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II. A delimitação dos sujeitos titulares do direito a indemnização por dano moral a partir da

2. A ilicitude

2.2. Crítica ao critério da titularidade do direito subjectivo violado

O critério de determinação dos titulares do direito a indemnização fundado na titularidade do direito subjectivo violado foi criticado por Jaime de Gouveia, que apresentou como critério alternativo o critério da certeza do dano. Para o autor, “o prejuízo

é certo, quando não resta dúvida de que o ofendido teria uma situação melhor se o autor da lesão não houvesse praticado o facto ilícito”173. À pergunta “Quando é que as pessoas, que sofrem prejuízo pela repercussão do facto ilícito, podem exigir reparação?”, responde o autor criticando

o critério do direito adquirido como o geralmente adoptado para dar resposta a esta questão: “Este critério é dispensável e até embaraçoso, pois faz intervir no problema um elemento

novo e discutível que a solução não exige. A questão resolve-se com a evocação do outro atributo do “prejuízo” por nós estudado — a certeza. Os prejuízos dos que sofreram a repercussão do facto ilícito são indemnizáveis, quando forem certos. A questão assume interesse prático em três espécies jurídicas: no prejuízo causado à concubina pela morte ou impossibilidade de trabalho do mancebo; no prejuízo sofrido pelos filhos naturais não perfilhados nem judicialmente reconhecidos com a

personalidade" ("física ou moral", como porventura será de acrescentar neste ponto), redacção que foi seguida de muito perto pelo artigo 70.º do Código Civil de 1966.

morte ou impossibilidade de trabalho dos pais; no prejuízo que para um credor resulta da morte ou desaparecimento do devedor. A concubina pode exigir reparação civil pelos prejuízos que lhe causou a morte do mancebo? Se puder provar que o prejuízo sofrido é certo e não hipotético dever-lhe-á ser concedida indemnização. Mas reputamos difícil que possa demonstrar um prejuízo certo, porquanto os laços que a ligavam ao falecido eram tão inconsistentes, que de um momento para o outro poderiam romper-se pela simples vontade do mancebo ou da concubina. O filho natural não perfilhado nem reconhecido terá a faculdade de exigir indemnização dos prejuízos que para êle provieram de morte acidental dum dos pais que lhe dava uma pensão alimentícia? Temos de recorrer ao mesmo critério e averiguar se o prejuízo “é certo ou hipotético”. Dir-se-á que este filho natural nunca poderá provar a certeza do prejuízo, porque a pensão que o falecido lhe dava era uma mera liberalidade susceptível de acabar dum momento para outro, ao arbítrio do doador. Sem perfilhação nem reconhecimento judicial, o filho natural não pode exigir alimentos ao pai e, por isso, os que êste lhe der, são precários e não certos e garantidos. Não é bem assim, porque os filhos não perfilháveis conservam, todavia, o direito de exigir alimentos dos seus pais (...). Por isso, independentemente da perfilhação ou do reconhecimento judicial, pode provar-se a “certeza” do prejuízo. Acresce que o critério da “certeza” é diverso do do “direito adquirido”, por isso tôdas as vezes que, abstraindo-se de todo o vínculo jurídico, ainda assim seja possível demonstrar a “certeza” do prejuízo, temos logo o condicionamento preciso para a responsabilidade civil. Um terceiro, credor duma prestação devida pelo que foi vitimado por um acidente pode exigir indemnização ao agente do facto ilícito? A regra é a mesma. Se existe um crédito e um prejuízo certo, o credor que ficou impossibilitado de pedir o cumprimento da obrigação ao devedor, por virtude do acidente, e que, por hipótese, não pode pedir o pagamento aos representantes que são insolventes, tem a faculdade de exigir uma indemnização ao autor do facto ilícito. Para esclarecimento, dois exemplos: a vítima dum acidente mortal vestia há longos anos de certa alfaiataria. Por virtude da morte do cliente, o alfaiate sofreu um prejuízo. Pode exigir indemnização ao autor do facto ilícito que determinou a morte do cliente? Não, porque ao prejuízo falta a característica de “certeza”. Entre o falecido e o alfaiate não havia, por hipótese, qualquer contrato de fornecimento de fatos. O falecido podia, a seu bel-prazer, deixar de mandar fazer os seus fatos naquela alfaiataria, dum momento para o outro. Nada garantia ao alfaiate que aquele cliente

