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NASCIMENTO DO CAMPO

4.5. Principais visões do mainstream acadêmico acerca da RSE

4.5.3. A abordagem estratégica

A abordagem estratégica, característica da Social Issues Management, emerge quase simultaneamente à abordagem contratual (início dos anos 80), e procura fornecer ferramentas práticas de gestão capazes de melhorar o desempenho ético e social da firma. Segundo Jones (1996), as justificativas para a RSE apresentadas por esta abordagem baseiam-se em três argumentos principais, todos de caráter utilitário (vide Quadro 7, a seguir): a) a empresa pode tirar proveito das oportunidades de mercado decorrentes de transformações nos valores sociais, se souber antecipar-se a eles66; b) o comportamento socialmente responsável pode garantir-lhe uma vantagem competitiva67; c) uma postura proativa permite antecipar-se a novas legislações, ou mesmo evitá-las.

66 Como sugere o primeiro exemplo citado no Quadro 7: “A ética que se vende”.

67 É o arrazoado dos outros dois exemplos: “A era da ética nas empresas”, que aventa a possibilidade

de uma ISO da ética, e “Em busca das maçãs podres”, segundo o qual o “ingrediente” ética costuma agradar a consumidores e investidores.

Quadro 7: O argumento moral utilitarista, ou a ética como fonte de lucro

A ética que se vende

Revista Exame | 13/06/2001 Carin Homonnay Petti

Os europeus, que criaram o conceito de livre mercado, estão dando os primeiros sinais de uma nova realidade: o mercado ético. Cada vez mais consumidores europeus estão boicotando companhias consideradas irresponsáveis na relação com fornecedores, empregados ou o meio ambiente. Na Grã-Bretanha, por exemplo, 44% da população evitou no ano passado a compra de produtos de fabricantes vistos como não-éticos, segundo uma pesquisa do Instituto Mori. Uma pesquisa publicada pelo jornal Daily Express, feita com 150 altos executivos, indica que a preocupação com os ataques de ativistas de direitos humanos, ambientalistas ou grupos de defesa do consumidor já é muito maior que a dor de cabeça provocada por sindicalistas ou governantes.

"Com o crescimento das grandes corporações, a população passou a cobrar das empresas o que antes só era considerado tarefa do Estado", diz Mark Goyder, diretor do instituto de pesquisas britânico Centre for

Tomorrow’s Company. A empresa que fechar os olhos para a responsabilidade social pode pagar caro, afirma Goyder. "As preocupações da comunidade de ontem são as preocupações do consumidor de hoje e dos

acionistas de amanhã."

Há dois modos de ver essa nova realidade. Um deles é que "a empresa irresponsável pode sofrer boicotes, ter

a reputação arranhada, perder participação no mercado e valor nas bolsas", como diz Elena Bonfiglioli,

diretora da Corporate Social Responsibility - Europe, uma entidade empresarial que promove a responsabilidade social. O segundo modo é enxergar as oportunidades de mercado. Nos últimos três anos, as vendas dos chamados produtos éticos cresceram 60%, de acordo com a Fairtrade Labeling Organization International, uma organização sediada na Alemanha que concede um selo de "comércio justo" a fabricantes de 14 países europeus e também do Japão, do Canadá e dos Estados Unidos. (...) O mercado ético ainda é apenas um nicho, mas seu crescimento é assombroso. No ano passado, as vendas de produtos com certificado da FLO atingiram US$ 190 milhões de dólares em 13 países europeus. Na Grã-Bretanha, as vendas de produtos como café, banana, biscoito, chocolate e mel éticos aumentaram 51%, para US$ 47,5 milhões de dólares - apesar de os produtos do gênero serem até 25% mais caros. (...)

A era da ética nas empresas

Revista Gestão e RH | 07/08/2004 Cristina Ramalho

Hoje, para que uma empresa consiga credibilidade junto ao mercado, não basta só auferir qualidade a seus produtos ou serviços. Embora esse fator seja primordial e o público consumidor esteja cada vez mais exigente nesse sentido, a conquista da credibilidade é mais ampla. Ela engloba outros itens relacionados ao portfólio de uma empresa – e a ética é, notadamente, um desses principais itens.

"Estamos entrando na ‘era da ética’. O sistema econômico brasileiro passou por um primeiro movimento rumo à modernidade, à busca da qualidade, trazendo para o país a série ISO 9000. Depois foi a vez da conscientização sobre a preservação do meio ambiente, que estabeleceu a ISO 14000, e agora acredito que presenciamos a chegada da ‘ISO-ética’”. profetiza Joaquim Manhães Moreira, sócio da Manhães Moreira

Advogados Associados. (...)

