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1 DISCURSOS (DES)LEGITIMANTES DA PENA

1.2 DISCURSO CRÍTICO DA TEORIA DA PENA

1.2.2 Abolicionismo

1.2.2.4 O abolicionismo de Nils Christie

Christie não é um abolicionista facilmente enquadrável nessa denominação.

Sua proposta não se oporia a um outro tipo de leis ou normas consensuadas, e de julgamentos e rituais participativos, caso isso reconduzisse para a redução ou eliminação da dor e da violência. Todavia, ele seria, sem dúvida, um crítico radical da forma que o sistema penal conhecido adotou.129

Realmente, pelo que se extrai de seus livros "A indústria do controle do crime"130 e "Uma razoável quantidade de crime"131, Christie não era contrário à ideia de existência de uma Justiça formalmente instituída, mas sim à Justiça conforme ela se realiza atualmente, a qual vê como única forma de consequência para a prática de fatos rotulados como delituosos o sistema penal, ou seja, a punição. A Justiça, ao

127 MATHIESEN, Thomas. Juicio a la prisión. Buenos Aires: Ediar, 2003. p.264.

128 Ibid., p.267.

129 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008. p.709.

130 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental.

trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

131 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2011.

contrário, deveria ser fomentadora do encontro entre vítima e criminalizado, da solução consensuada.132

Em especial em "Uma razoável quantidade de crime", Christie reclama maior protagonismo da vítima, limitando a ideia de terror tão alarmado na atualidade133. O desconhecimento entre as pessoas, o anonimato da vida moderna, autoriza que a categoria linguística "crime" se estenda a toda e qualquer espécie de comportamento e, com isso, aumente a imposição de castigos, implementação de dores, esquecendo-se de outras formas, estas sim, de fortalecimento da paz.134

Para Christie, somente por meio da reconciliação é que se poderia alcançar a paz. Assim, ele propõe que este processo seja composto de duas partes.

Na primeira seria colocada a questão da compensação para as vítimas e na segunda a mediação direta entre as partes envolvidas no conflito.135

É bom que se alcance a verdade; fica fácil saber o que aconteceu quando ofensores, frequentemente ricos e poderosos, deparam com vítimas muito pobres. Mas apenas verdade e desculpas não bastam. O problema básico da desigualdade se mantém, depois que um certo entendimento comum da história se estabeleceu. A questão da compensação também deve ser abordada, mas não é incomum que seja ignorada nesses processos. Depois de ter dito a verdade, o rico ofensor vai para sua confortável casa, enquanto o ex-prisioneiro volta para a miséria material.136

A prisão é um sofrimento carente de sentido. Exclui a possibilidade de iniciativa das partes até para o diálogo, alimenta o desprezo pela pessoa. Na prisão se perdem a personalidade e a sociabilidade. Pensa-se que quem está na prisão, lá está por ter merecido, sem entender que o conceito de delito é relativo, pois varia no tempo e no espaço, além de ser uma construção social. Na realidade, é evidente que é a lei que cria o "delinquente".

132 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental.

trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998; CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2011.

133 Sobre o impacto da ideia de terror, leia-se SCHEERER, Sebastian. Terror. In: FÖPPEL, Gamil (Coord.). Novos desafios do direito penal no terceiro milênio: estudos em homenagem ao Prof. Fernando Santana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.197-202.

134 CHRISTIE, Uma razoável..., op. cit.

135 Ibid., p.146.

136 Id.

Atos não são, eles se tornam alguma coisa. O mesmo acontece com o crime.

O crime não existe. É criado. Primeiro, existem atos. Segue-se depois um longo processo de atribuir significado a estes atos. A distância social tem uma importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos o significado de crimes, e às pessoas o simples atributo de criminosas.137

Ocorre que, para Christie, infelizmente, as pessoas têm a noção de crime seja algo dado pela realidade. E mais, que está sendo vendido na atualidade o medo, pois

"fomos levados à situação social em que se criou uma mera impressão de criminalidade em alta" e alerta que "esta impressão gera todo tipo de consequências sociais"138.