173 Da responsabilidade contratual, cit., pág. 93.

continuaria a gastar de sua casa. O prejuízo é hipotético. Um pintor tinha contratado com a vítima dum acidente fazer-lhe um retrato. A morte impediu a execução da obra do pintor, do que lhe resultou “prejuízo”. Pode pedir indemnização? Aqui o “prejuízo é certo”, por isso impõe-se uma resposta afirmativa (…)”.174 Apesar de Jaime de Gouveia afirmar que o critério da certeza é

diverso do do direito adquirido, sendo possível demonstrar a certeza do prejuízo abstraindo-se de todo o vínculo jurídico, a verdade é que em todos os exemplos que apresenta considera não verificado o requisito da certeza quando o lesado mediato não é titular de um direito contra o falecido: o mancebo falecido podia livremente cessar a união com a concubina; o filho não perfilhado não tinha o direito de exigir alimentos ao pai, alimentos que seriam prestados a título de liberalidade; o alfaiate não era titular de um direito de crédito quanto ao cliente. Em contrapartida, segundo Jaime de Gouveia, o pintor poderia exigir indemnização ao autor do facto ilícito que causou a morte do seu cliente, que encomendara o retrato, porque seria titular de um direito de crédito. Neste último exemplo, o autor admite a reparação do dano do lesado mediato, titular de um direito de crédito violado por facto de terceiro, admitindo, implicitamente, a eficácia externa deste direito de crédito.175

174 Da responsabilidade contratual, cit., págs. 98 a 101.

175 Tem-se presente a proximidade que existe entre a admissibilidade ou recusa do direito a

indemnização de terceiros indirectamente atingidos pelo facto lesivo e o problema da eficácia externa das obrigações (cfr., para demonstrar esta proximidade, o estudo de VAZ SERRA, integrado nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, O dever de indemnizar e o interesse de terceiros, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 86, Maio de 1959, págs. 103 e segs., onde, a págs. 114 e segs., em especial nota 19, o autor trata precisamente do problema da responsabilidade de terceiros no não cumprimento das obrigações). No exemplo apresentado por JAIME DE GOUVEIA, o pintor é "terceiro mediatamente atingido com a morte da vítima", por lesão do seu direito de crédito. O autor da morte do cliente é "terceiro" em relação à relação jurídica obrigacional estabelecida entre o pintor e o seu cliente. Admitir a responsabilidade do terceiro (autor da morte do pintor) pela violação do direito de crédito equivale a reconhecer que o terceiro (cliente) indirectamente atingido pela morte do pintor tem direito a ver indemnizado o seu dano, consequência da morte. Haverá sobreposição com o tema do nosso estudo quando se trate de apurar a reparabilidade de dano não patrimonial do credor ocorrido em consequência de ofensa por terceiro do seu direito de crédito, v.g. através de acção directamente dirigida à pessoa do devedor — não se trata, todavia, de hipótese que tenha sido tipicamente objecto de estudo a propósito do tema da "eficácia externa das obrigações", em que os exemplos apresentados se reconduzem, normalmente, a danos patrimoniais (não obstante, o problema já tem sido colocado a propósito da responsabilidade delitual do terceiro por interferência na relação conjugal). Sobre este ponto, em particular, admitindo, verificados os pressupostos da responsabilidade civil, a responsabilidade do terceiro cúmplice de adultério, a

