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ATORES E PODERES NA ORDEM GLOBAL CONTEMPORÂNEA

2.1. O mundo em que vivemos: retrato em chiaroscuro

Desde meados dos anos 70, a força crescente dos processos de expansão da democracia representativa, as transformações tecnológicas e a globalização econômica têm gerado inúmeras oportunidades e contribuído para a melhoria de vida de uma significativa parcela da população mundial. Tais avanços, contudo, precisam ser cotejados com as persistentes e sistemáticas contradições relativas à desigualdade social, à degradação ambiental e à instabilidade política que afetam ainda a maioria dos habitantes do planeta (MARTIN e SCHUMANN, 1997; RODRIK, 1997; RAMONET, 1998; 2003; GRAY, 1999; SANTOS, 2000; CASTELLS, 2002; HELD e MCGREW, 2001; 2002; SKLAIR, 2002; STIGLITZ, 2003; BECK, 2003; BROWN, 2003; SINGER, 2004; DUPAS, 2005).

Conforme enfatiza o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, o mundo em que vivemos neste início do século XXI é ainda um mundo profundamente dividido. O abismo que separa suas margens representa um desafio fundamental para a comunidade humana e, se boa parte desse desafio é de natureza essencialmente ética, não há como enfrentá-lo senão pela única via capaz de dar alguma concretude aos ideais, que é a via da política. Segundo Nelson Mandela, “a pobreza em massa e a desigualdade obscena são pragas tão terríveis do nosso tempo – tempo em que o mundo se gaba de conquistas extraordinárias na ciência, na tecnologia, na indústria e na acumulação de riquezas – que deveriam ser colocadas no mesmo nível da escravidão e do apartheid enquanto males sociais.”14 (MANDELA, 2005). Paradoxalmente, enquanto por um lado a prosperidade e a saúde das pessoas ao redor do globo têm melhorado em termos absolutos (a renda per capita anual média passou de US$ 5.236 dólares PPP15 em 1975 para US$ 7.376 dólares PPP em 2001, e a expectativa média de vida passou de 61 anos para 67 anos no mesmo período), por outro lado as desigualdades

14 Em inglês no original; tradução minha.

15 O termo Purchasing power parity (paridade do poder de compra), ou PPP, é utilizado em economia

para expressar a idéia de que com uma determinada unidade de poder de compra, por exemplo, um dólar ou um real, é possível adquirir a mesma cesta de bens e serviços em qualquer lugar do mundo. Serve para comparar os preços médios entre países, ou ao longo de uma série histórica.

entre países ricos e pobres, que já eram enormes, estão se ampliando. Hoje em dia, alguém vivendo em Zâmbia tem menos chances de chegar aos 30 anos do que alguém nascido na Inglaterra em 1840. Os 2,5 bilhões de pessoas sobrevivendo com menos de US$ 2 dólares por dia – 40% da população mundial – ficam com 5% da renda global, ao passo que os indivíduos que compõem a faixa dos 10% mais ricos, quase todos vivendo em países desenvolvidos, ficam com 54% dela (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD, 2005)

Dentro de um mesmo país, também, as discrepâncias são muitas vezes alarmantes (vide Quadro 1). No Brasil, por exemplo, a exclusão social cresceu 11% entre 1980 e 2000, revertendo tendência verificada entre os anos 60 e 80, quando houve queda de 13,6%. Mais de 25% dos brasileiros vivem em condições precárias, sem renda, emprego ou acesso à educação, e 42% dos 5.500 municípios do País têm alto índice de exclusão social. No outro extremo, apenas 5 mil famílias brasileiras concentram um volume patrimonial equivalente a 42% de todo o nosso PIB, ou Produto Interno Bruto. (POCHMANN et al., 2003; 2004).

Quadro 1: A injustiça social brasileira

Pobreza

53,9 milhões de pessoas pobres* (31,7% da população)

*renda domiciliar per capita menor que meio salário-mínimo por mês

21,9 milhões de pessoas muito pobres/indigentes** (12,9% da população)

** renda domiciliar per capita menor que um quarto de salário-mínimo por mês

Educação

14,6 milhões de pessoas analfabetas (11,6% da população) 9,6 milhões delas moram nas cidades

6,4 anos é a média de estudo

Saúde

a taxa de mortalidade infantil é de 25,1 para cada 1 mil crianças nascidas vivas

a taxa de mortalidade por causas externas (trânsito, violência) é de 71,7 é para cada cem mil habitantes

