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CAPÍTULO III A TITULARIDADE DO DIREITO A INDEMNIZAÇÃO POR DANO

III. A autonomização pela jurisprudência da categoria do dano moral, por contraposição ao

1. A autonomia dogmática do dano moral

Coube aos tribunais, na decisão de litígios emergentes de acidentes de viação, um importante papel na definição do conceito e âmbito do dano moral, contraposto à categoria diversa do dano material.

vítima; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 1961, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 104, Março de 1961, págs. 197 e segs., que arbitra à mulher e filho de menor de vítima mortal de acidente de viação uma indemnização de 60.000$00, a dividir em partes iguais, para cobrir os danos materiais e sobretudo morais; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 1962, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 96.º (1963-1964), n.º 3240, págs. 34 a 39, em que se arbitrou uma indemnização total de 600.000$00 ("uma das maiores de que se tem notícia", no dizer do Acórdão), considerando, de entre os danos a compensar, "o enorme dano moral sofrido pelas recorrentes, com a destruição do seu lar, onde reinava a felicidade e a correlativa dor", pela morte do seu marido e pai (não se faz qualquer referência no Acórdão à reparação da perda da vida; na fixação de tão elevada indemnização; em particular, no que concerne aos "danos materiais", pesou a elevada situação económica da vítima, engenheiro que auferia 10.000$00 por mês); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 1962, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 120, Novembro de 1962, págs. 411 a 417, que arbitrou uma indemnização de 20000$00 por danos morais ao viúvo e três filhos menores da vítima de acidente de viação (a decisão não caracteriza os danos morais a que se refere a indemnização — se danos morais da vítima, se dos autores).

A jurisprudência seguiu a terminologia aceite pela doutrina e adoptada pelo legislador, contrapondo o dano moral ao dano material, e não o dano não patrimonial ao dano

patrimonial.

Na vasta jurisprudência disponível em matéria de acidentes de viação, os tribunais definiram o dano moral, apelando essencialmente a um critério subjectivo, em que relevariam os sofrimentos, dores, incómodos e padecimentos do lesado. Atente-se na seguinte noção de dano moral dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 18 de Abril de 1961: “O dano moral é a diminuição do património moral ou espiritual,

constituído por um conjunto de sentimentos característicos, uns de todo o género humano, outros sòmente do homem altamente civilizado, a saber: a honra, a dignidade, o bom nome, a reputação, a afectividade, a solidariedade familiar, etc.”342. Por seu turno, para o Acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 1968343, danos morais são o “preço da dor que se sofre e da alegria que se perde”. Os tribunais consideraram reparável o sofrimento e dor resultantes

da doença causada pelo acidente, enquanto dano moral, contraposto ao dano material, que abrangia, designadamente, as despesas com o tratamento e a perda de remuneração derivada da incapacidade para trabalhar344. A noção de dano moral, compreendia, ainda o

342 In «Jurisprudência das Relações», ano 7.º, 1961, págs. 335 e segs.

343 In «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 102.º, n.º 3400, págs. 292 e segs.

344 Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1963, in «Revista de Legislação e

Jurisprudência», ano 96.º, n.º 3260, págs. 363 e segs., com anotação de VAZ SERRA, em que se arbitrou indemnização autónoma por danos morais, que a decisão identifica — dores e preocupações — a cada uma das vítimas do acidente: "No tocante aos danos morais, entendemos que a quantia de 24000$00 arbitrada a favor da ofendida Fernanda, e a de 20000$00, a favor da ofendida Laura, são igualmente de manter. Para tanto, há que tomar em consideração que o acidente se deveu à culpa exclusiva do recorrente; que as ofendidas Fernanda e Laura estiveram durante longos meses retidas no leito, suportando dores físicas e tratamentos prolongados e viveram em permanentes preocupações por não poderem governar a sua casa e tratar dos membros da sua família; e, por seu turno, que o causador do acidente é Engenheiro, filho único de pais ricos com quem vive, é sócio de uma sociedade com capital de 75%, aufere o ordenado mensal de 7500$00 e recebe anualmente de lucros daquela sociedade algumas dezenas que se aproximam de uma centena de contos". O Tribunal arbitrou ainda às vítimas indemnização por danos materiais, entre os quais se contaram os prejuízos correspondentes ao serviço que nas respectivas casas teve que ser prestado por mulher a dias, por as vítimas estarem impossibilitadas de realizar as lides domésticas, independentemente da prova do exacto montante dos salários pagos.

sofrimento dos familiares da vítima mortal de acidente: a dor causada pela morte de um filho345, pela morte da esposa e mãe346, pela morte do marido e pai347.

