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Danos morais próprios da vítima imediata: a sua progressiva autonomização

CAPÍTULO III A TITULARIDADE DO DIREITO A INDEMNIZAÇÃO POR DANO

V. A responsabilidade civil por dano moral resultante de acidente de viação, ocorrendo a

2. Os danos morais indemnizáveis: sua delimitação em razão das esferas jurídicas afectadas

2.3. Danos morais próprios da vítima imediata: a sua progressiva autonomização

indemnização devida em caso de morte, o tema dos danos morais sofridos pela vítima imediata não foi identificado nem distinguido do direito a indemnização por danos morais próprios dos familiares da vítima. Contribuiu para a não individualização do problema a prática frequente de não caracterizar o dano moral atendível, ao qual era feita uma mera referência genérica, no cômputo da indemnização única.

II. A consideração do direito a indemnização por morte da vítima como um direito único é atenuada em certas decisões que incluem, a par dos danos morais próprios de terceiro, como critério a valorar nas consequências do acidente, o direito à existência da vítima. Contudo, este dano não aparece autonomizado como cifra diferenciada na fixação do quantitativo global da indemnização, nem é desenvolvida qualquer fundamentação jurídica específica para a sua atendibilidade389. Consequentemente, sendo a indemnização

389 Cfr: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 1940, in «Colecção Oficial dos

Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal de Justiça», ano judicial de 1940, 39.º ano, págs. 6 a 8, em que foi concedida revista ao recorrente autor, maior, de decisão em que havia sido arbitrada uma indemnização de 3000 escudos em virtude do atropelamento de que foi mortalmente vítima a sua mãe, da qual era único filho legítimo, indemnização que atendera apenas às despesas feitas com o funeral e com o luto. O Supremo Tribunal de Justiça fixou uma indemnização de 20.000 escudos, em que tomou em conta o dano moral. Na fundamentação do aresto, fazem-se afirmações que apontam no sentido de ter sido atendida a própria perda da vida, assim como a dor moral do filho pela perda da mãe: "O artigo 138.º do Código da Estrada dá ao lesado o direito de exigir uma indemnização pelos prejuízos e danos recebidos; e, no caso de morte — que é o dos autos — transfere-se esse direito para as pessoas que, pela revogação do citado decreto n.º 5.637, se encontram hoje referidas no artigo 16.º da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936. (…) Quanto á quantia em cujo pagamento tem de consistir a indemnização aos lesados ou áqueles a quem o direito se transmitiu, é certo que a lei entregou a sua fixação ao prudente arbítrio do juiz, mas ordenou que este, no exercício desse poder, atendesse à gravidade do acidente, circunstâncias em que se deu e suas consequências e á condição económica do lesado e dos responsáveis. Ora, no caso dos autos, não é licita quaquer dúvida nem sôbre a gravidade do acidente, porque produziu, por esmagamento, a morte instatânea da vítima que se encontrava tranquilamente sentada à porta de uma casa, nem sobre as culpáveis circunstâncias que o provocara (…) O ser a vítima doente e quási septuagenária não afectava a integridade do seu direito à existência e, portanto, tal circunstância não atenua aquela gravidade, e