Moradia

12,4 milhões de brasileiros (7,1%) vivem em favelas

41,8 milhões de pessoas não contam com acesso simultâneo a serviços de coleta de lixo, água e esgoto 17 milhões vivem em domicílio superlotados (mais de três pessoas por dormitório)

Segurança

29,1 vítimas de homicídio para cada cem mil habitantes em 2003 (contra 11,4 em 1980) Taxa de vítimas de homicídios por capitais (por cem mil habitantes):

Vitória = 78,2 Maceió = 56,9 Brasília = 39,1 Recife = 76,7 São Paulo = 51,7 Salvador = 29,3 Rio de Janeiro = 62,6 Belo Horizonte = 51,6

O problema não está na presença da pobreza16 – ela existe desde tempos imemoriais, como atesta a passagem bíblica segundo a qual Jesus teria dito: “Os pobres sempre estarão entre nós” (NOVO TESTAMENTO, MATEUS 6:26). Mas ao passo que tal frase foi usada, durante séculos, para justificar a “naturalidade” da pobreza, hoje ela funciona antes como um chamado para que se diga “não” às forças, modelos e sistemas que criam a pobreza (segundo a própria Teologia da Libertação, os pobres não precisam de caridade, mas de justiça). A recusa da tese da inevitabilidade da injustiça social, a indignação que o fenômeno provoca nos dias atuais, e as modificações por que passaram as atitudes da sociedade em relação aos pobres, durante os últimos 150 anos, são mais um fruto da modernidade (MOORE JR., 1987). As disparidades mencionadas (isto é, pobreza de renda e pobreza de capacidades), aliadas eventualmente a fatores socioculturais de natureza étnica ou religiosa, constituem sem dúvida um terreno fértil para os conflitos e a violência, tanto no plano internacional como dentro dos territórios nacionais. Quando a integração social é patológica - porque impõe limites arbitrários em torno dos quais se constroem as categorias dos “incluídos’ e dos “excluídos” - ela é inevitavelmente produtora e reprodutora de conflitos. Durante os anos 80 e 90, dezenas de países registraram um enorme progresso na abertura de seus regimes políticos e na expansão da democracia, mas apesar disso as atuais tensões econômicas e sociais têm produzido um mundo crescentemente fragmentado (CASTELLS, 2002; PNUD, 2002).

Desde 1990, já pudemos testemunhar o genocídio em Ruanda, as guerras civis no coração da Europa, os ataques do 11 de setembro nos Estados Unidos, a escalada global do terrorismo e do crime organizado, a ocupação do Afeganistão e do Iraque por potências ocidentais, e os retrocessos no equilíbrio precário do Oriente Médio. Um dos resultados da interação perversa entre pobreza e conflitos violentos tem sido o incremento dos fluxos migratórios provenientes do Terceiro Mundo em direção aos países mais desenvolvidos (embora 60% da migração internacional seja ainda Sul-Sul17). Esses deslocamentos, marcados pelo sofrimento e pela exploração dos que se arriscam a tentá-los, representam não apenas uma tentativa de fuga das regiões conturbadas, mas também a busca por trabalho e por condições de vida mais dignas,

16 A definição de pobreza tem sido objeto de abordagens conflitantes entre si. Enquanto alguns

pesquisadores tentam estabelecer um “patamar de pobreza” a partir de critérios quantitativos, outros preferem defini-la de maneira qualitativa, isto é, vista em relação aos modelos de existência presentes no contexto onde ela ocorre. Segundo Amartya Sen, a pobreza é uma privação das capacidades básicas que possuem as pessoas. “Os pobres não podem participar adequadamente das atividades na

comunidade, ou livrar-se da vergonha pública que decorre da incapacidade de satisfazer convenções.” (SEN, 2002).

pelo menos no plano da esperança (PNUD, 2005).

Movimentos migratórios semelhantes ocorrem freqüentemente no interior de um mesmo país, em conseqüência das desigualdades regionais. No Brasil, este é o caso do histórico fluxo de nordestinos para o Sudeste, atraídos pela expansão industrial, ou para a Amazônia, atraídos pelos projetos agropecuários, minerais e industriais, e, mais recentemente, da região Sul para o Centro-Oeste, devido à expansão da fronteira agrícola. Essas migrações respondem pelo processo de esvaziamento da população rural brasileira, hoje reduzida a 22% da população total. Segundo dados do IPEA, a relação entre êxodo rural e falta de acesso aos serviços básicos da cidadania é decisiva: os indicadores educacionais do meio rural brasileiro, por exemplo, são ainda mais precários que os do meio urbano e um dos piores da América Latina (CAMARANO e ABRAMOVAY, 1999). O resultado é que os grandes centros metropolitanos, seja aqui ou no exterior, incham desordenadamente, esparramando-se por milhares de quilômetros quadrados como enormes organismos vivos - cada vez mais incapazes de suprir as necessidades de emprego, moradia, saneamento, saúde, transporte, segurança e lazer de seus milhões de habitantes.

