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II. A delimitação dos sujeitos titulares do direito a indemnização por dano moral a partir da

1. O dano reparável

Só o dano que reunisse determinadas características seria susceptível de ser reparado143. Uma das características comummente apontadas pela doutrina como

141 Já o artigo 858.º do Decreto de 21 de Maio de 1841, que aprovou a Novíssima Reforma Judiciária,

estabelecia que "A acção de perdas e damnos provenientes de qualquer crime compete aos offendidos, e aos seus herdeiros (...)".

142 A exposição que se segue não pretende delinear ou sumariar os esquemas de enunciado dos

pressupostos da responsabilidade civil apresentados pela doutrina da época nem representa a opção por qualquer dos modelos possíveis. Apenas visa antecipar algumas das possíveis dificuldades à reparação dos danos indirectos e de terceiros mediatamente lesados e estudar como foram tratadas pela doutrina ao tempo do Código Civil de 1867. Expondo os diversas esquemas de enunciado dos pressupostos da responsabilidade civil na doutrina coeva do Código Civil de 1867, cfr. FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, cit., págs. 53 e 54. Sobre o tema da enumeração formal dos pressupostos da responsabilidade civil pela doutrina nacional, cfr. ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Normas de protecção e danos puramente patrimoniais, cit., págs. 642 e segs.

143 Reportamo-nos aos elementos que o dano deve reunir para que dê lugar à responsabilidade civil

e não ao conceito de prejuízo em si (para a distinção entre o conceito de prejuízo e o conceito de prejuízo reparável, cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES, Do conceito jurídico de prejuízo, «Jornal do Fôro», Lisboa, 1953, pág. 7). Para além da característica da pessoalidade, que de seguida se define com mais desenvolvimento, a doutrina apontou ainda outros requisitos que o dano deveria preencher para ser reparável. MANUEL DIAS DA SILVA (Estudo sobre a Responsabilidade Civil Connexa Com a Criminal, I, cit., pág. 193 e segs.) exigiu, ainda, que o dano fosse actual e certo, entendendo por dano certo o necessário, inevitável e apreciável. O dano futuro seria indemnizável quando a sua existência fosse certa, como na hipótese dos lucros cessantes por impossibilidade de trabalho em caso de ferimentos. Segundo JAIME DE GOUVEIA, Da responsabilidade contratual, cit., pág. 93.

