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1 DISCURSOS (DES)LEGITIMANTES DA PENA

1.2 DISCURSO CRÍTICO DA TEORIA DA PENA

1.2.2 Abolicionismo

1.2.2.2 O abolicionismo de Louk Hulsman

máxima do sistema punitivo, levada a termo pelo regime nazista. Em 1944, ele foi preso com sua família pela polícia colaboracionista e enviado para a Alemanha num trem, do qual conseguiu escapar, ingressando em seguida na resistência. É revelador que este elemento se repita na vida de vários abolicionistas e pacifistas, que insistiam nos alcances da mediação e do restabelecimento da paz, como o próprio Johann Galtung. Em contrapartida, os melhores representantes das teorias justificacionistas da sua geração haviam estado do outro lado das grades nos campos de concentração.102

101 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.93/94.

102 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008. p.697.

Um dos grandes interlocutores do movimento abolicionista no Brasil, em especial de Hulsman, é Edson Passetti, o qual diz:

O abolicionismo penal de Louk Houlsman é um ensaio de existência libertária, desafiador como uma ação direta, instigador e instaurador de uma maneira contemporânea de resistir (no sentido foucaultiano de resistência ativa, inovadora e liberadora) de habitar uma linha de fuga (no sentido deleuziano de que tudo começa com uma fuga, pelo que é inventivo).103

O sistema penal opera na irracionalidade, porque somente se vale de sua própria lógica, como a astrologia e a teologia. Nesse sentido, o pensamento burocrático de implementação do sistema penal é essencialmente repressivo e o sofrimento da prisão é preço que o encarcerado deve pagar por um ato a que a justiça fria definiu por um balanço desumano, fazendo uma nova vítima. "O sistema penal é especificamente concebido para fazer mal"104.

Segundo Hulsman, chamar um fato de "crime" já limita a possibilidade de outras linhas, identificando somente o estilo punitivo como consequência.105

Com a eliminação da qualificação comum de "delito" para situações tão diversas, Hulsman queria indicar que a comunidade aborda os eventos criminalizados e os trata como problemas sociais. Isso permitiria ampliar o leque de respostas possíveis, não se limitando à resposta punitiva, que, ao longo da história, não somente não resolveu nada, como também criou mais problemas. O próprio sistema penal converteu-se, na atualidade, em um desses graves e violentos problemas.

Hulsman também entende o "criminoso" como algo construído pela sociedade, sendo que a pessoa que ocupa seletivamente este papel não pode ser encarada como a "outra" e sim como parte igual e integrante do conjunto social.

103 PASSETTI, Edson. Louk Hulsman e o abolicionismo libertário. In: KOSOVSKI, Ester; BATISTA, Nilo. Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p.74.

104 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.

Tradução de Maria Lúcia Karam. 2.ed. Niterói: Luam, 1997. p.88.

105 Ibid., p.100.

Adverte Hulsman, falando sobre o caráter seletivo do sistema penal:

No entanto, as pessoas envolvidas em eventos "criminais" não parecem formar uma categoria à parte por si mesmas. Aqueles que são oficialmente rotulados como "criminosos" constitui apenas uma pequena parte dos que estão implicados em fatos que legalmente permitem a criminalização, a grande maioria se constituindo de homens jovens provenientes dos setores mais desfavorecidos da população.106

Hulsman propõe a utilização de formas conciliadoras entre vítima e criminalizado, colocando-os cara a cara, em substituição ao sistema penal.

O sistema penal impõe um único tipo de reação aos acontecimentos que entram em sua competência formal: a reação punitiva. Entretanto, é muito mais raro do que se pensa que a pessoa atingida realmente queira punir alguém pelo acontecimento que sofre.107

Ou seja, o sistema penal é muito mais punitivo do que interessa e deseja a própria vítima.

Hulsman coloca em xeque a existência da pena, visto que ela exclui da cena um dos maiores interessados: a vítima.

Veja-se que com a inclusão da vítima por meio de formas conciliatórias de solucionar possível conflito, o "direito" de punir do Estado estaria descartado, porém ainda restariam algumas medidas coercitivas para utilização conciliatória entre vítima e criminalizado.

Falei algumas vezes em abolir a pena. Quero me referir à pena tal qual é concebida e aplicada pelo sistema penal, ou seja, por uma organização estatal investida do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas as pessoas interessadas. Questionar o direito de punir dado ao Estado não significa necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir totalmente a noção de responsabilidade pessoal. É preciso pesquisar em que condições determinados constrangimentos – como a

106 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: PASSETTI, Edson (Org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan: Nu-Sol/PUC-SP, 2004. p.43.

107 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.

Tradução de Maria Lúcia Karam. 2.ed. Niterói: Luam, 1997. p.84.

internação, a residência obrigatória, a obrigação de reparar e restituir, etc... – têm alguma possibilidade de desempenhar um papel de reativação pacífica do tecido social, fora do que constituem uma intolerável violência na vida das pessoas.108

Interessante também que Hulsman se preocupa com consequências ao sistema burocrático que a abolição das penas pode gerar, em especial nas agências de controle.

Conforme explica, suprimir o sistema penal não teria como consequência a eliminação ou redução dos membros da magistratura ou do ministério público, pois poderiam estes ser absorvidos pelas vagas nas áreas cíveis, para, inclusive, alívio de alguns deles, para os quais a tarefa de estigmatizar semelhantes em tempo completo não deve ser causa de regozijo.109

Hulsman, muito atento ao sofrimento de seus semelhantes, os quais para ele são todos seres humanos, acreditava, em essência, que abolir o sistema pena seria apenas um passo para evitar esse sofrimento em muitos indivíduos, um passo que permitiria uma aproximação da realidade social sem utopias negadoras, que era como ele avaliava as justificativas de um sistema penal liberal e humanista.

Tal consciência era tamanha em Hulsman que ele, contrariamente a alguns que se inquietam também com os problemas da justiça, não entendia que se deveria colocar na prisão os sonegadores fiscais, os que remetem seus lucros para o exterior ou mesmo poluem o meio ambiente.

Apesar de compartilhar da indignação dos que denunciavam a existência de pesos diferentes de acordo com a categoria social visada, ainda assim, para ele, a máquina penal continuaria a ser também um mau, qualquer que fosse o julgamento, moral ou social, que se poderia ter sobre determinado comportamento. "Da minha parte, creio que, nos campos ainda não criminalizados, se deveria evitar a qualquer preço a criminalização"110.

E no que dizia respeito, então, à necessidade de se tratar igualmente a todos, sem distinção de segmento social, preferia Hulsman que "se estendessem àqueles

108 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.

Tradução de Maria Lúcia Karam. 2.ed. Niterói: Luam, 1997. p.86/87.

109 Ibid., p.90/91.

110 Ibid., p.121.

que costumam ser chamados de 'delinquentes pés-de-chinelo' os procedimentos conciliatórios que existem para os 'grandes' no Ministério das Finanças"111.