responsabilidade do instigador do incumprimento dos deveres conjugais sexuais e do responsável por lesão acidental que impossibilite uma pessoa casada de ter relações sexuais, cfr. JORGE ALBERTO CARAS ALTAS DUARTE PINHEIRO, O núcleo intangível da comunhão conjugal. Os deveres conjugais sexuais, cit., págs. 714 e segs. O autor não reconduz o problema a uma extensão da eficácia externa das obrigações ao direito da família, pois atribui aos direitos conjugais uma natureza comunitária que os demarcaria dos direitos de crédito (cfr. pág. 717). O nosso estudo abrange, por outro lado, outras hipóteses em que terceiro mediatamente atingido pode não ser titular de um direito de crédito — pode ser titular de um direito absoluto ou tutelado por um interesse legamente protegido ou ter um mero interesse de facto. Justifica, por isso, tratamento autónomo. Não descuramos, porém, o problema da "eficácia externa das obrigações", dada a similitude do problema em causa com o objecto do nosso trabalho. Atendemos, em particular, a que um dos argumentos já na vigência do Código Civil de 1867 dirigido contra a tese da "eficácia externa" merece também ser ponderado — o da proliferação de acções de indemnização e o juízo de culpa exigindo a cognoscibilidade do direito lesado (neste sentido, MANUEL DE ANDRADE, que sustenta que a teoria da eficácia externa "leva longe de mais a responsabilidade do terceiro, podendo ser em grande número e de grande vulto os créditos prejudicados pelo facto ilícito e podendo ele desconhecer inteiramente a sua existência e entidade", sem prejuízo de aceitar a aplicação da teoria do abuso do direito para tutelar alguns casos particularmente escandalosos em que o terceiro tenha tido a intenção ou pelo menos a consciência de lesar os credores da pessoa directamente ofendida ou da pessoa com quem contrata (Teoria Geral das Obrigações, I, cit., págs. 50 e segs., em especial pág. 52). Sobre a posição da doutrina em face do problema da "eficácia externa das obrigações" durante a vigência do Código Civil de 1867, cfr. E. SANTOS JÚNIOR, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., págs. 413 e segs., onde o autor refere ter reinado quase indiscutida até à década de sessenta do século XX "a tese clássica que, baseada na relatividade do direito de crédito e associando a esta a ideia de inoponibilidade a terceiros, nega a responsabilidade de terceiro por lesão do direito de crédito ou, na terminologia mais seguida, entre nós, nega a "eficácia externa das obrigações".Sobre a evolução geral da doutrina no Código de Seabra sobre este ponto, cfr., ainda, desenvolvidamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, Lisboa, Almedina, 2009, págs. 387 e segs. Como autores que, sem se reportarem expressamente ao problema da responsabilidade do terceiro por lesão do direito de crédito, se mostraram sensíveis a esta responsabilidade, aponte-se JOSÉ TAVARES, GUILHERME MOREIRA, MANUEL GOMES DA SILVA, LUIS CABRAL DE MONCADA, MANUEL J. G. SALVADOR, PEREIRA COELHO e ANTÓNIO FERRER CORREIA. Quanto a GUILHERME MOREIRA (Instituições do Direito Civil Português, vol. II, Das Obrigações, cit., págs. 8 e 9), escrevera que "O direito subjectivo, considerado em relação às pessoas que, em virtude dêle, ficam constituídas na necessidade de praticar ou deixar de praticar certos factos, desenvolve-se numa "pretensão".Esta pretensão será, nos direitos absolutos, o respeito pelo exercício de todos os poderes, pela prática de quaisquer factos, que êsses direitos legitimam; nos direitos relativos, a pretensão respeitará à prestação a que uma pessoa está adstrita. No direito relativo não há, porém, só esta pretensão: também há a pretensão, quanto às pessoas que não se acham directamente vinculadas pela relação jurídica, de não embaraçarem o livre exercício das faculdades ou poderes que dessa relação derivam".Afigura-se curioso ter sido GUILHERME MOREIRA um dos precursores da tese da eficácia externa das obrigações quando invocou, em contrapartida, e como já referimos, o argumento da impossibilidade de fixar um critério científico para a determinação dos titulares da indemnização por danos morais para recusar, como princípio geral, a reparação deste tipo de danos. Expressamente referindo-se à caracterização do direito absoluto pelo dever jurídico de respeito por parte de todas as pessoas, distinguindo-o, com base neste critério, dos direitos relativos, JOSÉ TAVARES, Os princípios fundamentais do Direito Civil, vol. I, Primeira Parte, cit., págs. 261 e segs. e 285 e segs., que conclui, a págs. 262 e 263, que todos os direitos têm um carácter absoluto, no sentido de que a toda a gente se

