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A RSE COMO FORMA DE REGULAÇÃO: GOVERNANÇA COMPARTILHADA OU PRIVATIZAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO ?

5.5. Os críticos e os céticos em relação à RSE

a) Os críticos

A oposição que fazem os defensores da “mão invisível do mercado” a qualquer tipo de envolvimento empresarial sistemático com questões sociais e ambientais já é bastante antiga. Afirmam eles que existe um antagonismo irreconciliável, sob o ponto de vista econômico, entre, por um lado, mercados livres e auto-regulados, no qual agentes maximizadores de suas próprias utilidades podem alocar recursos da maneira mais eficiente, e, por outro lado, o desvio de função implícito nas pretensões da RSE, acusadas de entrar em contradição com pressupostos básicos da teoria econômica neoclássica, tais como os direitos de propriedade e a separação entre o que é atribuição do Estado ou da iniciativa privada.

A posição defendida por Milton Friedman é ainda a que melhor ilustra o ponto de vista deste grupo:

“A responsabilidade social da empresa consiste em aumentar seus próprios lucros (...). A maior parte daquilo que se deblatera a propósito de responsabilidade da empresa não passa de tolices. Para começar, apenas indivíduos podem ter responsabilidades; uma organização não pode tê-las. Eis portanto a questão que devemos nos colocar: será que os gerentes - desde que permaneçam dentro da lei - possuem outras responsabilidades no exercício de suas funções além daquela que é aumentar o capital dos acionistas? Minha resposta é não, eles não têm.”89 (FRIEDMAN, 1970).

Segundo Friedman, qualquer desvio de tempo, esforços e recursos para áreas não diretamente relacionadas ao negócio em si fatalmente provoca uma queda nos lucros, e portanto nos dividendos, constituindo assim uma transferência indevida de riquezas – pertencentes por direito aos acionistas - para outros grupos. A única alternativa à perda de lucratividade, diz ele, seria repassar ao público em geral (isto é, externalizar ) os custos adicionais incorridos nesse processo, o que tampouco atende aos interesses da sociedade.

As objeções dos críticos não são, porém, apenas de caráter econômico ou de viés neoliberal. O que também se argumenta, principalmente entre aqueles posicionados mais à esquerda no espectro político, é que qualquer decisão relativa a políticas sociais tomada por empresas é ilegítima e configura uma privatização da esfera pública (PAOLI, 2002). Ressalta-se, nesse sentido, a natureza pública das questões atinentes à RSE, e o fato de que as mesmas não devem ser tratadas em fóruns privados, mas sim transferidas para instâncias onde o efeito cumulativo das preferências individuais possa se manifestar (como o mercado), ou para instâncias de expressão coletiva do julgamento (como o processo político democrático). Se as dinâmicas do livre-mercado geram desequilíbrios, é papel do Estado, e não das companhias privadas, corrigir seus defeitos. Ademais, os críticos questionam a competência e a legitimidade que teriam os gestores e empresários para efetuar escolhas e tomar decisões no campo das políticas sociais (JOSEPH e PARKINSON, 2002).

Os críticos duvidam, ainda, que de fato exista hoje um “amplo consenso social” favorável à RSE, ou mesmo uma sólida parcela da opinião pública esperando sinceramente que as companhias endossem o desenvolvimento sustentável e administrem seus negócios em estreito e permanente “diálogo” com uma multidão de partes interessadas. Julgam que se algumas grandes empresas acabaram por acatar os preceitos da RSE talvez isso se deva mais à necessidade de acalmar ONGs barulhentas e grupos de ativistas anti-capitalistas e anti- globalização (WOLF, 2001); e que a adoção do discurso da RSE por parte de empresas menores ou secundárias talvez seja apenas mais uma prova concreta da inclinação para o isomorfismo mimético que grassa no ambiente corporativo (MEYER e ROWAN, 1992; CALDAS e VASCONCELOS, 2002).

Além disso, a simples tentativa de aplicar os mesmos padrões de RSE internacionalmente pode funcionar como um tipo de barreira alfandegária, advertem os críticos, e trazer conseqüências danosas principalmente para os países em desenvolvimento, os quais verão esvair-se sua vantagem competitiva se lhes for exigido que adotem níveis de proteção ambiental ou trabalhista mais elevados do que os previstos pelas leis locais (WOLF, 2001; JOSEPH e PARKINSON, 2002).

Por fim, um dilema adicional é apontado pelos críticos: para as firmas que adotam voluntariamente a RSE (sejam quais forem suas motivações), torna-se importante assegurar que suas concorrentes também o façam, de modo a garantir igualdade de condições e um mesmo patamar de competitividade entre os “jogadores”. Isso pode incentivar as primeiras a

pressionarem por formas mais rígidas, jurídicas, de regulação, elevando os custos de transação do cenário como um todo (WOLF, 2001).