Todo esse desenraizamento e precariedade geram um sentimento difuso de impotência para alterar o curso dos impasses contemporâneos, dando lugar a uma ansiedade que é constantemente agravada pelos imperativos de flexibilização do mundo do trabalho, pela primazia dos mercados globais sobre os interesses locais, pela transformação do mundo em permanente espetáculo midiático e de consumo, pelo esgarçamento dos laços de pertença à comunidade, pela privatização do conceito de cidadania e pela erosão da credibilidade dos Estados nacionais e dos partidos políticos enquanto mediadores das demandas sociais e das aspirações coletivas. As exortações relativas à lei e à ordem emergem hoje, nas sociedades, como as palavras de ordem mais capazes de catalisar a insegurança geral, reificando temores e criando culpados - ora a criminalidade, ora os imigrantes, ora os adeptos desta ou daquela religião, ora os indivíduos “sem”: sem-terra, sem-teto, sem-documentos, etc (DUPAS, 2003; SENNETT, 2004). Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, qualquer limite imposto à liberdade individual passa a ser sentido como um primeiro passo para o totalitarismo, e o individualismo narcísico afirma-se e difunde-se - graças em grande parte às novas tecnologias de informação e comunicação - como o único caminho para a inclusão e o sucesso: “Just do it”, “Você merece”, “A vida é agora”.

Por fim, sob o ponto de vista ambiental, todas as pesquisas recentes concordam em afirmar que nos últimos 50 anos os ecossistemas foram mais rápida e extensivamente modificados

pela ação do homem do que em qualquer intervalo de tempo equivalente na história, em geral para suprir a demanda crescente por alimentos, água potável, madeira, fibras e combustível. Essa transformação do planeta contribuiu para o bem-estar de muitos e para o desenvolvimento econômico, através do incremento da agricultura, da criação de rebanhos, da geração de energia e do acesso à irrigação, dentre outros fatores. Contudo, nem todas as regiões e populações beneficiaram-se nesse processo - na verdade, muitos foram e continuam sendo profundamente prejudicados, especialmente as populações mais pobres (BROWN, 2003; MILLENIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005; SIMMS, 2005).

Alguns locais afetados pelas mudanças ecossistêmicas são altamente vulneráveis e pouco equipados para enfrentá-las. A desertificação, por exemplo, afeta os meios de sustento de milhões de indivíduos, inclusive um grande número de pessoas pobres que habitam zonas áridas. A queda da produção pesqueira de captura, decorrente da extinção de muitas espécies de peixes, vem reduzindo aquilo que constituía uma fonte barata de proteína nos países em desenvolvimento. Ademais, muitas alterações na gestão dos ecossistemas envolveram a privatização de recursos que anteriormente eram de acesso comum: terra cultivável, pastos, florestas, rios e lagos. Sendo assim, as populações mais carentes tanto podem perder o acesso a determinados recursos ou meios de vida, como podem ser afetadas pelas externalidades associadas a transformações ambientais que, em muitos aspectos, revelam-se assustadoramente irreversíveis, sobretudo no que diz respeito às mudanças climáticas e à perda de biodiversidade (MILLENIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005; GORE, 2006; INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE - IPCC, 2007).

O Relatório de Avaliação de Ecossistemas do Milênio, publicado em 2005 com o apoio das Nações Unidas, revelou que 2/3 dos serviços prestados pelos ecossistemas18 estão sendo degradados ou usados de maneira insustentável. Tendo em vista que são justamente os recursos e serviços oferecidos pela natureza que possibilitam todas as atividades produtivas, seu valor econômico é imenso – aliás, pode-se dizer que literalmente não têm preço, uma vez que não possuem substitutos. Apesar disso, os agentes econômicos desconsideram o valor de tais bens (já que eles também “não têm dono”) e comportam-se como incontroláveis máquinas produtoras de externalidades negativas. Na composição do preço da gasolina, por exemplo,