Se o conceito de dano moral definido pelos tribunais apelou, nos termos expostos, a um critério subjectivo, resulta, todavia, da fundamentação dos diversos arestos analisados que o universo dos danos considerados reparáveis e qualificados como danos morais é mais vasto, transcendendo as repercussões que no espírito do lesado foram causadas pelo acidente. Assim, a par do sofrimento padecido, as decisões judiciais analisadas admitiram como elemento relevante na fixação da indemnização, que integraram na categoria do dano moral e não na do dano material, a própria diminuição do bem da integridade física348 — em muitos casos identificada como dano estético349 — e suas repercussões:

345 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1938, in «Colecção Oficial dos

Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal de Justiça», ano judicial de 1938, 37.º ano, págs. 252 e segs. (profundo abalo moral dos pais); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 1957, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 65, Abril de 1957, págs. 351 e segs., ("De superior grau o dano moral resultante da perda de um filho nas trágicas circunstâncias que os autos ilustram"); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 1963, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 130, Novembro de 1963, págs. 447 e segs.

346 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 1956, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 59, págs. 383 e segs. (profundo abalo moral do marido).

347 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Abril de 1958, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 76, págs. 317 e segs.

348 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 1961, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 107, Junho, págs. 543 a 547, em que foi arbitrada indemnização de 20.000$00 por danos morais devido a aleijão.

349 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Julho de 1960, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 99, Outubro de 1960, págs. 684 e segs., arbitra uma indemnização de 35.000$00 por danos morais ao acidentado que ficou com uma deformação do membro inferior direito e um encurtamento do mesmo de cerca de 35 mm relativamente ao membro inferior esquerdo e sofrido física e moralmente durante longo tempo de tratamento; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 1960, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 101, Dezembro de 1960, págs. 509 e segs., que atendeu ao dano moral sofrido em virtude do acidente — dano moral de grande relevância, independentemente da condição social do ofendido, prejuízo funcional e estético resultante de aleijão em homem novo, de 35 anos de idade: "Resta o dano moral sofrido pelo assistente, não só com a dor resultante do acidente e tratamentos a que teve de ser submetido, mas também com o prejuízo funcional e estético resultante do aleijão; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 1961, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 107, Junho de 1961, págs. 390 e segs., em que se reconheceu que criança de 10 anos padeceu de sofrimentos e incómodos e que ficará para a vida com cicatriz extensa e aleijão no membro inferior, que faz com que tenha de claudicar, e padeceu de 341 dias de doença com longo internamento (foi arbitrada uma

repercussões na capacidade funcional da vítima350, na alegria de viver351, no

relacionamento afectivo352, na diminuição das comodidades da vida pessoa e social353.

indemnização de 90.000$00, globalmente por dano material e moral, mas em que avultava o dano moral); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 1961, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 108, Julho de 1961, págs. 246 e segs., que considerou que uma costureira de bordados, que ficou a padecer de impotência funcional dos dedos indicador e polegar da mão direita e de deformidade, cicatriz, de 25 cm, desde a axila até baixo do cotovelo que a desfigura, tem direito a indemnização por danos morais traduzidos nos "sofrimentos que teve de suportar nos curativos a que foi submetida, desgosto resultante de se ver desfigurada, com perda dos seus atractivos femininos, arredando as possibilidades de ser requestada e de vir a casar"; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 1968, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 102.º, n.º 3400, págs. 298 e segs., que fixou uma indemnização de 10.000$00 por dano moral pelas dores sofridas pela autora, jovem, modelo de profissão, que foi submetida a várias e dolorosas intervenções cirúrgicas e tratamentos diversos, ficando com uma cicatriz na região cervical posterior e outra na região ilíaca esquerda, que implica perda de estética, além de atenuada limitação dos movimentos da região cervical da coluna vertebral.