Ademais, para que a ideia de medo surta o efeito necessário na população é necessário que o inimigo não seja doce e pacífico, mas sim mau e perigoso, além de forte. "Forte o suficiente para render honras e deferência ao herói que retorna para a casa da guerra. Mas não tão forte que impeça o herói de retornar"139. Para isso, tem-se utilizado cada vez mais rótulos extremamente indeterminados como "máfia" e "crime organizado" na identificação deste imaginário e crescente inimigo. "Sua extraordinária vagueza os torna úteis como slogans para representar todo tipo de força do mal"140.

Porém, conforme nos mostra Christie, os rotulados como "criminosos" pelo controle social em sua maioria são apenas "acionistas do nada, não têm propriedades, talvez nem uma rede social e, assim, não têm sequer honra"141.

Por tais razões, Christie defende uma contenção da expansão das instituições penais:

Reduzamos as condições que criam comportamentos inaceitáveis; da mesma forma, limitemos o tamanho do aparato penal e, particularmente, façamos o máximo para reduzir o volume da inflição de dor. Nessa conjuntura, uma quantidade razoável só pode ser alcançada se caminharmos na direção oposta daquela que se observa hoje em dia.142

137 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental.

trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.13.

138 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2011. p.31.

139 Ibid., p.69.

140 Id.

141 CHRISTIE, A indústria..., op. cit., p.56/57.

142 CHRISTIE, Uma razoável..., op. cit., p.159/160.

Até mesmo porque, conforme já dito acima no comentário de Anitua, para Christie, a pena é uma inflição desnecessária de sofrimento.

A ministração de dor, como dito, é uma atividade em descompasso com outros valores acalentados. Do ponto de vista ético, uma sociedade com pequena quantidade de inflição de dor é, portanto, preferível a uma outra com grande quantidade. A tortura e a morte já foram vistas como óbvias formas de punição. Hoje em dia, estão banidas na maioria dos países da nossa cultura. A inexistência da tortura e da pena capital pode ser vista como as joias da coroa in absentia do nosso sistema penal. Sua ausência é nosso orgulho. O encarceramento, contudo, está próximo da aniquilação da vida. Significa o confisco da maior parte do que se costuma considerar vida.143

Christie também dedica-se a verificar o crescimento vertiginoso, mormente nos EUA, das taxas de encarceramento, destinando alguns capítulos em sua

"A indústria do controle do crime" a tal assunto.

Atesta que a grande onda de encarceramentos ocorreu nos EUA principalmente a partir da década de 70 do século passado, porém o que sucedeu, em verdade, não foi o aumento na prática de delitos e sim a implementação de uma política criminal austera de aprisionamentos em massa.

No que se refere à prática de delitos, ocorreu até mesmo o contrário, afirma Christe: "O número de vítimas caiu. Além disso, e contrariamente às crenças populares sobre a criminalidade nos Estados Unidos, o número de delitos graves relatados à polícia também mostra um pequeno decréscimo"144.

O que justifica esse aumento gigantesco no volume de prisões é que o controle do crime é um produto que apresenta rentabilidade alta seja na construção de presídios, na venda de equipamentos de segurança e nos lucros que a mídia tem com a diversidade de anúncios de itens.145

143 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2011. p.156.

144 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental.

trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.93.

145 Ibid., p.95-100.

A esta altura já devo estar sendo óbvio, por isso vou ser breve: prisões significam dinheiro. Muito dinheiro. Em construções, em equipamentos e em administração. Isto é assim, independentemente de se tratar de prisões privadas ou públicas. As empresas privadas estão envolvidas de uma ou outra forma em todos os sistemas ocidentais.146

Prossegue Christie, ao final, comentando também que o Estado gasta muitos recursos públicos no controle social. Sendo que chega a suspeitar se algum dia alguém vai questionar que tais contas são muito caras.

Duvido. Quem pensa em dinheiro no meio de uma guerra? A guerra contra as drogas, a guerra contra a violência, a guerra contra a pornografia, a necessidade urgente de garantir o controle nas ruas e a propriedade – estas são situações arquetípicas, onde não cabe preocupação com dinheiro.147

Em conclusão, pode-se dizer que Christie, portanto, centra sua argumentação em fundamentos éticos, orientados a reduzir o espaço da esfera penal, como sofrimento injustificadamente imposto às pessoas de modo intencional.