"A doutrina exige, para que o "prejuízo" dê lugar a indemnização, que ele apresente três características, a saber: que seja "certo, pessoal e não tenha sido ainda reparado".(...) O "prejuízo é certo", quando não resta dúvida de que o ofendido teria uma situação melhor se o autor da lesão não houvesse praticado o facto ilícito". Admitiu a reparação do dano futuro, desde que fosse certo e não meramente hipotético. Reconheceu que é difícil qualificar certos danos como certos ou hipotéticos, apresentando, como casos que maior dificuldade de qualificação ofereciam, aqueles em que a lesão consistiu em se haver feito perder ao ofendido a sorte ou álea que este tinha de obter certo ganho ou de evitar determinado prejuízo (dano da perda de chance) e apresenta a seguinte solução, a pág. 95: "À primeira vista parece que o prejuízo é hipotético e de modo nenhum certo, que não dá, por isso, base para a responsabilidade civil. Por outro lado, afigura-se que houve um prejuízo certo: a perda da "sorte", da "chance".Em verdade, a perda da "sorte" resulta certa, mas o que é mister é determinar o valor que tem esta "alea".A acção de indemnização, quanto a nós, tem "ratio petendi" e será ou não procedente, conforme os tribunais tiverem ou não elementos de apreciação do valor da "alea" perdida. Se o tribunal, apreciando o êxito do recurso que deixou de ser interposto, verificar que este poderia ou deveria ser ganho, achou um critério de apreciação do valor da "alea" perdida e, consequentemente, do "prejuízo" sofrido". CUNHA GONÇALVES apontou os requisitos de que o prejuízo fosse certo e actual, exigiu que o prejuízo fosse efeito imediato do facto ilícito, que tivesse atingido um direito subjectivo ou um interesse lícito e que estivesse por indemnizar ou não tivesse já sido reparado por outra forma (Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., págs. 412 e segs.). O requisito da certeza e actualidade do prejuízo, tal como é definido por CUNHA GONÇALVES, não afastaria a reparação do prejuízo futuro, quando as consequências do dano fossem inevitáveis; o prejuízo simplesmente possível ou receado, como seria o proveito aleatório, não seria indemnizável, por ser meramente hipotético. Dá o exemplo de possível êxito de uma demanda na qual não foi interposta a apelação, por desleixo. O proveito aleatório não deveria ser confundido com o lucro esperado, o qual não qualificou como hipotético. Também não qualificou como hipotético, mas antes como certo, o prejuízo causado ao direito de uma pessoa que nessa ocasião dele não se utilizava: "Assim, bem julgado foi em França que uma velha mãe, cujo filho foi morto, pode exigir a responsabilidade civil ao autor dêste facto ilícito, ainda que ela não estivesse recebendo alimentos do seu filho" (pág. 416 da obra citada). MANUEL GOMES DA SILVA, interrogando-se sobre se qualquer sofrimento importaria a obrigação de indemnizar, exigia como requisito de reparabilidade do dano moral a gravidade do dano, entendendo-a como ofensa à personalidade moral. MANUEL GOMES DA SILVA (O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, cit., págs. 79 e segs.) reflectiu ainda sobre a questão de saber se o requisito da gravidade do dano apenas seria de aplicar ao dano moral, ou se seria também exigível para o dano patrimonial. Considerou que seria um requisito geral, corolário da noção de dano reportada à utilidade do bem: não há dano se a modificação da utilidade do bem foi tão insignificante que não se alterou a utilidade geral do bem ou do conjunto de objectos em que estava integrado (ex: não dá lugar a dano o facto de retirar um grão de trigo de um celeiro). Quanto a este último aspecto, observa MANUEL GOMES DA SILVA: "Como se vê, sucede com os danos patrimoniais o mesmo que já observámos no domínio dos danos morais: para haver direito a reparação é necessário que a lesão sofrida diminua sensivelmente a utilidade dum bem ou coloque a pessoa ofendida em situação pior do que aquela em que estaria se não se tivesse verificado a ofensa. É claro que, sendo a utilidade dos bens patrimoniais avaliável em dinheiro, é mais sensível a importância do dano patrimonial do que a do moral, pelo que é de exigir neste maior gravidade; abstraindo, porém, dêste aspecto quantitativo, o fenómeno notado nas duas espécies de dano é idêntico" (O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, cit., pág. 80). Apesar de MANUEL GOMES DA SILVA desenvolver a noção de dano essencialmente a propósito do dano patrimonial, a noção de dano reportada à perda ou diminuição da utilidade do bem valeria também para o dano não patrimonial, como se pode extrair das seguintes palavras do autor: "Cumpre observar-se que a utilidade do bem, considerada em si mesma, pode ser desprovida de valor

condição de indemnizabilidade do dano — moral ou patrimonial — foi a da pessoalidade. O dano deveria ser pessoal, no sentido de que apenas o sujeito em cuja esfera jurídica o dano se tivesse verificado poderia reclamar indemnização por esse dano144-145. Através do

requisito da pessoalidade do prejuízo, ficariam excluídos do universo dos sujeitos titulares do direito a indemnização aqueles que reclamassem indemnização por dano alheio, dano de terceiro. A verdade, porém, é que o requisito da pessoalidade, rigorosamente entendido, não excluía que, caso fossem várias as pessoas lesadas em resultado do facto ilícito — como lesados imediatos e mediatos —, todas elas reclamassem indemnização por dano próprio. Cunha Gonçalves esclareceu este ponto, na hipótese de