As implicações dos argumentos expostos, segundo Joseph e Parkinson (2002), são claras. Para os críticos da RSE: a) empresas racionais deveriam compreender que a causa da RSE é intrinsecamente nociva aos seus interesses e ao próprio funcionamento do mercado; b) conseqüentemente, o Estado não tem por que adotar políticas de incentivo à RSE, nem facilitar a imposição de formas de regulação civil sobre as empresas; c) podem haver circunstâncias quando o mais sensato, do ponto de vista da reputação, e portanto do negócio, seja atender minimamente às demandas relativas a questões socioambientais, sem contudo imaginar que, em parceria com as ONGs, deva ser criado um “novo tipo” de capitalismo. Essas restrições são, como se pode facilmente depreender, geralmente representativas de pontos de vista conservadores.

b) Os céticos

O pressuposto fundamental entre os partidários deste grupo é que, num sistema onde

legalmente se exige que os gestores considerem os interesses dos sócios e acionistas como

tendo precedência sobre quaisquer outros, não existe nenhuma possibilidade de que o comportamento empresarial venha - por iniciativa própria – a alterar-se o suficiente para responder aos atuais desequilíbrios socioambientais, assegurando assim a realização do interesse público. Sem um sistema de governança corporativa mais pluralista, sem que se repense radicalmente o papel, os direitos e deveres das empresas na sociedade, e sem mecanismos de accountability mais eficazes, qualquer impulso rumo à RSE estará fadado a ficar muito aquém do que requer o bem comum (KORTEN, 2002; PAOLI, 2002; SKLAIR, 2002).

Qual seja a melhor maneira de atingir tais transformações é motivo de divergência entre os céticos, cujas opiniões refletem a variedade de matizes presente num leque ideológico que vai da social-democracia ao anarquismo. Mesmo assim, parece possível classificar a maioria dos céticos em duas grandes vertentes principais, de acordo com Joseph e Parkinson (2002). A primeira delas apóia a implementação de um modelo de governança corporativa baseado no reconhecimento igualitário de todas as partes interessadas: é o que tem sido chamado de “democracia de stakeholders” (MATTEN e CRANE, 2005). O conjunto de interesses dos acionistas passaria a ser apenas um, dentre vários outros. O modelo em questão tende a ser justificado, alternativa ou simultaneamente, como mais eficaz que o modelo centrado unicamente nos acionistas, como eticamente mais defensável, e como mais democrático.

A segunda vertente engloba aqueles céticos partidários de um pluralismo menos radical, que não pretendem substituir a maximização dos lucros enquanto objetivo operacional das empresas, mas que afirmam ser necessário impor limites mais severos às formas como esse objetivo é perseguido. É uma posição essencialmente regulatória, que não visa transformar a natureza do capitalismo, mas aperfeiçoá-la via legislação (JOSEPH e PARKINSON, 2002). Segundo a síntese da posição cética efetuada por Joseph e Parkinson (2002), qualquer ilusão de que a RSE possa desenvolver-se no âmbito de um sistema dominado, em última análise, por leis centradas quase que exclusivamente nos direitos e interesses dos proprietários e acionistas está fadada, de antemão, a ver-se frustrada. Por sua própria natureza, motivações comerciais que visem estritamente o lucro não serão jamais capazes de conduzir ao equilíbrio de resultados e de participação que pretende o pluralismo. Por outro lado, também é irreal imaginar que instrumentos de regulação civil, apenas, possam exercer controles efetivos. Enquanto assuntos relativos à RSE e à reputação talvez possam talvez ser relevantes para as grandes companhias, as quais gozam de alta visibilidade, não decorre daí que o mesmo se aplique a todos os setores e níveis de atividade empresarial. As ONGs certamente não dispõem dos recursos, ou da disposição, para atuar como monitoras permanentes do desempenho social e ambiental de todo o setor privado. Os investidores institucionais, por sua vez, têm sido rotineiramente criticados por sua incapacidade de detectar a tempo sequer as gigantescas fraudes financeiras, para as quais já existem critérios institucionalizados e legais de controle e de avaliação. Quanto aos consumidores, embora existam evidências de maior conscientização, preocupação e ativismo em prol de um mercado global mais ético, nada indica que sejam de tal monta a superar o clássico problema inerente à ação coletiva: boicotar uma firma, por exemplo, só vale a pena se houver certeza de que outros também o farão, ao invés de “pegar carona” no sacrifício pessoal de quem boicota.