• Nenhum resultado encontrado

1 DISCURSOS (DES)LEGITIMANTES DA PENA

1.2 DISCURSO CRÍTICO DA TEORIA DA PENA

1.2.2 Abolicionismo

1.2.2.1 O abolicionismo de Michel Foucault

Conforme adverte Zaffaroni, "embora não possa ser considerado um abolicionista no sentido dos demais autores", "Michel Foucalt foi, sem dúvida, um abolicionista"90.

Ou, como diz Salo de Carvalho, ressaltando a importância de Foucault:

"O enfoque foucaultiano gera radical mudança no discurso da criminologia crítica, legando fundamentos importantes ao desenvolvimento das demais políticas abolicionistas"91.

Foucault, embora não apresente lineamentos de ações abolicionistas ou mesmo estratégias possíveis, como se fornecesse uma caixa de ferramentas, os teóricos deste movimento inevitavelmente apropriam-se das ideias apresentadas pelo mestre francês, como um pensamento contínuo, aberto, em que se sustenta que a análise da punitividade deve ser contextualizada constantemente com as relações de poder, desconfiando sempre da ideologia dominante de seu tempo.

Por tais motivos é que realmente pode-se entender Foucault como um teórico sim da criminologia, em especial em seu "Vigiar e punir".

Conforme registra Anitua, "falar do castigo sem mencionar Foucault é como falar do inconsciente sem mencionar Freud, tamanha é a importância deste autor e sua obra"92.

A princípio, parece que Foucault pretendia com "Vigiar e punir" denunciar os aspectos negativos do sistema penal vigente. Com efeito, para isso debruçou-se

90 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. 5.ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2010. p.101.

91 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.133.

92 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008. p.644.

sobre o projeto de Jeremy Bentham de prisão ideal – o panóptico –, encontrando nele uma espécie de poder denominado poder disciplinar.

Bentham foi um jurista e filósofo político do Iluminismo, e seu projeto de prisão era visto de modo geral com uma curiosidade histórica até que Foucault fizesse dele o foco de seu estudo genealógico. Ele o viu como uma admirável ilustração, um diagrama, para uma nova maneira de conceber o poder. Em vez de basear-se na figura de um soberano, como o monarca, esse novo tipo de poder era anônimo e mecânico. Em vez de funcionar por meio de restrições externas e violência espetacular, operava mediante a internalização de um olhar discreto, vigilante. Em vez de esconder e reunir seus sujeitos, tentava torná-los visíveis e separá-los uns dos outros.

A prisão, esta região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.93

A provocativa afirmação de Foucault nesta primeira obra importante de seu período genealógico é que, embora o panóptico como tal não tenha sido construído, seus elementos essenciais passaram a caracterizar uma nova forma de poder: o poder disciplinar. Esses estão presentes no projeto e na construção de numerosas instituições e espaços da sociedade moderna, como escolas, hospitais, fábricas e prisões. Ou, como relata Zaffaroni: "A sociedade militariza-se e o delito passa a ser considerado um dano ao soberano. Assim, vão surgindo – ou generalizando-se – o que Foucault denomina de 'instituições de sequestro' (prisão, manicômio, asilo, hospital, escola etc.) e a polícia"94.

Portanto, vive-se numa sociedade disciplinar em que o poder é exercido mediante uma vigilância difusa e anônima.

93 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 40.ed.

Petrópolis: Vozes, 2012. p.242.

94 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. 5.ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2010. p.62.

Atualmente o poder disciplinar assume forma tecnologicamente mais sofisticada nas câmeras fotográficas, códigos de barra eletrônicos, telefonemas monitorados e aparelhos de celular, mas os princípios operativos permanecem os mesmos.

Em "Vigiar e punir" Foucault analisa as maneiras como sujeitos criminalizados são constituídos em redes de poder/saber.

Em primeiro lugar, as práticas na prisão manipulam e moldam concretamente seus corpos por meio de regimes de exercício, regras minuciosamente detalhadas, vigilância constante, dieta e horários estritos. Hábitos e padrões de comportamento são destruídos e reconstruídos de novas maneiras.

Em segundo lugar, os corpos dos detentos são classificados e examinados cientificamente. "O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime"95.

Embora as tipologias dos primórdios da criminologia possam ter sido descartadas, os princípios de observação e avaliação prevalecem. Os prisioneiros são casos a ser estudados cientificamente, bem como corrigidos institucionalmente.