muito menos para o efeito de entender-se sem valor, como parece ter-se entendido, a vida que o acidente fez cessar. As instâncias, no arbitramento da indemnização, atenderam ás prováveis despesas do funeral e do luto que, na hipótese, bem podiam não ser havidas como conseqüência económica do acidente por o autor, como filho único, as ter em qualquer caso de suportar mas não atenderam ao próprio acidente em si e na sua gravidade, nem á sua consequente e, por natural, necessária reprodução no sentimento do mesmo autor, deixando, por êste modo, sem reparação danos certos, ocasionados. Por estas razões, concedem a revista, fixam a indemnização na quantia de 20.000$00 (vinte contos) (…)" (os sublinhados são acrescentados); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1950, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 20, Setembro de 1950, págs. 308 a 312.: "No caso de morte do lesado por acidente de viação, sendo casado, com filhos, o direito à indemnização transmite-se exclusivamente para a viúva".Arbitrou uma indemnização de 60.000$00, com a seguinte fundamentação, que claramente revela ser levado em conta, além do dano moral próprio da viúva, a grave consequência da morte causada pelo acidente, sem, no entanto, expressamente aludir à perda da vida como dano indemnizável: "Não excede os limites do prudente arbítrio do julgador, o que a tal respeito vem decidido, atendendo a que o acidente não podia ser de mais graves consequências, pois dele resultou a morte de um chefe de família, homem válido, grande industrial, e comerciante considerado entre os primeiros da cidade do Porto, que gozava de excelente situação económica, não sendo inferior a da companhia Ré. Quanto ao incómodo moral suportado pela autora, com a inesperada morte do marido, não pode negar-se que devia ter sido grande, pelo menos nos primeiros tempos, antes de ter casado segunda vez, passados trinta meses de viuvez, e, a isso não podia deixar de atender-se também" (sublinhados acrescentados). O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Abril de 1958, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 76, Maio de 1958, págs. 317 e segs., tem o seguintes sumário oficial: "A indemnização de perdas e danos por homicídio culposo resultante de acidentes de viação deve reparar os danos materiais causados e os danos morais sofridos, tendo em conta a mudança de limitação legal, e em devido apreço o valor da vida humana e a falta que a vítima faz àqueles de quem era amparo", mantendo a indemnização por dano moral arbitrada a favor da viúva e filhos. A mesma ideia é acolhida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Julho de 1958, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 79, Outubro de 1958, págs. 391 e segs., onde se entendeu que "Nos acidentes mortais, a fixação da indemnização, segundo o princípio consagrado no artigo 56.º do Código da Estrada e já estabelecido no artigo 2361.º do Código Civil, deve ter no devido apreço o valor da vida humana e a falta que a vítima faz àqueles de quem era amparo." (sublinhado acrescentado). Fixa um valor de 100.000$00 por morte de cada uma das vítimas. Não obstante a afirmação feita, o valor arbitrado é justificado pela "carestia da vida" e pela necessidade de fazer face às despesas — o que permite concluir que não se tratou, rigorosamente, apesar do sumário, de indemnizar a perda da vida. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 1959, in «Boletim do Ministério da Justiça» de 7 de Outubro de 1959, n.º 90, Novembro de 1959, págs. 404 e segs., entendeu "que considerar excessiva a quantia de 100.000$00 como indemnização [devida à viúva e filho menor da vítima], é ter em pouca conta o valor da vida humana, de uma pessoa com 29 anos e a profissão de serralheiro, com cujos proventos mantinha a mulher e o filho menor". O Supremo alude ao "valor da vida humana", mas à perda da vida não atribui significado singular e distinto da capacidade laboral. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1961, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 104, Março de 1961, págs. 192 e segs., considerou que na indemnização a arbitrar à viúva de vítima de acidente de viação "há que atender também ao dano moral sofrido pela assistente que, não tendo filhos, se viu privada da companhia de seu marido, ficando totalmente desamparada. (…) A circunstância de os tribunais terem sido, em geral, excessivamente moderados na fixação de indemnizações por acidentes de viação, não justifica que não deva mudar-se de orientação, tendo no devido apreço o valor da vida humana e a falta que fazem àqueles de quem são amparo, os que desses acidentes são vítimas. A indemnização fixada é equilibrada e justa, sendo, por isso, de manter" (100.000$00) (sublinhado acrescentado). Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12

única, ao dano da vítima e ao dano dos terceiros reflexamente atingidos, foi aplicável o mesmo regime, designadamente quanto à definição dos titulares do direito a indemnização. O dano da vítima directa foi consumido na indemnização devida às vítimas indirectas. Estas decisões têm o mérito de admitirem a valoração simultânea do dano da perda da vida e do dano próprio dos familiares, mas pecam na sua fundamentação jurídica, pois não extraem da individualização do dano das vítimas indirectas os corolários que se impunham na autonomização do respectivo regime.

III. Foi, não obstante, ainda sob a vigência dos Códigos da Estrada de 1930 e de 1954 que esparsas decisões judiciais — de forma pontual e não sistemática — trataram especificamente o problema da reparabilidade dos danos morais sofridos pela vítima antes da morte e do dano da perda da vida. As soluções encontradas não são, a nosso ver, isentas de crítica.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 1957390 destaca-se por

ter distinguido a diferente natureza do dano da vítima mediata e dos danos sofridos pela vítima imediata do acidente, aos quais seria aplicável um distinto regime391. “Nos crimes de