350 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Julho de 1958, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 79, Outubro de 1958, págs. 455 e segs., onde se confirma decisão da Relação em que fora arbitrada indemnização de 77.938$80, globalmente por danos materiais e morais, a vítima de acidente que ficou "inutilizada para a vida: sem fala, sem razão, sem movimento dos membros inferiores – 100% de incapacidade".O Supremo considerou, criticamente, que o montante arbitrado "pelos danos materiais morais e pelo longo tratamento médico e pelo trabalho perdido está muito longe daquilo que deveria ser"; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 1958, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 77, Junho de 1958, págs. 333 e segs., vítima de acidente de viação que ficou com parte da perna amputada: "Mas além deste dano material sofrido pelo ofendido há este dano moral. O desgosto dele por se ver aleijado e privado de vigor, trouxe-lhe, evidentemente uma grande falta de satisfação, diminuindo-lhe a alegria de viver. Este desgosto é permanente e muito grande e há-de acompanhá-lo até à morte. O dano moral é, neste caso, de grande relevância, visto o ofendido estar permanentemente condenado a sofrer a sua dolorosa situação de mutilado e incapacitado para os seus trabalhos habituais. (...)"; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 1960, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 101, Dezembro de 1960, págs. 509 e segs., que atendeu ao dano moral sofrido em virtude do acidente – dano moral de grande relevância, independentemente da condição social do ofendido, prejuízo funcional e estético resultante de aleijão em homem novo, de 35 anos de idade: "Resta o dano moral sofrido pelo assistente, não só com a dor resultante do acidente e tratamentos a que teve de ser submetido, mas também com o prejuízo funcional e estético resultante do aleijão; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 1961, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 107, Junho de 1961, págs. 390 e segs., em que se reconheceu que criança de 10 anos padeceu de sofrimentos e incómodos e que ficará para a vida com cicatriz extensa e aleijão no membro inferior, que faz com que tenha de claudicar, e padeceu de 341 dias de doença com longo internamento (foi arbitrada uma indemnização de 90.000$00, globalmente por dano material e moral, mas em que avultava o dano moral); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 1968, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 102.º, n.º 3400, págs. 298 e segs., que fixou uma indemnização de 10.000$00 por dano moral pelas dores sofridas pela autora, jovem, modelo de profissão, que foi submetida a a várias e dolorosas intervenções cirúrgicas e tratamentos diversos, ficando com uma cicatriz na região cervical posterior e outra na região ilíaca esquerda, que implica perda de estética, além de atenuada limitação dos movimentos da região cervical da coluna vertebral; Acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Abril de 1964, ano 97.º, n.º 3283, págs. 338 e segs., que valorou a doença, fractura da perna, sofrimento com as operações cirúrgicas ficar a vítima com dificuldades permanentes para a marcha como dano moral, contrapondo-os aos danos materiais (redução de vencimentos, despesas com transportes, reparação da bicicleta) — decorrentes de acidente de viação, em que a vítima, que conduzia uma bicicleta motorizada, sofre a colisão de um automóvel, por erro de manobra do condutor deste: "Quanto aos [danos] de natureza moral, atendeu-se, e bem também, a que o sinistrado esteve doente onze meses, com consequentes sofrimentos. Como a avaliação dos danos desta natureza não pode estar sujeita a quaisquer regras, deixou a lei a sua apreciação ao prudente arbítrio do julgador. Ora no caso em análise suportou o autor recorrido, além do já referido, a fractura da perna esquerda — fémur — e sujeitou-se a duas operações cirúrgicas, tudo com os seus inevitáveis sofrimentos. Acresce o ter-se apurado que as lesões físicas produziram o total de 330 dias de doença. Além disto ficou permanentemente com dificuldades para a marcha. Considerou-se como justa e equilibrada a quantia de 16500$82 para a reparação por estes danos morais". O Acórdão merece ser destacado pela identificação dos danos morais — abrangendo ferimentos, dores e incapacidade para a marcha (independentemente dos efeitos desta incapacidade na capacidade para o trabalho) —, fazendo coincidir o o conceito de dano moral com o conceito de dano não patrimonial. VAZ SERRA, em anotação a este acórdão na citada revista, pág. 341, refere não ser inteiramente rigoroso dizer-se que a avaliação dos danos morais não pode estar sujeita a regras; o acórdão terá podido querer dizer, segundo o autor, que, não sendo possível uma avaliação exacta desses danos, a sua apreciação é deixada ao prudente arbítrio do julgador.