Em busca das maçãs podres

Revista Exame | 22/03/2007 Melina Costa

Uma pesquisa realizada há três anos pela consultoria KPMG demonstra que funcionários são autores da maior parte das fraudes empresariais -- quase 60% dos casos, de acordo com os entrevistados. Segundo a Association of Certified Fraud Examiners, organização que combate crimes do colarinho branco nos Estados Unidos, as fraudes corroeram cerca de 5% do faturamento das empresas americanas no ano passado. Corporações que implantaram as chamadas linhas éticas diminuíram o prejuízo pela metade. Além disso, essas companhias tiveram outros ganhos, mais difíceis de ser medidos. Acrescentar o ingrediente ética à imagem costuma agradar consumidores e, especialmente, investidores. As empresas que compõem o índice Dow Jones de Sustentabilidade -- no qual os códigos de conduta contam pontos -- apresentam desempenho consistentemente superior às demais. Nos últimos cinco anos, por exemplo, as ações dessas empresas tiveram valorização 3% maior que as de empresas convencionais. (...)

Os dois primeiros argumentos são basicamente estratégias de marketing, e, assim como o terceiro, endossam a visão neoclássica das finalidades corporativas, segundo a qual a única função legítima da empresa é perseguir seus próprios interesses: crescimento e lucratividade. Esta perspectiva, que também pode ser chamada de utilitária ou instrumental, defende a idéia de que, a médio e longo prazos, o que é bom para a sociedade é bom para a empresa – sugerindo, de maneira implícita e correlata, que aquilo que é bom para a empresa também o é para a sociedade, postulado fundamental das teses econômicas neoclássicas68.

A abordagem da Social Issues Management às questões pertinentes ao campo da ética empresarial traduz o reconhecimento de que a empresa não existe num ambiente composto apenas por consumidores, produtores e concorrentes, mas também por cidadãos que evoluem dentro de uma ordem política organizada (GENDRON, 2000). É imprescindível, portanto, de acordo com a abordagem utilitária, que a empresa leve em consideração essa ordem política e social quando do planejamento e implementação de suas estratégias, e procure adequar-se a ela (ainda que forma meramente mimética).

Durante muito tempo, o mundo dos negócios e as escolas de Administração negligenciaram o contexto sociopolítico em suas análises: apenas o contexto econômico importava. Entretanto, a evolução das correntes teóricas no campo da gestão estratégica, e mesmo em economia69, trouxe consigo uma concepção mais integradora dos aspectos políticos e sociais do ambiente onde está inserida a organização. A escola da Social Issues Management é um nítido exemplo dessa mudança, desde quando reconhece a dimensão social, ou cidadã, do “consumidor”, e o caráter evolutivo das instituições – embora este reconhecimento repouse menos sobre preocupações morais do que sobre um claro pragmatismo.

A produção acadêmica vinculada a esta escola propõe uma aproximação estratégica e sistemática da gestão de questões sociais, de modo a melhor atingir os objetivos da organização (LOGSDON, 1988). Conseqüentemente, grande ênfase é dada à capacidade de aproveitar oportunidades e de minimizar riscos, através da pronta identificação e resposta a

68 Em 1953, Charles Wilson, então presidente da General Motors, foi sabatinado pelo Senado norte- americano em virtude de sua recente indicação como Secretário da Defesa. Indagado se, uma vez no cargo, iria privilegiar os interesses do país ou os interesses da GM, Wilson respondeu com uma frase que tornou-se clássica, e que ainda provoca tanto o riso como a indignação: “- Nunca pensei que

pudesse haver diferença, pois o que é bom para o país é bom para a GM, e vice-versa.” (FINLEY,

1988).

69 A esse respeito, ver as abordagens institucionalistas e neoinstitucionalistas em Economia, por

exemplo: North (1990), sobre a importância das instituições para o desenvolvimento das sociedades; Ostrom (1990), sobre o bem comum e os mecanismos que condicionam a ação coletiva; Ménard (2000), sobre as formas híbridas de governança, a meio caminho entre Estado e mercado.

questões de cunho ético e social suscetíveis de terem impacto sobre a empresa – habilidade essa que, por sua vez, resultaria na realização de maiores ganhos. Não por acaso, esta é a abordagem que está por trás dos numerosos, e nunca conclusivos, estudos que tentam correlacionar RSE e lucratividade (WADDOCK e GRAVES, 1997; BERMAN, WICKS e KOTHA, 1999; MCWILLIAMS e SIEGEL, 2000; MCWILLIAMS, SIEGEL e WRIGHT, 2006).

Ao revisitar as perspectivas teóricas do campo que pesquisa as relações entre ética, empresas e sociedade, pretendemos recuperar, de forma sucinta, distinções importantes entre essas abordagens. A tarefa coloca-se como necessária, na medida em que as justificativas apresentadas para a prática da RSE parecem padecer atualmente de um ecletismo que atropela, e desfigura, certos pressupostos elementares.

