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O direito a indemnização de vítimas mediatas em caso de morte da vítima imediata, no

Seguindo solução já desenvolvida pelos nossos praxistas, o Código Civil de 1867 admitiu, em certos termos, definidos nos seus artigos 2384 e 2385.º 222, o direito a

220 Cfr. sobre este ponto, PEREIRA COELHO, O nexo de causalidade na responsabilidade civil, cit., págs. 34

e segs. Referindo-se expressamente à responsabilidade delitual como surgindo independentemente de qualquer relação jurídica anterior especial entre o responsável e a vítima, MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a Responsabilidade Civil Connexa Com a Criminal, I, cit., págs. 128 e 129, JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, A responsabilidade civil baseada no conceito da culpa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1906, pág. 209, GUILHERME MOREIRA, Estudo sobre a Responsabilidade Civil, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», anno 37.º (1905), n.º 1630, pág. 562, e Instituições do Direito Civil Português, vol. I, Parte Geral, cit., pág. 591 e págs. 603 e segs., JOSÉ TAVARES, Os princípios fundamentais do direito civil, vol. I, cit., pág. 531 e PAULO CUNHA, Direito das Obrigações. O facto jurídico na relação obrigacional, cit., pág. 120 e Direito das Obrigações. Objecto da Relação Obrigacional, cit., págs. 250.

221 PEREIRA COELHO, O nexo de causalidade na responsabilidade civil, cit., pág. 43.

222 O artigo 2384.º deste Código, dispunha sobre a indemnização por homicídio voluntário:

"A indemnização por perdas e damnos, nos casos de homicidio commettido voluntariamente, consistirá: 1.º Na satisfação de todas as despezas, feitas para salvar o offendido, e com o seu funeral; 2.º Na prestação de alimentos à viúva do fallecido, emquanto viva for, e precisar d’elles, ou não passar a segundas núpcias, excepto se tiver sido cúmplice no homicídio; 3.º Na prestação de alimentos aos descendentes ou ascendentes, a quem os devia o offendido, excepto se tiverem sido cúmplices no homicídio. § único. Fora dos casos anteriormente mencionados, nenhum parente ou herdeiro poderá requerer indemnização por homicídio". O artigo 2385.º dispunha sobre a indemnização devida e respectivos titulares se o homicídio tivesse sido involuntário: "Se o homicídio tiver sido commettido involuntariamente, mas com circumstancias que, ainda assim, o tornem punível, em conformidade da lei penal, só poderá haver indemnização por alimentos em favor dos filhos menores, ou dos ascendentes inválidos do fallecido, que d´elles precisarem".Caso o homicídio tivesse sido cometido involuntariamente, só poderia haver indemnização por alimentos em favor dos filhos menores, ou dos ascendentes inválidos do falecido que deles precisassem.

indemnização por danos sofridos por vítima indirecta em caso de morte do lesado imediato.223 O direito a indemnização seria devido apenas em caso de morte resultante de

homicídio, e não também se a vítima imediata tivesse sofrido apenas ferimentos224

como hoje admite o artigo 495.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil de 1966, quanto a danos patrimoniais. Os artigos 2384.º e 2385.º do Código Civil de Seabra distinguiam o âmbito dos danos indemnizáveis e o universo dos titulares do direito a indemnização consoante o homicídio tivesse sido voluntário ou involuntário. Segundo a doutrina dominante, pelo menos até à entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1929, apenas seriam reparáveis por força destes artigos danos patrimoniais, traduzidos na privação de alimentos, e não danos morais — solução que, não obstante ter-se admitido ser a consagrada pelo Código, mereceu fortes críticas, já por nós reproduzidas, de Manuel Dias da Silva225 e de Guilherme Moreira226-227.

223 Cfr. VAZ SERRA, O dever de indemnizar e o interesse de terceiros, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 86, págs. 103 e segs., em especial págs. 118 e 119, onde se reporta ao artigo 2384.º do Código Civil de 1867 dizendo que "Reconhece-se, pois, aqui direito de indemnização a favor de terceiros".