pecuniário, e então o ser-se privado dela representará simples dano moral, portanto só reparável quando se verificarem as condições exigidas para a satisfação dos danos não patrimoniais. A jurisprudência francesa oferece-nos muitos exemplos de danos morais causados pela privação de bens patrimoniais: por exemplo, tem- se concedido em França indemnização pela demora na entrega de objectos de luxo, pela falta de entrega dum retrato encomendado, pelo facto de viajantes de caminho de ferro haverem sido transportados em carruagens destinadas a mercadorias ou apertados em carruagens com grande excesso de lotação, pelo acréscimo de fadiga ocasionada pelo atraso dum comboio, etc." (O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, cit., pág. 80). INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, escrevendo na vigência do Código Civil de 1867, e admitindo como princípio geral o da reparação dos danos morais, entendia que "Todos os prejuízos, pequenos ou grandes, são indemnizáveis, mas o tribunal pode desprezar um dano de tal modo insignificante que não tenha justificação económica o pedido da sua reparação, porque de "minimis non curat praetor"" (cfr. Cód. Proc. Civ. art. 822.º, n.º 7)" (Manual de Direito das Obrigações, Tomo I, cit., pág. 214). FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, cit., págs. 387 e segs., exige, à luz do Código Civil de 1966, o requisito do mínimo de gravidade do dano, patrimonial ou não patrimonial, referindo os exemplos de MANUEL GOMES DA SILVA, e entende que o requisito do mínimo de gravidade é imposto pelo bom-senso, pelo princípio da boa fé e pelo n.º 2 do artigo 398.º do Código Civil de 1966, segundo o qual a prestação deve corresponder a um interesse do credor digno de protecção legal. Critica, a pág. 376, os termos generosos em que o artigo 496.º do Código de 1966 admitiu a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais.

144 Cfr. MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a Responsabilidade Civil Connexa Com a Criminal, I, cit.,

pág. 201: "o damno deve ser "pessoal", isto é, supportado pela pessoa ou bens d aqquelle que pretende a reparação". Segundo JAIME DE GOUVEIA, "Quando se afirma que "o prejuízo deve ser pessoal", quere dizer-se que só aquele que sofre o dano é que pode exigir uma reparação civil" (Da responsabilidade contratual, cit., pág. 98). CUNHA GONÇALVES admite também o requisito da pessoalidade do dano: "O prejuízo deve ser pessoal de quem pede a sua reparação. É evidente que não teria legitimidade quem viesse exigir uma indemnização por dano causado a terceiro" (Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. XII, cit., pág. 417).

145 Mais tarde, nos trabalhos preparatórios do Código Civil, VAZ SERRA não descura o problema de

saber quem tem legitimidade para requerer a reparação quando, excepcionalmente, o dano produzido em regra pelo não cumprimento ou por um facto ilícito se dá, não no credor, mas em lugar dele, num terceiro (problema de saber se é permitida ao credor a "liquidação do dano no

haver lesados mediatos em caso de morte da vítima directa: diz o autor que, devendo o prejuízo ser pessoal, “contudo, o prejuízo de outrem pode ser, simultâneamente, um prejuízo

pessoal, como sucede no dano moral e nos casos em que a lei confere aos herdeiros, ao cônjuge ou a qualquer pensionista de um morto o direito a uma indemnização. Claro é que, ainda nêstes casos, a reparação é do prejuízo pessoal sofrido pelo autor, e não do prejuízo irreparável do morto.”146 Jaime

de Gouveia, depois de apresentar como requisito da reparabilidade do prejuízo que este seja pessoal, afirma que “(…) O prejuízo emergente dum facto ilícito afecta, por vezes, pessoas

diversas da que foi imediatamente atingida. É o caso do homicídio, que prejudica os filhos da vítima por ela sustentados. Quando é que as pessoas, que sofrem prejuízo pela repercussão do facto ilícito, podem exigir reparação?”147 A resposta a esta questão através do requisito da pessoalidade do dano, isoladamente considerado, consentiria, como a doutrina reconheceu, que reclamasse indemnização um conjunto demasiadamente amplo de sujeitos. A pessoalidade do dano não foi, assim, elevada a critério único de delimitação dos sujeitos com direito a indemnização, mas sim aplicada cumulativamente com os demais pressupostos da responsabilidade civil.

Deste modo, cabe apurar em que medida o alcance atribuído pela doutrina a estes pressupostos contribuiu para a definição dos titulares do direito a indemnização. Revelou-se, neste ponto, determinante, o entendimento adoptado de ilicitude.