• Nenhum resultado encontrado

A RSE COMO FORMA DE REGULAÇÃO: GOVERNANÇA COMPARTILHADA OU PRIVATIZAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO ?

5.6. Limites e contradições da RSE como forma de regulação flexível

Como vimos, o controle da RSE tem sido historicamente moldado por formas de regulação flexível, ou civil. A grande maioria dos governos capitalistas e democráticos contemporâneos tem preferido privilegiar as iniciativas voluntárias do setor privado nessa área - postura essa que é (compreende-se) bastante bem-vinda entre os empresários. Por outro lado, tem sido igualmente incentivada pelos governos a criação de uma variada estrutura de regulações do tipo flexível, propostas ora por ONGs, ora por setores empresariais, ora por parcerias público- privadas, ora por organismos internacionais. Se toda essa comoção tem desviado tempo e

recursos das “verdadeiras” funções empresariais, como alertava Friedman, não há como negar porém que, graças à RSE, abriu-se por outro lado todo um novo filão de marketing, treinamento, estratégia corporativa e consultorias...

Mas a realidade desnudada por numerosos estudos que buscam avaliar os resultados concretos desse suposto engajamento empresarial não é nada animadora. A justificativa comumente oferecida para motivar os empresários rumo à RSE é instrumental e pragmática: apela-se para o seu “egoísmo esclarecido”, afirmando que o mercado recompensará os conscienciosos, e punirá os inconseqüentes (SUSTAINABILITY / INTERNATIONAL FINANCE CORPORATION-IFC, 2002; SWIFT e ZADEK, 2002). Ora, como demonstra Doane (2002), à parte o fato de que o mero voluntarismo não tem se mostrado capaz de atender ao interesse público, existem ainda pelo menos dois problemas com a justificativa que o apóia.

Em primeiro lugar, os mecanismos de mercado dependem de consumidores bem informados, mas o fato é que o “consumidor ético” perfeitamente informado não existe. Uma das muitas pesquisas de opinião sobre o assunto revela, por exemplo, que 89% dos consumidores britânicos preocupam-se com questões sociais e ambientais, mas apenas 18% refletem isso ocasionalmente em suas decisões de compra, e menos de 5% faz disso um critério sistemático (DOANE, 2002). Ainda que o engajamento dos consumidores com questões ambientais, condições de trabalho, comércio justo, realização de testes em animais e outros temas semelhantes tenha ganhado maior relevo e atenção nos últimos anos, o consumo efetivamente ético, ou consciente, permanece insignificante em termos de fatia de mercado, pois essa preocupação crescente não parece traduzir-se em comportamentos de compra concretos. Vários autores relatam uma lacuna, ou disparidade, entre atitude e comportamento (CARRIGAN e ATTALLA, 2001), e salientam que a maioria das iniciativas que adotam selos éticos (tais como alimentos organicamente produzidos, madeira legalmente derrubada, produtos livres de trabalho infantil, etc) responde por menos de 1% do mercado.

Pode-se imaginar que esse percentual seja ainda mais baixo no Brasil, dadas as carências econômicas e de acesso à informação que atingem a população. Com efeito, pesquisas realizadas pelo Instituto Akatu90, entidade sem fins lucrativos dedicada à causa do consumo

90 O Akatu é um caso emblemático das “afinidades eletivas” que prosperam entre empresas

transnacionais, governo, think tanks conservadores e ONGs a serviço da causa globalizante neoliberal. Criado em 2001, “no âmbito do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, para educar e

mobilizar a sociedade para o consumo consciente” (INSTITUTO AKATU, 2007), sua lista de

“parceiros e apoiadores” nesta nobre cruzada pareceria paradoxal se não fosse previsível: Fundação Kellog, Fundação BankBoston, Fundação Itaú Social, HP, Instituto Wal-Mart, Banco Real ABN

consciente, revelam que apenas 15% dos brasileiros declararam ter, no ano anterior, “deixado de comprar produtos ou falado mal de uma empresa como forma de puni-la”(AKATU, 2005). Contudo, a pesquisa não apresenta dados que informem quão sistemático é de fato tal comportamento; além disso, o impacto da decisão de “não comprar” é obviamente bem superior ao do mero “falar mal”, e a pesquisa não diz que percentual corresponde a cada uma dessas opções (vide Figura 14).

Figura 14: Punição de empresas tidas como irresponsáveis – 2005 no mundo (em % da população)

Fonte: Instituto Akatu, 2005.

No tocante à discrepância entre atitude e comportamento apontada pelos estudos anteriormente mencionados, a pesquisa também mostra que o mesmo percentual de consumidores brasileiros (15%) “pensaram em fazer algo mas não fizeram”, como se pode ver na Figura 15, a seguir (AKATU, 2005).

Amro, Unibanco, Nestlé, Gerdau, Grupo Pão de Açúcar, Rede Globo, Fundação Belgo Mineira, Philips, Nextel, etc. A publicação da pesquisa 2005, por exemplo, foi patrocinada pelo Carrefour. Tendo em vista quem financia o Akatu, é impossível não pensar na frase de Upton Sinclair: "It is

Figura 15: Punição de empresas tidas como irresponsáveis – Brasil - evolução (%)

Fonte: Instituto Akatu, 2005.