de Outubro de 1966, in «Boletim do Ministério da Justiça» de 12 de Outubro de 1966, n.º 160, Novembro de 1966, págs. 182 e segs., onde se escreveu: "Vão longe já os tempos em que os Tribunais avaliavam em bem pouco os danos morais resultantes da morte de uma pessoa querida. Arrepiando caminho, reconhece-se, hoje, que a perda da vida é a que maiores sofrimentos morais causa à família da vítima. E na indemnização desses danos morais, há também que incluir e valorizar a perda ou supressão do próprio direito à vida. Pensa-se, por isso, que é equilibrado fixar em 60 000$00, como mínimo aceitável, a quantia que pode compensar, para a esposa e para o filho, na medida em que a dor é reparável por satisfações materiais, a morte do infeliz José Ferreira".

390 In «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 65, págs. 389 e segs.

391 No Acórdão de 17 de Março de 1959, in «Boletim do Ministério da Justiça» n.º 85, Abril de 1959,

págs. 629 e segs., em que foi vitimada uma criança de 6 anos, por atropelamento, o Supremo revogou a decisão recorrida e manteve a sentença da primeira instância, dando provimento ao pedido da autora, o qual, no que concerne aos danos morais, reputou o direito à existência em 30 000$00 e reputou ainda em 20 000$00 os danos pela dor e sofrimento pela perda do filho. O tribunal admitiu, assim, a cumulação dos dois danos, fundando a aquisição do direito a indemnização pela violação do direito à existência na transmissão "mortis causa", mas foi omisso quanto ao título de aquisição do direito de indemnização da mãe por danos morais próprios. Mais tarde, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Julho de 1964, in «Revista de Legislação e Jurisprudência», ano 98.º, n.º 3290, págs. 70 e segs., — que adiante analisaremos — formulou a mesma distinção, embora também sem explicitamente se referir ao modo de aquisição dos direitos de indemnização pelos distintos danos.

homicídio voluntário, preterintencional ou culposo, a vítima directa, imediata, é o morto, mas esses crimes, podem produzir e em regra produzem outras vítimas: são as pessoas cujos interesses legítimos tenham sofrido prejuízo com a morte; são, entre outras, as pessoas a quem o morto devia alimentos, como os pais e os irmãos; são as vítimas mediatas ou indirectas.” Criticou a tese,

sustentada pelas instâncias, segundo a qual os pais da vítima teriam direito a indemnização por vocação sucessória, e defendeu o entendimento segundo o qual as vítimas mediatas adquiririam, a título pessoal, direito de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência da morte, segundo o artigo 56.º do Código da Estrada. Já os direitos do morto transmitir-se-iam por sucessão, nos termos do artigo 2366.º do Código Civil. A argumentação desenvolvida conduziu, ainda, à expressa colocação do problema de saber se é admissível o direito à indemnização pela perda da vida do morto, ao qual foi dada resposta negativa : “Os direitos do morto transmitem-se por sucessão (Código Civil, art.º

2366.º ), mas são restritos, limitando-se às despesas feitas para o salvar e podendo incluir-se neles as despesas feitas com o seu funeral (citado Código, art.ºs 2384, n.º 1, e 2116.º). O prejuízo ocasionado pela morte nenhum direito cria à vítima directa, porque precisamente no momento em que se verifica o facto de que resultaria o direito à indemnização, deixa a mesma vítima de ter personalidade ou capacidade jurídica. Escreve, por isso, Cunha Gonçalves que a indemnização pelo crime de homicídio não faz parte da sucessão do morto, nem tão-pouco da comunhão de bens do casal pois ela não podia existir no património do falecido” (Tratado, vol 12, pág. 538). Como mostram os arts 2384.º e 2385.º do Código Civil, presentemente profundamente alterados pelo art.º 34.º do Código de Processo Penal, a morte pode originar duas acções distintas, independentes, uma por sucessão, para a obtenção da indemnização pelas despesas feitas para salvar o morto e com o seu funeral; outra a título pessoal, pelo prejuízo sofrido pelas vítimas mediatas em consequência da morte.”

O Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 20 de Março de 1957, teve, na nossa perspectiva, o grande mérito de deixar clara a distinta natureza do dano moral próprio das vítimas imediatas e dos danos morais próprios da vítima e de evidenciar que a resposta à questão da reparabilidade dos danos morais da vítima directa está dependente da resolução de uma questão prévia comum: é transmissível, “mortis causa”, a indemnização por danos morais?