impõe a obrigação de não perturbar as relações jurídicas dos outros. Por seu turno, MANUEL GOMES DA SILVA foi original ao apontar um critério de distinção entre direitos absolutos e relativos não assente na oponibilidade do direito: o direito relativo seria o que se realizaria necessariamente pelo concurso de uma pessoa diferente do titular, que voluntariamente há-de tomar uma atitude activa ou passiva com a qual se atinge o fim em vista; o direito absoluto é o que se realiza com a utilização directa das faculdades humanas ou de coisas exteriores ou ainda de pessoas a que se não exige nenhuma actividade voluntária, o que permite exercer a força para as subordinar ao direito (O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, cit., pág. 55). LUIS CABRAL DE MONCADA, Lições de Direito Civil. Parte Geral, vol. I, cit., reportando-se à classificação que distingue entre direitos absolutos e relativos, afirma, a págs. 71 e 72, que "Esta classificação, note-se, por fim, é bastante artificial e tem escasso alcance prático. Em primeiro lugar: rigorosamente, não há direitos absolutos, visto todos os direitos serem sempre o efeito de relações entre pessoas e, portanto, relativos só a elas. Em segundo lugar, porque, no sentido em que é tomada aqui a expresão "absolutos", todos os chamados "relativos" são também absolutos. Com efeito, também estes — como, por exemplo, se vê nos direitos de crédito — impõem a todos os restantes homens, e não só ao devedor, a obrigação de não obstar à sua efectivação; se o credor tem um direito especial, a pretensão, só contra o devedor (o direito relativo à prestação), não deixa contudo de ter também, como o titular do direito real, um direito geral, "erga omes", isto é, o direito a que todos respeitem a relação jurídica existente entre ele e o devedor. Quer dizer: todos os direitos, mesmo relativos, são também absolutos por um outro lado: o mundo constituído pelos terceiros".Distinguindo os efeitos internos do contrato, em que vigoraria o princípio da relatividade, e os seus efeitos externos, em que a regra seria a oposta do princípio da relatividade, porquanto o contrato afectaria terceiros, desde logo no respeito que por estes lhe era devido, cfr. MANUEL J. G. SALVADOR, "Terceiro e os efeitos dos actos ou contratos: a boa fé nos contratos", Lisboa, Petrony, 1962, págs. 13 e segs., em especial, pág. 16. PEREIRA COELHO, Obrigações, Aditamentos à Teoria Geral das Obrigações de Manuel de Andrade, por Abílio Neto e Miguel J. A. Pupo Correia, cit., pág. 81, mostra-se sensível à tese da eficácia externa das obrigações, em certas hipóteses, em situação que veio a obter tutela legal no n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil de 1966: "Todavia, se é certo que esta doutrina do efeito externo leva, por vezes, a responsabilidade demasiado longe, e se é verdade ainda que alguns casos de responsabilidade se podem explicar sem recorrer a ela, outros há, em contrapartida, que, a não a admitir, dificilmente resolveremos. Figuremos esta hipótese: uma pessoa de avançada idade doa todos os seus bens a um sobrinho, rapaz ainda novo, com a obrigação por parte deste, de lhe dar uma pensão mensal vitalícia. Essa pessoa, dado o avançado da idade, pensa viver apenas uns dez anos, ao passo que o sobrinho durará, presume-se, muito mais. Entretanto, um terceiro assassina o obrigado à pensão — o sobrinho —, o que vai lançar na miséria o credor – o tio. Ao que parece, se o criminoso sabia da obrigação que a sua vítima tinha de pagar aquela pensão mensal, ele deve ser responsável também por ela. Ora, isto explica-se pela doutrina do efeito externo. Pode-se perguntar, porém, se será necessária a lesão de um direito subjectivo para fundamentar a obrigação de indemnizar como parece sugerir o artigo 2361.º do Código Civil. Se assim for, na hipótese figurada (...) parece que não há direito a indemnização precisamente por faltar o suposto do artigo 2361.º. E de harmonia com a doutrina clássica em casos destes não há, de facto, obrigação de indemnizar. É, porém, bastante questionável que apenas a violação de um direito subjectivo possa fundar uma tal obrigação. E então talvez já novamente não seja necessário recorrer à doutrina do efeito externo". ANTÓNIO FERRER CORREIA, Da responsabilidade de terceiro que coopera com o devedor na violação de um pacto de preferência, na «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 98 (1965), n.º 3308, págs. 355 a 360, e 369 a 374, admitindo a responsabilidade do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto de preferência: o terceiro que contratasse conhecendo a obrigação, teria sido cúmplice do acto emulativo do devedor, que não pudera alegar um interesse atendível no incumprimento do pacto e procedera com o exclusivo intuito de prejudicar o credor, responsabilidade que decorreria do princípio do abuso do direito. Contra a eficácia externa na doutrina coeva do Código Civil de 1867, expressamente caracterizando o direito absoluto pelo

3. A admissibilidade da causalidade indirecta segundo o pressuposto do nexo de