224 JOSÉ DIAS FERREIRA sublinha que, na hipótese de ferimentos, voluntaria ou involuntariamente

feitos, não há lugar a "obrigação de alimentos, ainda que o offendido fique absolutamente impossibilitado de trabalhar" (Codigo Civil Portuguez Annotado, segunda edição, vol. IV, Coimbra, 1905, anotação aos artigos 2386.º e 2387.º, pág. 297)

225 MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a Responsabilidade Civil Connexa Com a Criminal, I, cit., em

caso de morte do lesado imediato, distinguiu claramente os lesados imediato e mediato pelo facto ilícito, por danos materiais e morais, e criticou a solução do Código de não admitir a reparação do dano moral dos parentes da vítima de homicídio: "No caso de homicídio é evidente que não é possível a reparação do damno causado à pessoa directamente offendida pelo crime. Mas o homicídio não fere somente aquelle que d’elle foi victima: fere também os seus parentes, que soffrem sempre um damno moral e muitas vezes um prejuízo material, e por isso o homicidio devia, para o effeito da reparação, poder ser considerado económica e moralmente (…). Porém, o Código em nenhuma conta teve o damno moral, e até o material é fracamente attendido" (págs. 205-206 e 209). Cfr. ainda, sobre estes preceitos, JOSÉ DIAS FERREIRA, Codigo Civil Portuguez Annotado, 2.ª ed., vol. IV, cit., pág. 296.

226 Em comentário ao Código, disse GUILHERME MOREIRA, in Estudo sobre a Responsabilidade Civil,

«Revista de Legislação e Jurisprudência» n.º 1633, pág. 19: "O legislador não só não teve em consideração alguma os damnos moraes ou a dor que soffrem com o homicídio o cônjuge e os parentes, mas nem sequer attendeu a todos os damnos materiaes que podem resultar do homicidio, mesmo no homicídio comettido voluntariamente". Mas, não obstante ter criticado o Código Civil de 1867 por não atender aos danos morais que sofrem com o homicídio o cônjuge e os parentes, GUILHERME MOREIRA não admitiu expressamente a indemnizabilidade deste dano no seu Projecto de Lei de Responsabilidade Civil («Revista de Legislação e Jurisprudência», n.º 1707, pág. 611): "Em caso de homicídio [não distinguia homicídio voluntário de involuntário], o autor deste é, além da satisfação de todas

De entre os autores que admitiram a indemnização por danos morais à luz do Código Civil de 1867228, Luiz da Cunha Gonçalves defendeu, com grande

desenvolvimento e clareza, o direito a indemnização por dano moral próprio de vítimas indirectas por morte da vítima imediata, ao mesmo tempo que estabeleceu as bases para a defesa da indemnização do dano da perda da vida229, transmissível “mortis causa” aos

herdeiros — distinguindo claramente o dano moral próprio das vitimas mediatas do dano moral da vítima imediata, que faleceu. Afirmou o autor, na verdade, que “A acção de

perdas e danos compete, sem dúvida alguma, à pessoa que foi vítima directa do facto ilícito, já se vê, se não sucumbir por efeito da lesão, ou se esta não tivér sido provocada, exclusivamente, por facto da própria vítima (…) No caso da morte da vítima, porém, surgem numerosas hipóteses; de tal sorte, que forçoso é examiná-las uma a uma, quer na relação de família, quer nas de outra

as despesas feitas para salvar o offendido, obrigado às despesas do funeral; e se o fallecido estava, em virtude da lei, obrigado a alguma pensão alimentícia ou esta lhe podia ser eventualmente imposta, e, em consequência da morte, a pessoa que tinha direito a alimentos ficar privada delles, pode exigir do autor do homicídio uma pensão correspondente aos alimentos que o fallecido seria obrigado a dar-lhe e durante o tempo em que era de presumir que elle vivesse".