351 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 1968, in «Revista de Legislação e

Jurisprudência», ano 102.º, n.º 3400, págs. 292 e segs., que manteve a cifra de 30.000$00 — aquém do pedido, no valor de 100.000$00 — por danos morais (nas palavras do Acórdão "preço da dor que se sofre e da alegria que se perde") sofridos por uma criança de 4 anos, vítima de atropelamento, que sofreu um traumatismo crânio-encefálico causador de fractura do crânio, com afundamento ósseo frontal direito e perda de massa encefálica, que esteve internada, sofreu duas intervenções cirúrgicas, para aplicação duma placa na zona desprovida de substância óssea, tendo resultado daí uma saliência desgraciosa sensível à vista, sofrendo o menor dores, incómodos e desgostos e passou, depois do acidente, a ter maior excitabilidade nervosa e falta de saúde. O acórdão valorou como danos morais o aleijão, o "aspecto desgracioso", bem como as dores, incómodos e desgosto, e como danos materiais a diminuição futura da capacidade de ganho da criança.

352 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 1961, in «Boletim do Ministério da

Justiça» n.º 108, Julho de 1961, págs. 246 e segs., considerou que uma costureira de bordados, que ficou a padecer de impotência funcional dos dedos indicador e polegar da mão direita e de deformidade, cicatriz, de 25 cm, desde a axila até baixo do cotovelo que a desfigura, tem direito a indemnização por danos morais traduzidos nos "sofrimentos que teve de suportar nos curativos a que foi submetida, desgosto resultante de se ver desfigurada, com perda dos seus atractivos femininos, arredando as possibilidades de ser requestada e de vir a casar".

353 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Julho de 1960, in «Revista dos Tribunais», ano

78.º, 1960, n.º 1752, págs. 375 e segs., e no «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 99, Outubro, 1960, págs. 748 e segs., onde é valorado como dano moral o desgosto pela aposentação antecipada em consequência do acidente e "grave desgosto, para se manter, de ter de procurar trabalho forçado, fora das suas aptidões, com quebra dos seus hábitos e comodidades da vida pessoal e social"; o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de de 10 de Maio de 1963, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 96.º, n.º 3260, págs. 363 e segs., valorou como dano moral as preocupações de vítimas lesadas na sua integridade física "por não poderem governar a sua casa e tratar dos membros da sua família".

Estas consequências negativas do acidente foram atendidas como realidade diversa dos prejuízos causados no património da vítima — como a perda da capacidade de ganho — e independentemente do sofrimento padecido. A uma criança de tenra idade, que não se aperceba da morte do pai, é devida indemnização pela perda dos carinhos, dos afectos e da educação, tendo o Tribunal rejeitado a tese das recorrentes segundo a qual os filhos de tenra idade não sofreriam354.

A conclusão a extrair é a de que a jurisprudência elaborou uma noção de dano moral — prejuízo de ordem subjectiva ou lesão do património espiritual — mais estrita do que a correspondente ao universo dos danos que, em concreto, veio a admitir como reparáveis enquanto danos morais. Os tribunais definiram, rigorosamente, o que se entende por dano moral, mas incluiram, em termos práticos, e mais amplamente, nesta categoria, a reparação do dano não patrimonial.

2. O direito a indemnização por dano moral como direito ainda não diferenciado