Embora as definições de RSE variem de acordo com o contexto histórico e social em que são formuladas, e sobretudo em função dos interesses e da posição ocupada no espaço social pelo grupo que as formula - o qual tende a ressaltar determinados aspectos e princípios em detrimento de outros - existe um razoável entendimento, ou “consenso mínimo”, hoje em dia, quanto ao fato de que uma empresa socialmente responsável precisa demonstrar três características básicas: a) reconhecer o impacto que causam suas atividades sobre a sociedade na qual está inserida; b) gerenciar os impactos econômicos, sociais e ambientais de suas operações, tanto no nível local como global; c) realizar esses propósitos através do diálogo permanente com suas partes interessadas, muitas vezes através de parcerias com outros grupos e organizações (ETHOS, 1999 a 2007; WBCSD, 1999; 2000; OCDE, 2000; COMISSÃO EUROPÉIA, 2001; WORLD WILDLIFE FUND – WWF, 2001; WORLD BANK, 2002; ISO, 2004).

Ora, optar por um modelo de gestão que se baseia na participação democrática dos diversos grupos de interesse de uma empresa implica, evidentemente, o reconhecimento - e a tradução em termos concretos - de uma vontade coletiva mais ampla e representativa do que aquela ditada simplesmente pelo retorno financeiro e pelo curto prazo. Todavia, esse imperativo lógico da responsabilidade social pode ser (e é) facilmente acusado de entrar em contradição com pressupostos fundamentais da teoria econômica neoclássica, tais como os direitos de propriedade, a separação entre o que é atribuição do Estado ou da iniciativa privada, e a dinâmica natural – “mão invisível” - do mercado.

Não obstante a incompatibilidade de origem entre maneiras diametralmente opostas de compreender o mundo, vários autores partidários do viés normativo, ou do contratual, não

hesitam em fazer uso de proposições utilitárias para reforçar seus argumentos. Contudo, existe certamente uma diferença abissal, irreconciliável, entre considerar que:

ƒ O comportamento X é intrinsecamente bom, desejável, conducente ao bem comum, e portanto imperativo, do ponto de vista moral – independentemente de suas conseqüências;

ƒ O comportamento X é atualmente legítimo, e decorre de acordos e contratos sociais, explícitos ou implícitos, fundados nas noções de justiça e igualdade;

ƒ O comportamento X é instrumental para a consecução dos objetivos últimos do sujeito, e portanto útil apenas enquanto cumprir esta função.

Soam de certo modo inconsistentes os discursos – inclusive os acadêmicos! – onde, à afirmação dos “direitos legítimos das partes interessadas”, sejam justapostas demonstrações de quanto o diálogo com esses atores contribuiu para os resultados financeiros da companhia... Ao assimilar a RSE a uma ferramenta estratégica, os adeptos da abordagem utilitária reafirmam a primazia da finalidade econômica da empresa – algo que vai em sentido contrário às teorias contratuais, as quais tentam relativizar essa finalidade única em benefício de uma concepção mais ampla e democrática do papel da empresa na sociedade.

Por outro lado, para os defensores da vertente normativa, um ato não pode ser motivado simultaneamente por considerações éticas, fruto de uma racionalidade substantiva, e por considerações econômicas, típicas de uma racionalidade instrumental. Sendo assim, afirmar que um ato ético (no caso, a RSE) é do interesse econômico da firma não faz sentido. Do ponto de vista filosófico, esta é uma afirmação contingente, e não necessária – irrelevante, portanto, para aquelas justificativas para a RSE que buscam respaldo teórico no campo de uma ética das convicções. Entretanto, resta saber também se faz algum sentido falar em imperativos morais no nível organizacional, estando a empresa inserida num sistema social capitalista onde as regras do jogo já estão dadas a priori.

Na verdade, como diz Jones (1996), o discurso sobre a RSE, sejam quais forem as justificativas teóricas sob as quais se apresente - visto que na prática todas acabam por reforçar-se mutuamente, apesar das divergências de fundo - comporta uma forte dimensão ideológica, a qual possui conseqüências materiais importantes para todos os atores envolvidos, na medida em contribui para legitimar e manter a hegemonia do mercado sobre diversas questões de natureza pública e política – ponto este que discutiremos em maior detalhe no Capítulo 5.

A idéia de um “capitalismo benigno” mistifica as verdadeiras forças que impulsionam a atividade empresarial, assim como as pressões - muito concretas e urgentes - por eficiência e lucratividade a que firmas e gestores estão submetidos (JONES, 1996). Mais que isso, contribui para reforçar as teses da ideologia neoliberal, as quais preconizam a iniciativa individual e privada como resposta à ineficiência burocrática do Estado e também como prevenção à politização de conflitos sociais (PAOLI, 2002). Em suma, o tão debatido conceito de RSE acaba servindo para que se evite qualquer questionamento efetivamente radical, e conseqüente, a respeito das relações entre empresas e sociedade, porque desloca o debate para o nível organizacional – quando o que este debate de fato pressupõe, e exige, é que se coloque em causa a própria ordem institucional, em todos os níveis: político, econômico, social e cultural.