227 Também, mais tarde, VAZ SERRA, nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966,

considerou que "não se afiguram aceitáveis as restrições dos art.ºs 2.384.º e 2385.º do Código de Seabra, considerando que a indemnização deveria ser devida a quem fosse titular do direito a alimentos" (Cfr. O dever de indemnizar e o interesse de terceiros, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 86, pág. 122.). Cfr. também, do mesmo autor, no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, as críticas ao regime do Código de Seabra, em Reparação do dano não patrimonial, cit., págs. 99 e segs.

228 MANUEL GOMES DA SILVA, O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, cit., pág. 67, admitindo

a reparação do dano moral no Código Civil de 1867 como regra geral, resolveu o problema da determinação dos titulares do direito a indemnização de acordo com o nexo de causalidade: "Finalmente, também não procede o argumento de serem indeterminadas as pessoas que têm direito ao ressarcimento. O dano patrimonial também pode ter repercussões prejudiciais no património de pessoas diferentes da que directamente foi ofendida, e por isso o problema põe-se igualmente a respeito dêle, tendo já sido apreciado pelos tribunais. Tudo está em verificar se existe, entre o facto danoso e o prejuízo sofrido pelas várias pessoas que pretendem reparação, o nexo de causalidade que dissemos ser requisito essencial de toda a responsabilidade civil". Quanto a JOSÉ TAVARES que, como vimos, admitiu a reparação dos danos morais com carácter geral pelo Código Civil de 1867, não explicitou se seriam reparáveis os danos morais dos lesados mediatos e quem seria titular do direito a reparação (Os princípios fundamentais do Direito Civil, vol. I, Primeira Parte, cit., pág. 546).

229 Em sentido contrário, parece poder apontar-se o pensamento de JOSÉ DIAS FERREIRA ao escrever

que "não tem reparação possivel o mal do homicidio, porque é inextimavel o bem da vida; e por isso a indemnização, n´este caso, não é verdadeiramente a reparação do mal causado, mas um auxilio á famillia do fallecido, que careça de alimentos, e as despezas para o salvar, e com o seu funeral, consequencia do homicidio" (Codigo Civil Portuguez Annotado, segunda edição, vol. IV, cit., anotação ao artigo 2384.º, pág. 296.)

natureza”230. O autor esclarece que as vítimas indirectas que a morte lesou não pedem

reparação do dano causado ao morto, mas sim do prejuízo que pessoalmente sofreram, quer com a perda do sustento que o morto lhes dava, quer com a ofensa dos seus sentimentos afectivos — dor ou dano moral231. Por isso, a indemnização do prejuízo

sofrido pelas vítimas indirectas não faria parte da sucessão do morto. Da sucessão do morto faria parte o direito a reparação do dano moral sofrido pelo falecido, se este soube, de antemão, que ia morrer, transmitindo-se este direito aos seus herdeiros232: Analisando,

depois, os potenciais lesados mediatos, conclui pela reparabilidade do dano moral sofrido:

- pelo cônjuge por morte do outro (e não apenas da viúva, como o artigo 2384.º, n.º 2 poderia sugerir), e tanto no caso de homicídio voluntário como no de homicídio voluntário (apesar de o artigo 2385.º, não se referir à viúva, no caso de homicídio involuntário), parecendo recusar indemnização por dano moral ao cônjuge separado de facto, embora admita a indemnização por dano material233: o dano moral por morte do

cônjuge variaria com a idade e a duração do matrimónio, sendo menor o do cônjuge jovem, que poderia ainda contrair outras núpcias e encontrar outras distracções; por seu turno, “a perda da mulher não causa ao marido, em geral, prejuízo moral e material igual ao que à

mulher causa a sua viuvez, sobretudo quando agravada com a sustentação dos filhos menores”234;

230 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 478.

