a fixação do quantitativo da indemnização por acidentes de viação (sobre este assento, cfr. a opinião crítica de VAZ SERRA em Fundamento da responsabilidade civil (em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas, cit., págs. 198 e segs. A posição de VAZ SERRA está assim traduzida no n.º 5 do artigo 880.º do articulado elaborado nos trabalhos preparatórios do Código Civil "5. O cálculo do dano e da indemnização não é matéria de direito, salvo onde o juiz esteja adstrito a regras de direito ou de experiência sobre a determinação do conteúdo do referido dano ou da referida indemnização. Se o juiz dever fazer uma apreciação prudencial ou equitativa do dano, é matéria de direito a determinação deste, na medida em que se não trate de apurar quais os factos da causa, mas sim de apreciar, em face desses factos, qual a indemnização razoável" («Boletim do Ministério da Justiça» n.º 100, Novembro de 1960, pág. 367). No mesmo sentido do Assento de 14 de Julho de 1936, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1963, in «Revista de Legislação e Jurisprudência» ano 96.º, n.º 3260, págs. 363 e segs., com anotação de VAZ SERRA; o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 1966, in «Revista de Legislação e Jurisprudência» ano 100.º (1967), n.º 3336, págs. 42 e segs., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 1966, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 155, Abril de 1966, págs. 261 e segs. (a fixação da indemnização por acidentes de viação é matéria de direito, quer se trate de danos materiais, quer de danos morais). Anteriormente, o Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 19 de Julho de 1960, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 99, Outubro de 1960, págs. 748 e segs., e «Revista dos Tribunais», ano 78.º, 1960, n.º 1752, págs. 375 e segs., decidiu que a fixação da indemnização por danos materiais era matéria de facto e que a fixação da indemnização por danos morais era matéria de direito, já que só esta última deveria ser fixada por prudente arbítrio do julgador, conforme as circunstâncias de cada caso. O Acórdão mereceu anotação discordante no citado n.º da «Revista dos Tribunais», págs. 377 e segs., por, no entender da Revista, também a indemnização por danos materiais dever ser fixada pelo prudente arbítrio do juiz. Analisando os diversos critérios de fixação da indemnização por acidente de viação nos termos da alínea b) do artigo 138.º do Código da Estrada de 1930, cfr. CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XIII, cit., págs. 134 e segs.

359 Defendendo a tese de que, na responsabilidade pelo risco, o quantitativo da indemnização não

deve ser sempre fixado pelo prudente arbítrio do julgador, sob pena de não se cumprir a função da indemnização de reintegrar o lesado na sua situação patrimonial, que considera ser o fundamento da obrigação de indemnizar por actividade perigosa exercida no interesse do responsável, cfr. VAZ SERRA, "Fundamento da responsabilidade civil (em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas", cit., págs. 196 e segs.

IV. A definição dos titulares do direito de indemnização — conceito de lesado