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1 DISCURSOS (DES)LEGITIMANTES DA PENA

1.2 DISCURSO CRÍTICO DA TEORIA DA PENA

1.2.1 Teoria negativa/agnóstica da pena de Eugenio Raúl Zaffaroni

A teoria negativa/agnóstica idealizada por Zaffaroni está pautada em dois arquétipos teóricos bem distintos: estado de polícia e estado de direito.72

71 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.88.

72 "Não é possível examinar o conceito de pena sem examinar bem mais de perto a função política do direito penal, o que não é factível sem aprofundar a ideia de estado de polícia e de estado de direito" (Ibid., p.93).

Sinteticamente, como polícia significa administração ou governo, estado de polícia seria aquele regido por decisões do governante, no qual uma classe social decidiria o que é melhor e expressaria tal vontade por meio de leis, exigindo-se, com isso, a submissão de todos aos interesses deste segmento social. Neste estado, portanto, existiria uma justiça substancialista, pois representativa dos anseios da classe hegemônica. Imperaria o paternalismo, ensinando e castigando os súbitos para que haja conformação aos ditames hierarquicamente superiores, chegando-se, até mesmo, a tutelar as ações autolesivas das pessoas.73

Por sua vez, o modelo ideal de estado de direito é concebido como sendo aquele em que a vontade a imperar seria a da maioria, sem se desprezar os anseios das minorias, sendo que ambas, maioria e minoria, têm de se conformar às regras previamente estabelecidas. Neste modelo, a justiça seria procedimental; todos são iguais, pois todos têm consciência para saber compreender o que é melhor e o que é possível. Tendo como norte a fraternidade, tal estado preza para que as decisões de conflitos afetem o menos possível a existência de cada e sua esfera personalista.74

O marco, então, da teoria negativa/agnóstica reside precisamente nesta permanente tensão entre o estado de polícia e o estado de direito, sendo que o primeiro quer a todo custo se expandir e o segundo luta para deter estas forças do primeiro que existem em seu próprio interior.

E é neste ponto que tal teoria é enaltecida pelo Professor Cirino dos Santos:

O objetivo de conter o poder punitivo do estado de polícia intrínseco em todo estado de direito, proposto pela teoria negativa/agnóstica da pena criminal – produzida pela inteligência criativa de EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e de NILO BATISTA, comprometidos com a democratização do sistema punitivo na periferia do sistema político/econômico globalizado –, justifica a teoria negativa/agnóstica da pena criminal como teoria crítica, humanista e democrática do Direito Penal, credenciada para influenciar projetos de política criminal e a prática jurídico-penal na América Latina. Afinal definir pena como ato de poder político, atribuir à pena o mesmo fundamento jurídico da guerra e rejeitar como falsas as manifestações manifestas ou declaradas da pena criminal significa ruptura radical e definitiva com o discurso de lei e ordem do poder punitivo.75

73 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.93/94.

74 Id.

75 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

p.474.

A teoria negativa/agnóstica despreza as teorias jurídicas positivistas alicerçadas nas funções declaradas da pena, pois acredita que sejam falsas ou não generalizáveis, e mostra, com a intenção de limitar o estado de polícia, suas funções ocultas e reais.

Não se transpõe este atoleiro com uma nova teoria punitiva, mas sim apelando para uma teoria negativa ou agnóstica da pena: deve-se ensaiar uma construção que surja do fracasso de todas as teorias positivas (por serem falsas ou não generalizáveis) em torno de funções manifestas.

Adotando-se uma teoria negativa, é possível delimitar o horizonte do direito penal sem que seu recorte provoque a legitimação dos elementos do estado de polícia próprios do poder punitivo que lhe toca limitar. A questão é como obter um conceito de pena sem apelar para as suas funções manifestas. A este respeito não é tampouco viável a tentativa de fazê-lo através de suas funções latentes, porque estas são múltiplas e nós não as conhecemos em sua totalidade.76

Com efeito, a teoria negativa/agnóstica idealizada por Zaffaroni entende a pena como um ato de poder, explicável politicamente e não juridicamente.77

Para chegar a essa constatação, o mestre argentino recupera o conceito de pena formulado por Tobias Barreto ainda no século XIX.

Segundo Tobias Barreto:

O conceito da pena não é um conceito jurídico, mas um conceito politico.

[...].

Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra.