Em segundo lugar, e intimamente conectado ao item anterior, os incentivos oferecidos pelo mercado demonstram ser, portanto, claramente insuficientes (DOANE, 2002). Em contrapartida, não é preciso procurar muito para constatar que empresas francamente alheias ao interesse público continuam a crescer e prosperar, como é o caso do setor bancário, supermercadista ou da grande mídia. No Brasil, as companhias que atuam nesses setores fazem grande alarde de seus projetos assistencialistas, de suas doações, das praças ou comunidades carentes que “adotam”, e ponto final: isso passa por sua “responsabilidade social” (novamente, um bom exemplo desse tipo de discurso inócuo, o qual substitui o reconhecimento de conflitos e obrigações pela exibição de voluntarismos e benemerências genéricos, mais adequados a folhetos publicitários, é dado pelo Quadro 8).

Por fim, mesmo que um bom desempenho social e ambiental traga benefícios a longo prazo para uma firma (proteção dos ativos naturais, força de trabalho qualificada, consumidores e comunidades satisfeitos, etc), esses incentivos não se encaixam no horizonte de resultados a curto ou curtíssimo prazo exigido pelos mercados financeiros. Sendo assim, como esperar que a justificativa do “egoísmo esclarecido” cumpra o que promete, quando as demandas a curto prazo do mercado oferecem incentivos perversos para que não se cuide da sustentabilidade ou do interesse coletivo (OSTROM, 1990; DOANE, 2002)?

Um exemplo que aponta nessa mesma direção nos é dado pelo artigo publicado recentemente por Carlos Lessa, ex-diretor do BNDES, comentando a hesitação da Petrobras em levar adiante o projeto de exploração de gás firmado com a PDVSA (a companhia estatal de petróleo venezuelana) em 2005. Hoje a empresa brasileira está temerosa dos riscos políticos envolvidos numa tal empreitada, depois da amarga experiência sofrida com a estatização da

exploração e produção de gás na Bolívia, em 2006, e prefere posicionar-se como um ator cuja prioridade é competir no mercado global, ao invés de trabalhar por uma suposta estratégia de integração sul-americana. Segundo Lessa (2007), altos executivos da Petrobras corriqueiramente definem a missão da companhia como sendo “servir a seus acionistas”, e o que a direção da Petrobras pretende com esse discurso é que os acionistas estrangeiros – mais de 40% do capital da companhia está em ADRs 91 no exterior – sintam-se priorizados. Ora, prossegue o autor, a Petrobras “é uma instituição pública com forma empresarial que depende e deve estar a serviço do desenvolvimento nacional. Não é uma empresa “solta”, cuja referência administrativa e teleológica seja a cotação de suas ações na bolsa de Nova Iorque.” (LESSA, 2007). Mas vê-se bem que na prática a teoria é outra, como diz a sabedoria popular. Ou seja, certas “partes interessadas” são mais interessantes do que outras, e mais determinantes na escolha dos rumos tomados por uma grande companhia, apesar dos discursos em contrário veiculados por ela.

Ainda de acordo com Doane (2002), o fortalecimento do papel dos governos na regulação da RSE promoveria: a) um nivelamento do terreno no qual competem as empresas, eliminando o problema do “carona”, ou free-rider; b) uma simplificação dos processos, tendo em vista a panóplia de normas, certificações, diretrizes, modelos e questionários aos quais as empresas têm precisado adequar-se; c) uma redução nos custos associados ao atendimento dessa multiplicidade de regulações civis; e d) maior clareza quanto às expectativas da sociedade em termos de desempenho socialmente responsável.

Existem portanto, no nosso entender, argumentos de peso em favor de uma intervenção mais firme do setor estatal no campo da RSE. Embora o fio condutor de nossas inquietações seja, acima de tudo, o bem comum, assim como a constatação de uma simultaneidade preocupante entre “a redução de políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos sociais, de um lado, e a abertura do espaço às ações privadas, de outro” (PAOLI, 2002), acreditamos que a própria iniciativa privada poderia beneficiar-se de uma maior institucionalização e do controle estatutário sobre determinadas questões hoje a cargo da regulação civil.

91 Um American Depositary Receipt (ou ADR) representa propriedade de ações de uma empresa

estrangeira que é negociada nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Diversas companhias têm suas ações negociadas através de ADRs, possibilitando aos investidores estadunidenses comprar ações de firmas do exterior sem efetuar transações além-fronteiras. Cada ADRs é emitido por um banco depositário dos EUA, tem seu preço estabelecido em dólares americanos, paga dividendos também em dólares US e pode ser negociado exatamente como as ações das empresas baseadas nos Estados Unidos.

Mas o principal argumento atrela-se, a nosso ver, ao princípio segundo o qual compete aos governos democráticos a inalienável responsabilidade de prover uma estrutura social capaz não apenas de proteger os direitos dos cidadãos, mas de garantir também suas necessidades básicas (BOBBIO, 2000; 2001). Num sistema capitalista, o governo precisa assegurar, pelo menos, a voz e a autonomia daqueles que o mercado exclui. O meio ambiente, a saúde, a educação, a sobrevivência material, a igualdade de oportunidades – são, todos eles, assuntos relacionados ao bem comum. E no entanto o setor privado vem sendo encarregado, mundo afora, de assumir um papel que não lhe compete na condução desses problemas, amparado (ou confrontado) apenas pelo poder variável de setores mais, ou menos, organizados da sociedade civil. Acreditamos que há, nessa configuração de forças e de atores, um vácuo de extraordinária importância a ser preenchido pelo Estado: não como simples animador ou mediador de outros grupos, parcerias e iniciativas, mas como o ator investido de maior legitimidade para definir, e perseguir, o que seja o interesse público.