18 Eis alguns exemplos dos inúmeros serviços prestados pelos ecossistemas naturais, e dos quais

dependemos: provisão de água e ar limpos; polinização das plantações e dispersão das sementes; proteção contra os excessos climáticos e os raios ultra-violetas; controle de pragas e de organismos transmissores de doenças; manutenção da biodiversidade; provisão de valores estéticos e recreativos, etc.

não é computado o custo da poluição atmosférica gerada pelo uso desse combustível, ou o custo das doenças respiratórias resultantes da mesma poluição, ou ainda o custo psicológico do congestionamento exasperante que impera nas grandes cidades. No preço de um empreendimento turístico não entra o custo do desflorestamento exigido para sua construção, ou o dos prejuízos causados à paisagem e à comunidade vizinha. Como conseqüência do cálculo distorcido quanto ao real custo de tudo o que consumimos, o capital natural do planeta está sendo velozmente degradado e liquidado, vítima do desperdício e do uso irresponsável de recursos finitos (HAWKEN, 1993; DALY, 1996).

A tensão entre crescimento econômico e proteção do meio ambiente constitui, na verdade, o nó górdio da problemática ambiental, e o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu como uma tentativa de resolver essa dicotomia19. Em sua formulação mais amplamente disseminada e conhecida, ele é definido como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades” (RELATÓRIO BRUNDTLAND, 1987). Mas, em qualquer análise mais aprofundada, as características da noção de desenvolvimento sustentável que primeiro saltam aos olhos são: a aceitação universal do conceito e, paradoxalmente, a falta de consenso sobre o que ele significa (NOBRE e AMAZONAS, 2002). Assim, um pouco como a felicidade, que todos almejam mas poucos concordam sobre o que seja (definição) ou como alcançá-la (método), o desenvolvimento sustentável é um construto ambíguo, de significado complexo e contestado – ou seja, é mais uma plataforma política de cunho conciliatório, que busca forjar elos entre interesses radicalmente divergentes.

É compreensível que, dadas as incontáveis definições existentes para a sustentabilidade, persistam controvérsias sobre o significado exato do termo. A temática é atravessada por uma profunda cisão, a qual manifesta-se naturalmente tanto no campo teórico como na prática. De um lado, temos a corrente da economia ecológica, que enxerga o sistema econômico como subsistema de um todo maior que o contém, fato que impõe portanto restrições inescapáveis e absolutas à sua expansão. Essa visão é geralmente referida como sustentabilidade forte. De outro, temos a corrente da economia ambiental, segundo a qual os recursos naturais não

19 A preocupação da comunidade internacional com os limites ecológicos do desenvolvimento data da

década de 60, e levou a ONU a promover em 1972 a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo. No mesmo ano, Dennis Meadows e os pesquisadores do Clube de Roma publicaram o estudo Os Limites do Crescimento. Em 1973 o conceito de eco-desenvolvimento foi formulado por Maurice Strong, e em 1987 a Comissão Mundial da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento apresentou o documento intitulado Nosso Futuro Comum, o qual veio a tornar-se mais conhecido como Relatório Brundtland. É neste relatório que aparece a definição de desenvolvimento sustentável acima citada, a qual veio a tornar-se clássica.

representam, a longo prazo, um limite à expansão da economia, vez que podem ser ultrapassados indefinidamente através do progresso científico e tecnológico. Essa concepção ficou conhecida como sustentabilidade fraca (ROMEIRO, 2003). Cumpre reconhecer, entretanto, que até agora o resultado da acirrada disputa política para determinar o que devam ser o conceito e a prática da sustentabilidade tem apontado para um claro predomínio da economia.

Face ao panorama global esboçado até aqui – um cenário economicamente muito desigual, politicamente instável e ambientalmente insustentável - diversos setores da sociedade têm apontado para a necessidade urgente de que a busca desenfreada por crescimento e competitividade que caracterizam o sistema econômico dominante seja minimamente equilibrada através de um comprometimento igualmente rigoroso com a boa governança, com a inclusão social e com a preservação ambiental (NELSON, 1998; ANNAN, 1999; 2005; WORLD BUSINESS COUNCIL FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT – WBCSD, 1999; 2000; COMISSÃO EUROPÉIA, 2001; IPCC, 2001; 2007; SEN, 2002; WORLD BANK, 2002; GEORGE, 2004; POCHMANN et al., 2005; INSTITUTO ETHOS DE EMPRESAS E RESPONSABILIDADE SOCIAL – ETHOS, 1999 a 2007; PNUD, 2005; STERN REVIEW, 2006).