Que a pena, considerada em si mesma, nada tem que ver com a ideia do direito, prova-o de sobra o facto de que ela tem sido muitas vezes applicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que ha de mais alheio á vida jurídica.78

Como já disse Nilo Batista, "Tobias Barreto se antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas concorrentes no Brasil de sua época"79

76 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.98.

77 Ibid., p.108.

78 BARRETO, Tobias. Estudos de direito: publicação posthuma dirigida por Sylvio Roméro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1892. p.177/178.

79 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.19.

Portanto, quando se atesta que a pena não possui conteúdo jurídico e sim político, seus laços são estreitados com a guerra, na medida em que ambas têm como fim infligir dor aos inimigos.

Sim, pois "a pena é uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara e nem restitui, nem tampouco detém as lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes"80.

É a esse respeito que adverte Salo de Carvalho:

Entendida como realidade política, a pena não encontra sustentação no direito, pelo contrário, simboliza a própria negação do direito.81 Pena e guerra se sustentam, portanto, pela distribuição da violência e imposição incontrolada de dor. Não obstante seu caráter incontrolável, desmesurado, desproporcional, e desregulado reivindica, no âmbito das sociedades democráticas, limite.82

Toda a punitividade da sanção criminal pode ser condensada em um discurso bélico, ou seja, na guerra contra o crime. Ressalte-se que na guerra não existem leis, ou melhor, existe a lei da guerra, segundo a qual tudo é permitido para aniquilar o inimigo.

A teoria aqui em comento fixa suas bases no binômio negativa e agnóstica, sendo seus conceitos diversos.

A ideia de ser negativa a teoria refere-se à rejeição às funções declaradas da pena veiculadas por meio do discurso oficial.

"Trata-se de um conceito de pena que é negativo por duas razões: a) não concede qualquer função positiva à pena; b) é obtida por exclusão (trata-se de coerção estatal que não entra no modelo reparador e nem no administrativo direto)"83.

Com efeito, as leis e suas sanções, no caso a criminal, não são isentas, muito embora tente-se atestar sua neutralidade em vista de sua pretensa abstração.

80 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.99.

81 Não deve ser confundida a concepção da pena como negação do direito com a ideia hegeliana de crime como negação do direito. Enquanto esta legitima a pena em consequência à prática de um não direito (crime), aquela atesta a deslegitimidade da sanção ante sua ausência de fundamentação jurídica.

82 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.145.

83 ZAFFARONI et al., op. cit., p.99.

O Estado exerce sua violência por meio do Direito, mormente o Penal, como forma de conformação de todos aos interesses dos que o dominam: a classe possuidora dos meios de produção.

Essa mesma classe que domina o Estado faz com que ele seja a representação e o guardião de seus interesses. Faz com que o Estado seja a força (i)legítima da violência para que seja imposto seu discurso de aparente e vendável consenso como forma de manutenção do poder.

Pretender conservar um poder exercido mediante um discurso falso, quando se sabe que este legitima – e sustenta – um poder diverso exercido por outros, que custa vidas humanas, que degrada um grande número de pessoas (tanto aquelas que o sofrem quanto as que o exercem) e que se trata de uma constante ameaça aos âmbitos sociais de auto-realização, é, a todas as luzes, eticamente reprovável.84 quanto à sua função, pois confessa não conhecê-la"85. Ou seja, não interessa para tal teoria saber identificar alguma finalidade real ou latente à pena.

Aqui reside talvez o embaraço deste elemento teórico muito bem apontado pela honestidade acadêmica do Professor Cirino dos Santos:

[...] o componente agnóstico do conceito, como renúncia de cognição das funções reais ou latentes do sistema penal, na medida em que indica desinteresse científico sobre realidades ocultas por detrás da aparência das instituições sociais, parece romper com a tradição histórica da Criminologia Crítica – nesse caso em contraste com a inegável natureza crítica do trabalho intelectual dos autores, que explicam a repressão penal pela seletividade fundada em estereótipos desencadeados por indicadores sociais negativos de pobreza, marginalização etc.86

84 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.75.

85 Ibid., p.99.

86 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

p.475.

Com efeito, a identificação das funções reais da pena é consequência necessária da aplicação do aporte da criminologia crítica na investigação dos verdadeiros interesses da classe dominante a usar a sanção corporal como mais um dado para compor a estrutura social de forma mais rentável possível economicamente.