2 PESQUISA EMPÍRICA
2.2 PENA INDIVIDUALIZADA? SEUS ASPECTOS PRÁTICOS
2.2.1 Primeira fase: a fixação da pena-base
2.2.1.1 Culpabilidade
A primeira ponderação que se deve ter neste momento é a de não se confundir a culpabilidade como um dos elementos do tipo de injusto e a culpabilidade como um dos critérios norteadores da fixação da pena-base.
E aí é que está a grande dificuldade.
A redação original da parte geral do Código Penal que remonta à década de 1940 estabelecia no art. 42 como circunstância judicial a "intensidade do dolo ou grau da culpa". Ocorre que a Lei n.o 7.209/1984 alterou a redação substituindo esta locução pela culpabilidade. Na exposição de motivos da referida Lei consta em seu item 50: "Preferiu o Projeto a expressão 'culpabilidade' em lugar de 'intensidade do dolo ou grau de culpa', visto que graduável é a censura, cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade da pena".
Ocorre que ainda assim presente está uma "impropriedade terminológica", segundo ensina Cirino dos Santos, "porque o juízo de culpabilidade, como elemento
do conceito de crime, não pode ser, ao mesmo tempo, simples circunstância judicial de informação do juízo de culpabilidade"230.
Com efeito, tem-se propugnado que a culpabilidade como circunstância judicial seria diversa da culpabilidade como um dos elementos do conceito analítico de tipo de injusto na medida em que naquela não se verifica a existência ou não da culpabilidade (elemento do crime) e sim, seu grau. Ou seja, para condenar deve-se verificar a existência da culpabilidade (com seus elementos imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do ato e exigibilidade de comportamento diverso), do contrário a absolvição seria a conclusão. Agora, no momento de se fixar a pena-base o que se analisaria é o grau dessa culpabilidade já reconhecida (alta, média ou baixa).
A culpabilidade normativa (derivada da teoria finalista da ação) parece estar sempre sendo questionada, num eterno estado de crise. Mais difícil ainda é esta tentativa de divisão em momentos de existência e grau de reprovação.
Adverte Zaffaroni:
Além disso é realmente difícil estabelecer o grau de reprovabilidade;
definitivamente, este costuma resultar quase tão arbitrário quanto a perigosidade e outros similares. Na prática, a reprovabilidade nunca foi critério útil à quantificar a pena, e a pobreza dogmática nesta matéria é a melhor prova de que sempre se ocultou uma falência dogmática ou discursiva, dificilmente desculpável. Violaram-se frequentemente as regras da culpabilidade de fato ou
"pelo injusto" (caindo na culpabilidade de "caráter" ou pela "condução da vida"), defendeu-se um conceito diferente de culpabilidade para a quantificação penal (de "fato" na teoria do delito, de "caráter" na teoria da pena), as consequências da reincidência não podiam ser justificadas etc.231
A par dessa tensão, inevitável é que se proponha tal distinção, sob pena de recair num mero discurso de truísmo.
230 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p.569.
231 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. 5.ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2010. p.260/261.
Deve-se, assim, tentar restringir a análise da culpabilidade, como circunstância judicial, ao seu grau, vez que "constatada a possibilidade e consequentemente o delito, opera na aplicação da pena, medindo o grau (quantum) de reprovabilidade, dimensionando a culpabilidade da conduta"232.
Veja-se quão importante é o domínio técnico da circunstância culpabilidade, pois, em 21,7% das sentenças em que a pena-base foi fixada acima do mínimo legal, ela esteve presente.
CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL APONTADA COMO DESFAVORÁVEL
PERCENTUAL DE INCIDÊNCIA NAS SENTENÇAS QUE FIXARAM A PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL (%)
Culpabilidade 21,70
QUADRO 2 - REPRESENTATIVIDADE DA CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL CULPABILIDADE
FONTE: TJ/PR
Porém, infelizmente, por vezes "frases-padrão" são utilizadas como discurso retórico que tem por finalidade tão somente aumentar a pena do condenado nesta primeira fase.
Constatou-se que a maioria das sentenças que reconheceu a culpabilidade como circunstância desfavorável ao réu utilizou hipóteses inerentes ao tipo de injusto.
GRÁFICO 31 - CULPABILIDADE INERENTE AO TIPO PENAL FONTE: TJ/PR
232 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4.ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.48.
Quando se fala em hipótese inerente ao tipo de injusto está a se dizer que o fato reconhecido pelo juiz para considerar grave a culpabilidade do condenado por si só já fazia parte das próprias elementares típicas ou já havia sido reconhecido o mesmo fato para caracterizar alguma outra circunstância qualificadora, agravante ou causa de aumento de pena. Também foi enquadrada nesta categoria a ausência de qualquer esclarecimento quanto a algum fato em específico a autorizar a elevação da pena-base, tendo o magistrado se restringido a apenas ressaltar a existência dos elementos da culpabilidade como formadora do conceito analítico de tipo de injusto (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude do ato e exigibilidade de comportamento diverso).
Apenas a título de ilustração, foi dito que "o réu praticou fato reprovável e com consciência de sua ilicitude, agindo com alto grau de reprovabilidade"233.
Culpabilidade: é elevado o grau de reprovabilidade da conduta praticada pela ré, que possuindo consciência do caráter ilícito de sua conduta, e podendo se determinar de modo diverso, não o fez, inferindo-se a intensidade do dolo de seu modus operandi.234
Culpabilidade: é elevado o grau de reprovabilidade da conduta praticada pelo acusado, que possuindo consciência de seu caráter ilícito, e podendo se determinar de modo diverso, não o fez, inferindo-se a intensidade de seu dolo de seu modus operandi, pois abordou a vítima em horário e local central, de grande movimento, demonstrando ousadia.235
Houve também casos em que fora feito juízo de valor acerca do tipo de injusto em abstrato ao qual o réu estava sendo condenado, em especial os crimes envolvendo drogas, sendo verificado unicamente o juízo de reprovação que foi feito acerca da substância droga sem se minuciar sequer qual a espécie de droga fora apreendida. O simples fato de haver condenação por tráfico já serviu para justificar o aumento da pena-base, desconsiderando-se que isso já havia sido levado em apreço pelo legislador ao estabelecer a sanção penal em abstrato.
233 Autos de numeração 2012.9238-4 – 11.a Vara Criminal.
234 Autos de numeração 2009.0012029-3 – 1.a Vara Criminal.
235 Autos de numeração 2010.0002130-0 – 1.a Vara Criminal.
Culpabilidade: o grau de culpabilidade do réu frente à censurabilidade da conduta é relevante, vez que tinha o potencial conhecimento de sua ilicitude, e exigindo-se-lhe comportamento diverso, perfeitamente possível na espécie, não o adotou, inferindo-se a intensidade do dolo do grau de reprovabilidade ínsito à traficância, uma das piores mazelas que afligem a humanidade.236
Nesse aspecto, a culpabilidade deve ser deixada de lado como critério a orientar a quantificação da pena, pois trata-se de herança positivista237 que serve unicamente para causar desconhecimento técnico, que tem como condão a ausência de fundamentação válida por parte dos julgadores, na medida em que "como medida da pena criminal", diz Cirino dos Santos, "pressupõe as determinações psíquicas e emocionais do cérebro do Juiz"238.