231 Cfr. págs. 538 e segs. do vol. XII do seu Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil

Português, cit.

232 Cfr. pág. 545 do Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit.:

"Segundo a concepção dos tribunais da Bélgica, o dano moral pode ser causado, tanto ao próprio morto, como aos seus parentes. O direito à reparação do primeiro dêstes danos transmite-se aos respectivos herdeiros, pois o ferido sabe, de antemão, que vai sofrer a privação do mais precioso dos seus bens — a vida. Esta agonia, êste pavor tremendo, este "dies irae" justifica a indemnização melhormente do que a dor, depois sentida pelos filhos, pais, cônjuge ou concubina do falecido. Desta teoria deduzem a consequência de que o referido dano moral é proporcional ao tempo que o morto sobreviveu ao acidente que o vitimou. Assim, se a vítima morre instantaneamente, não há que indemnizar aquêle dano moral; se vive, ainda, alguns dias, ou alguns meses, a indemnização pode ser de 2:500 a 50:000 francos. Esta jurisprudência belga é deveras lógica; porque o ferido, se escapasse do acidente, teria direito à reparação do seu dano patrimonial e moral; mas tendo morrido, êsse direito pode ser exercido pelos seus herdeiros, independentemente do dano pessoal".

233 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., págs. 478 e 479. 234 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 547.

- pelo concubino por morte do outro (parece apontar nesse sentido quando refere que “a dor moral e o prejuízo material não dependem do matrimónio”)235 — este dano moral

deveria ser avaliado como seria o da mulher legítima236.

- os filhos legítimos e ilegítimos da vítima, menores ou maiores de idade237 “O prejuízo que os filhos sofrem com a perda dos pais varia conforme as circunstâncias, a saber: os filhos de tenra idade sentem pouco a dor, mas sofrem mais da falta de assistência paterna; - os que perdem o pai sofrem, materialmente, mais do que com a morte da mãe; ao passo que a falta desta lhes é mais sensível sob todos os outros aspectos; - os filhos que vivem com seus avós, tios ou padrinhos suportam melhor a perda de um ou de ambos os pais; - os filhos maiores sofrem, apenas, na sua afectividade”238. Cunha Gonçalves traduz, de modo sublime, a dor pela morte de um

pai: “A desaparição do pai, ainda novo e são, que ao seu domicílio trazia diariamente o contributo

do seu trabalho, o sorriso da sua esperança, o conforto, o auxílio, o conselho para os seus filhos, introduz na casa a desolação, uma longa tristeza, que extingue toda a alegria, toda a serenidade, a tranquilidade, a vontade, a aptidão para o trabalho, aquela força de vencer as dificuldades da vida, sem a qual ninguém pode aplicar-se utilmente a qualquer ocupação”239;

- pelos pais com a perda do filho240: “A dor dos pais varia conforme o filho for único, ou não, de idade menor ou maior; sobretudo será grande se ele fôr o seu amparo ou a morte houver ocorrido em condições trágicas”241;

- pelos avós, com a perda dos netos, e pelos netos, com a perda dos avós, não dependendo este direito da falta dos pais ou dos filhos da vítima242;

- colaterais e estranhos, como o noivo, afilhado, filho ou pai adoptivo, salvo disposição em contrário243.

235 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 480. 236 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 548. 237 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 481. 238 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 547. 239 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 546. 240 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 481 e 482. 241 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 547. 242 Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 483.

Conclui-se que Luiz da Cunha Gonçalves faz uso de um critério na determinação dos titulares do direito a indemnização das vítimas indirectas que não atende ao critério legal dos artigos 2384.º e 2385.º do Código Civil e que se funda directamente no artigo 2361.º do Código Civil, não se baseando exclusivamente nas relações de parentesco, mas também na intensidade dos laços afectivos que uniam a vítima e o lesado mediato.

IV. A questão da transmissibilidade do direito a indemnização por dano moral