Veja-se que o objetivo do poder disciplinar não é reprimir os interesses ou desejos dos prisioneiros, mas construí-los como "normais"96. Ele não submete os corpos à violência externa da mesma maneira que o poder pré-moderno mutilou o corpo de Damiens.97 O poder coercitivo é internalizado e o prisioneiro torna-se seu próprio vigia. Embora no passado o corpo tenha sido também associado ao poder e à ordem social, Foucault afirma que o poder disciplinar nesse sentido é, em essência, um fenômeno novo, moderno.

95 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 40.ed.

Petrópolis: Vozes, 2012. p.37.

96 Para aprofundamento da matéria com pesquisa empírica no Brasil, ver: BATISTA, Vera Malaguti.

Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan:

ICC, 2003.

97 A famosa descrição detalhada da tortura e execução públicas feitas no início de "Vigiar e punir" é de Robert Damiens, condenado por regicídio em 1757. Foucault dá todos os detalhes horripilantes, tomados de relatos de testemunhas oculares, de como Damiens foi torturado com tenazes em brasa, enxofre, chumbo derretido, óleo fervente e resina ardente, e de como seu corpo foi depois puxado e esquartejado por quatro cavalos (FOUCAULT, op. cit., p.9-13).

[...] esse 'poder ideológico' é que, pelo menos em parte, vai ficar em suspenso e será substituído por uma nova anatomia política em que o corpo novamente, mas numa forma inédita, será o personagem principal. E essa nova anatomia política permitirá recruzar as duas linhas divergentes de objetivação que vemos se formar no século XVIII: a que rejeita o criminoso para 'o outro lado' – o lado de uma natureza contra a natureza; e a que procura controlar a delinquência por uma anatomia calculada das punições.

Um exame de nova arte de punir mostra bem a substituição da semiotécnica punitiva por uma nova política do corpo.98

Ao contrário de outras formas de coerção física, ele não mutila o corpo do criminalizado, mas molda-o de maneiras mais profundas e detalhadas.

Sob a humanização das penas, o que se encontra são todas essas regras que autorizam, melhor, que exigem a 'suavidade', como uma economia calculada do poder de punir. Mas elas exigem também um deslocamento no ponto de aplicação desse poder: que não seja mais o corpo, com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das marcas ostensivas no ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente, mas com necessidade e evidência no espírito de todos. Não mais o corpo, mas a alma, dizia Mably. E vemos bem o que se deve entender por esse termo: o correlato de uma técnica de poder. Dispensam-se as velhas 'anatomias' punitivas. Mas teremos entrado por isso, verdadeiramente, na era dos castigos incorpóreos. 99

Como ensina Cirino dos Santos:

Essa é a tática da disciplina, segundo Foucault, a técnica de construir aparelhos de eficácia ampliada, com corpos localizados, atividades codificadas e aptidões formadas, agindo como a engrenagem subordinada de uma máquina: a coerção permanente e o treinamento progressivo produzem a docilidade e a utilidade das forças individuais. A disciplina das forças, pela coerção individual e coletiva dos corpos, é o reverso técnico do pacto social:

constitui o poder disciplinar como "contra-direito", oposto à teoria do contrato, que explica as relações de domínio/subordinação da sociedade capitalista.100

Ao privar os internos de liberdade, a prisão moderna não pune apenas: ela produz criminalização.

98 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 40.ed.

Petrópolis: Vozes, 2012. p.98/99.

99 Ibid., p.97.

100 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.79/80.

Vera Malaguti Batista explica a relação ideológica existente entre Rusche e Foucault em "Vigiar e punir":

Foi Michel Foucault quem fez a leitura das disciplinas em Rusche para projetar esse livro dos anos 1930, atualizado nos anos 1960, para o futuro, para a torturante contemporaneidade, como diria Loïc Wacquant. Ao contrário da esquerda dos anos 1970 que ampliou o poder punitivo na ilusão de punir os poderosos, Foucault entendeu precocemente as novas estratégias de controle social. Só com sua formação marxista, a partir do livro de Rusche e especificamente naquela visão sobre a disciplina na prisão na economia política do corpo, é que Foucault pôde desvendar aquela microfísica do poder. Ele analisa o poder exercido como estratégia nas instituições disciplinares. Para além da luta de classes, ele trabalha com uma rede de relações tensas: dispositivos, manobras, táticas, técnicas e funções.101

O poder não está garantido pelo discurso formulado nas leis, mas sim pelo poder disciplinar de Foucault, que se expressa em todas as técnicas de controle social e disciplinamento. Este poder disciplinar é o que produz os desviados.