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NASCIMENTO DO CAMPO

4.1. Ética empresarial: a construção de um campo científico

4.1.1. Níveis de análise e tipos de abordagem da ética nos negócios

A ética nos negócios, enquanto disciplina acadêmica formal, compreende três níveis de análise, os quais, conforme mencionamos acima, são determinados pela amplitude do foco – micro, meso ou macro - que se queira dar às questões estudadas (GOODPASTER, 1992):

ƒ Nível individual – tem como objeto de estudo a conduta moral das pessoas no universo do trabalho e das relações de mercado. Em que medida o auto-interesse e outras motivações pessoais são equilibrados, ou não, por uma preocupação com a justiça e com o bem comum? Que tipo de mecanismos e processos favorecem, ou dificultam, a consciência ética individual no exercício de um cargo? As análises neste nível privilegiam os valores, as escolhas e o caráter dos indivíduos enquanto agentes morais.

ƒ Nível organizacional – propõe-se a analisar a cultura e as políticas vigentes em organizações específicas. Diz respeito àquela “consciência moral” coletiva, tanto tácita como explícita, que toda organização possui – seja devido à existência de um planejamento estratégico formal ou por ter desenvolvido, informalmente, ao longo do tempo, um padrão de comportamento consistente e identificável que ela põe em prática no desempenho rotineiro de suas atividades.

ƒ Nível do sistema social – tem como foco as ideologias e os tipos de arranjos institucionais prevalentes num determinado contexto social mais amplo - seja de âmbito regional, nacional ou global - e investiga de que modo esses padrões sociais, políticos e econômicos influenciam ou determinam o quadro de referência ético de indivíduos e organizações.

A subdivisão da disciplina ética nos negócios em três níveis distintos mas inter-relacionados não pretende ser apenas uma conveniência didática, mas antes uma indicação de que existem objetos legitimamente passíveis de indagação ética em cada um dos três níveis. Sugere também que se presume haver um certo grau de liberdade, ou uma margem de escolha, em cada um deles, isto é: os valores éticos encontrados em um dos níveis não são meras funções determinísticas dos outros níveis. Considera-se que o agente ou o sistema em questão seria capaz de atuar diferentemente – por exemplo, melhor, ou de forma mais justa. Se o foco é a organização, por exemplo, julga-se que suas políticas e sua cultura interna (seus “valores”) não são pura e simplesmente uma função direta dos valores do sistema social circundante, ou dos indivíduos que nela trabalham - embora evidentemente existam significativas relações causais entre esses fatores.

Existem basicamente três maneiras de abordar as questões levantadas em cada um dos níveis de análise mencionados, quais sejam: 1) descritiva; b) normativa; e c) analítica (GOODPASTER, 1992). Um interesse de cunho descritivo leva o pesquisador a focar as crenças e comportamentos morais de pessoas, organizações ou sociedades tais como se

manifestam concretamente, identificando o que os agentes julgam “certo” ou “errado”, e não a validade dessas crenças. Um interesse normativo, por outro lado, implica a busca por um conjunto de princípios e normas defensável, capaz de guiar a tomada de decisão individual ou institucional, seja através do estabelecimento de critérios abstratos (honestidade, transparência, precaução, igualdade, redução de danos, obrigação fiduciária, etc) ou de guias padronizados pragmáticos (característicos de uma orientação mais gerencial). Por fim, um interesse analítico pela ética nos negócios traz consigo a opção por uma reflexão aprofundada e crítica acerca das dimensões descritiva e normativa, e indaga-se sobre as razões e conexões entre ambas – motivo pelo qual consiste num discurso metalingüístico sobre a própria disciplina, ou seja, é uma meta-ética dos negócios.

Figura 12: Ética nos negócios: níveis de análise e tipos de abordagem

Fonte: Goodpaster, 1992.

Assim, por exemplo, as denúncias de irregularidades, quando feitas por membros da própria organização (whistle-blowing)50, ilustram a questão da ética do indivíduo face às normas organizacionais, e pode ser examinada tanto descritivamente (através de estudos de caso), normativamente (via argumentos morais) ou analiticamente (indagando-se sobre o sentido e as justificativas de tal prática). Algumas outras problemáticas que prestam-se a análises nesse nível incluem: corrupção, fraude, acesso a informações privilegiadas, liberdade de expressão, assédio, privacidade, alteração indevida de dados e procedimentos, discriminação, etc. Por sua vez, as preocupações relativas à natureza dos produtos e serviços, contratação e remuneração

50 Relembrando apenas dois episódios de grande repercussão nesse terreno: o escândalo da Enron veio

à tona devido às denúncias feitas à imprensa por uma funcionária graduada da companhia, e os abusos cometidos por militares americanos contra prisioneiros de guerra no cárcere de Abu Ghraib, no Iraque, também só chegaram ao conhecimento público graças ao relato de um soldado.

Descritiva Normativa Analítica

Ética do sistema

Ética do indivíduo Ética da organização

da mão-de-obra, honestidade nas práticas de marketing, relações com o poder público e cuidados com o meio ambiente estão mais estreitamente relacionadas à ética da organização frente às suas várias partes interessadas, e podem igualmente ser estudadas quer sob um ponto de vista descritivo, normativo ou analítico. No nível do sistema social, algumas das questões mais candentes (embora não sejam as únicas) têm a ver com a capacidade mesmo do capitalismo gerencial contemporâneo garantir – mais e melhor do que outras formas de economia política - o bem comum e a justiça social; novamente, tais temáticas permitem tanto abordagens descritivas como normativas ou analíticas.

De todo modo, é muito difícil encontrar produções discursivas no campo da ética nos negócios, ou mais especificamente da RSE, que ultrapassem a concepção moderna do indivíduo (ou organização) racional e soberano, empenhado em efetuar escolhas e tomar decisões sob constrangimentos de ordem variada. Muito raramente têm lugar neste campo análises mais estruturais, onde seja de fato introduzida a dimensão política das questões e propostas compreensões alternativas dos mercados - crítica esta que iremos desenvolver no transcurso deste trabalho, sobretudo no Capítulo 5.