O papel do setor privado no enfrentamento dessas questões tem sido debatido, nos últimos anos, com uma freqüência e intensidade nunca vistas antes. As discussões acerca da responsabilidade social das empresas, as quais se davam de forma rara e marginal até a década de 70, tornaram-se hoje onipresentes, seja nos ambientes corporativos ou nos organismos internacionais, e tanto entre movimentos da sociedade civil quanto nos corredores acadêmicos. Entretanto, mais que a quantidade, é a qualidade do debate que mudou. Aparentemente, vem se consolidando um amplo entendimento no sentido de que, enquanto ator social excepcionalmente poderoso e influente, a empresa deve não apenas zelar pelo melhor desempenho possível no exercício de suas atividades, mas também colocar-se formalmente a serviço do bem comum, de modo a remediar as falhas de funcionamento do mercado e o suposto encolhimento (ou incapacidade) do Estado.

Desde que a onda de privatizações e a abertura de mercados ocorridas nas duas últimas décadas promoveram uma transferência maciça de ativos do setor público para o setor privado, as empresas e suas respectivas lideranças passaram a desempenhar um papel cada vez mais crucial – e questionável – na determinação dos rumos que deve tomar o desenvolvimento social, econômico e ambiental ao redor do mundo (KORTEN, 1995;

PAOLI, 2002; DUPAS, 2003; 2005). A face “socialmente engajada” desse papel tem se manifestado de diversas maneiras: vai desde as iniciativas mais benevolentes e publicizadas, geralmente voltadas para atividades filantrópicas ou programas estruturados de investimento social, até a participação ativa das empresas nos debates sobre a formulação de novas políticas públicas, passando finalmente por aquelas influências e pressões menos conhecidas, nem sempre meritórias, que se dão sob a forma de lobby.

Entretanto, se o conceito de responsabilidade social empresarial exibe conotações bem- intencionadas e positivas na superfície, ele não deixa de carregar implicações políticas e ideológicas importantes, em níveis mais profundos. Quando se promove a RSE, a idéia de que a empresa privada é, ou deveria ser, o principal agente das mudanças sociais é também afirmada com freqüência (vide Quadro 2) e, nesse caso, cabe evidentemente indagar qual é o tipo de ordem social que está implícita nessa visão de mundo, e onde, numa escala de importância, são colocados os outros atores envolvidos num tal cenário. Afinal, essa é uma discussão que se trava no contexto de um simultâneo descredenciamento do Estado e de uma aplaudida evolução da sociedade civil, “dinâmica”, “proativa”, “empreendedora”.

Quadro 2: A empresa privada como novo bastião da ética

Trecho da entrevista intitulada “A ética bem vivida dá lucro”, concedida pela Profa. Dra. Maria Cecília Coutinho de Arruda, coordenadora do Centro de Estudos de Ética nos Negócios da FGV-EAESP, vice-presidente da International Society of Business Ethics and Economics – ISBEE, ao Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial - ETCO,em março de 2004.

Pergunta: Então quer dizer que o Estado teria de contribuir para incentivar atitudes éticas?

Resposta: O Estado em nada contribui para a ética. A legislação é feita de forma antiética. O excesso de

taxações é um exemplo. O pagamento de impostos, de tão elevados, chega a ser um socialismo. Só que não estamos desfrutando dos benefícios do socialismo. Se assim fosse, a saúde seria ótima, a educação seria ótima e a segurança também. As próprias empresas teriam condição de trabalhar melhor. O Estado, de certa forma, está forçando a falta de ética das empresas.

Pergunta: Como desatar esse nó?

Resposta: A iniciativa vai partir das empresas. De onde é que surgem hoje os princípios morais? A família,

que é o pilar da sociedade, está muito fragilizada. A Igreja, ou as igrejas, não são suficientemente ativas, embora digam de maneira muito superficial o que deve nortear o caráter das pessoas daqui para frente. As escolas estão fraquíssimas. Cuidam de conhecimento, mas não estão formando cidadãos. Pelo menos na maioria das escolas. O Estado, por sua vez, não é modelo. Se olharmos para os grandes líderes políticos, com raras exceções, não são modelos de conduta. Os meios de comunicação apresentam modelos que são muito fora da realidade. O que sobrou? A empresa. A pessoa entra na empresa e aprende disciplina, respeito, responsabilidade, hierarquia, criatividade, aprende a ter iniciativa. Amadurece. Daí, a conclusão: