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A RSE COMO FORMA DE REGULAÇÃO: GOVERNANÇA COMPARTILHADA OU PRIVATIZAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO ?

5.1. Bem comum, interesse público e formas de regulação

Uma das questões mais importantes da atualidade, por todos os motivos que viemos elencando até aqui, é até que ponto as grandes empresas atuam – ou se podem efetivamente atuar – em benefício do interesse coletivo, ou do chamado bem comum70. Esta certamente não é uma questão nova, mas tem adquirido maior urgência nas três últimas décadas. Também é verdade que a própria existência ou não de um interesse coletivo objetivo e passível de conhecimento, distinto da agregação de interesses individuais que somente cada ser humano pode definir, continua sendo objeto de uma complexa e sempre renovada discussão (PETRELLA, 1996; BOBBIO, 2000; GIANNETTI, 2002; SEN, 1999; 2002), que não pretendemos adentrar aqui. Limitaremos-nos a assinalar o fato - sobejamente demonstrado na vida cotidiana e ao longo da História – de que o bem que é comum às pessoas (ou sociedades) A e B nem sempre é comum a B e C, donde a tentativa de estabelecer de forma generalizante e definitiva o que constitua o bem em questão pode provocar divergências capazes de, eventualmente, desembocar até mesmo em confrontos graves.

Feita esta ressalva, o princípio filosófico do bem comum é todavia da maior importância para as Ciências Políticas, o Direito e as Ciências Sociais, uma vez que dele decorrem inúmeras conseqüências práticas para o convívio em sociedade. De acordo com Martins Filho (2000), citando Tomás de Aquino, "Bem é aquilo que a todos apetece". Assim, o bem seria o fim buscado pelo indivíduo, porque o atrai; ora, prossegue o autor, quanto mais perfeito e universal se afigure o bem, a mais pessoas atrairá. Segundo esta visão (essencialmente aristotélica), o bem comum nada mais seria, por conseguinte, do que o próprio bem particular, almejado por cada indivíduo, convertido na soma total de todos os interesses privados dos indivíduos membros de uma comunidade (MARTINS FILHO, 2000).

"A alma do bem comum é a solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva da natureza

70 A não ser confundido com os conceitos de bens (ou recursos) comuns e bens públicos em

social do ser humano. Há três estados naturais do homem, que representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e cada nacionalidade." (LIMA, apud MARTINS FILHO, 2000).

Donde se depreende que o bem comum seria resultado daquele estado superior no qual os seres humanos vivem e convivem em agrupamentos sociais pautados pela solidariedade. Ainda segundo o mesmo autor, uma noção afim à de bem comum é a de interesse público. Ao princípio ético do bem comum corresponde o princípio jurídico do interesse público. Interesse é a relação existente entre uma pessoa e um bem, na qual este se mostra capaz de satisfazer alguma necessidade ou anseio daquela.

“ (...) Ou seja, o interesse é a ponte entre o sujeito e o bem, que os relaciona entre si, onde o sujeito busca aquilo que reputa ser um bem capaz de satisfazê- lo. (...) Seguindo nessa esteira, temos que, quando o sujeito que busca um bem é uma comunidade, está-se diante do que se denomina de interesse público, que aparece como a relação entre a sociedade e o bem comum que ela almeja, perseguido por aqueles que, na comunidade, estão investidos de autoridade” (MARTINS FILHO, 2000).

Outra forma de compreender o bem comum é enquanto ideal utilitarista, representado pela idéia do “maior bem possível, para o maior número possível de indivíduos”. Alguns autores consideram que este deveria ser o objetivo supremo do Estado, ao qual caberia reconhecer, proteger e expandir as liberdades políticas (freedoms) e as liberdades substantivas (liberties) das pessoas. O bem comum seria, então, a soma total das condições de vida que permitem aos indivíduos usufruir das citadas liberdades do modo mais pleno e direto (SEN, 2002). Outros autores, John Rawls em particular, fazem uma distinção entre a busca ativa do Bem, isto é, a busca por um mundo melhor, como quer que se defina tal construto; e a busca do Justo, isto é, a busca por uma infra-estrutura equânime e democrática (KORSGAARD, 1992).

Halpin e Teixeira, ao proporem uma agenda política para o pensamento progressista nos Estados Unidos, argumentam que garantir o bem comum significa: 1) colocar o interesse coletivo acima do auto-interesse egoísta e das exigências de grupos sectários; 2) trabalhar em prol de condições sociais e econômicas que beneficiem a todos; 3) promover uma ética pessoal, governamental e empresarial de responsabilidade e de solicitude; 4) criar uma estrutura governamental mais transparente e honesta, alimentada por formas de cidadania participativa e engajada; 5) assumir, no plano individual, aquelas responsabilidades que

devem ser compartilhadas por todos, ou seja, auxiliar os excluídos, proteger os recursos naturais e deixar para as gerações futuras um legado de oportunidades, ao invés de carências e problemas (HALPIN e TEIXEIRA, 2006).

Para fins de argumentação, partiremos aqui do pressuposto de que a realização do bem comum passa necessariamente pela criação e consolidação, por vias democráticas, do bem estar político, ambiental, econômico, social e cultural de uma determinada sociedade no presente, assim como pela capacidade de projeção e de manutenção desses benefícios no futuro. Consideraremos, ainda, que o bem estar em cada uma das esferas citadas depende essencialmente da promoção dos direitos humanos e da expansão das liberdades substantivas individuais, num contexto de proteção e restauração da diversidade e integridade dos ecossistemas terrestres.

Nesse sentido, a idéia de que as empresas privadas exercem influência sobre o bem comum (dimensão ética) e sobre o interesse público (dimensão jurídica) equivale a dizer que, através de suas atividades, elas podem aumentar o bem estar geral de uma sociedade ou diminuí-lo, segundo favoreçam ou dificultem o alcance dos objetivos supra-citados. Por um lado, ao buscarem atender a seus próprios interesses, as empresas freqüentemente agem de maneira prejudicial a bens públicos livres e inalienáveis, tais como a liberdade e a saúde das pessoas, ou a justiça social; muitas vezes causam dano também a bens (ou recursos) comuns, tais como a água e o ar limpos, ou a biodiversidade. As grandes companhias - que são as que nos interessam aqui – são rotineiramente acusadas de causar níveis de poluição inaceitáveis, adotar práticas injustas de contratação, fraudar suas demonstrações financeiras ou conscientemente causar mal aos consumidores de seus produtos. Por outro lado, existem inúmeras áreas nas quais um engajamento empresarial positivo é absolutamente crucial para que se atinjam objetivos públicos específicos. Um exemplo disso é sua relevância para o sucesso das iniciativas governamentais que visam reduzir o nível de desemprego entre alguns grupos demográficos (mulheres, minorias étnicas, jovens, etc); ou, ainda, o seu papel na garantia de que certos produtos e serviços estejam acessíveis a toda a população, reduzindo assim a exclusão social71.

71 Veja-se, a esse respeito, as estratégias de negócios relativamente recentes que deliberadamente

visam a “base da pirâmide” demográfica em termos de renda (bottom of the pyramid, ou BoP), tanto na agricultura e no micro-crédito como na oferta de produtos de consumo específicos e adaptados. O BoP refere-se aos mais de 4 bilhões de pessoas que sobrevivem com menos de US$ 2 dólares por dia, segundo a definição elaborada em 1998 por C.K. Prahalad and Stuart L. Hart, e tornou-se, desde então, uma categoria utilizada em grande quantidade de artigos acadêmicos e programas de governo. Não nos

Tendo em vista seu caráter privado, e conseqüentemente o fato de que não podem reivindicar uma legitimidade democrática, a “ancoragem” (ou inserção) social das empresas irá depender da pertinência de seu projeto produtivo e do controle efetivo de suas atividades pela sociedade (quer esse controle seja exercido por instâncias governamentais ou não), balizas essas que deveriam, idealmente, garantir sua contribuição para o interesse geral. É evidente, portanto, que a idéia de simples auto-controle, proposta pelos segmentos corporativos do movimento da responsabilidade social, está longe de esgotar o leque das modalidades de regulação possíveis num contexto de globalização, além de evitar também qualquer diálogo sobre a pertinência, ou não, de processos produtivos que freqüentemente limitam-se à sanção pelo mercado: isto é, onde são considerados “socialmente pertinentes” os produtos ou os serviços que vendem bem (GENDRON, LAPOINTE e TURCOTTE, 2004). Ora, o abismo que existe muitas vezes entre os interesses do mercado e o interesse público é claramente ilustrado pelos debates atuais em torno do fumo, dos organismos geneticamente modificados, da automação e terceirização dos postos de trabalho, da propriedade intelectual ou dos incentivos à expansão do tráfego aéreo: os danos à saúde das pessoas, a incerteza quanto a riscos de médio e longo prazo, a situação de instabilidade a que se vê condenada a mão-de-obra, a natureza excludente de certas leis do mercado e a irreversibilidade de determinados impactos ambientais são sistematicamente desconsiderados pela lógica do capital globalizante.

São questões complexas como essas que se vêem rotineiramente ignoradas pelas abordagens estratégicas ou moralistas propostas pelos entusiastas da RSE. Como vimos no capítulo anterior, a abordagem estratégica limita-se a colocar a questão da responsabilidade social como um interesse da empresa, e legitima as iniciativas de RSE desde que venham a contribuir para a missão tradicional da firma, ou seja, a maximização dos lucros. A abordagem moralista, por sua vez, apresenta a RSE como um desafio eminentemente educacional, cujo objetivo é aprimorar as competências éticas dos sujeitos ligados à organização, assim como a natureza moral de uma empresa curiosamente antropormofizada (LOGSDON e YUTHAS, apud GENDRON, LAPOINTE e TURCOTTE, 2004).

Via de regra, o discurso dos atores dominantes acerca da RSE não contempla outras formas de regulação das firmas, em escala internacional, que não sejam aquelas de caráter voluntário. Sabendo, contudo, que as iniciativas voluntárias só emergem como antecipação estratégica de

estenderemos, neste espaço, sobre as críticas segundo as quais é preciso reduzir a pobreza através de melhores oportunidades de emprego e renda, e não necessariamente de consumo (cf. Karnani, 2006).

regulamentações futuras, como supor que as empresas adotarão tais medidas lá onde o Estado é fraco, corrupto ou inexistente?

Por outro lado, como vimos no Capítulo 4, é inegável que formas inéditas de regulação civil e supranacional da RSE têm surgido e se multiplicado, marcando uma ruptura tanto com as instâncias reguladoras tradicionais, estatais, típicas da modernidade fordista, como com o monopólio do discurso corporativo sobre a questão. Essas estratégias emergentes oferecem uma privilegiada arena de atuação para os movimentos sociais, e confirmam o fenômeno de reorganização do espaço público contemporâneo em torno de uma nova lógica de ação institucional, que tende a favorecer modelos de auto-organização para além do Estado (CASTELLS, 2002; DUPAS, 2005). Quão eficazes esses mecanismos são, de fato, é o que iremos discutir neste capítulo.