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A RSE COMO FORMA DE REGULAÇÃO: GOVERNANÇA COMPARTILHADA OU PRIVATIZAÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO ?

5.2. Neoliberalismo, governança e o discurso da responsabilidade

A temática da “responsabilidade” tem se tornado um dos traços distintivos da globalização neoliberal: presente em todos os níveis de governo e de organização civil, nos debates políticos e midiáticos, o termo pode ser usado tanto para transmitir a idéia de autonomia como de controle, tanto de conscientização como de policiamento. Observa-se, de fato, um amplo e sistemático processo de “responsabilização” em curso, conduzido por autoridades públicas e privadas, e vivenciado cotidianamente por cidadãos e empregados, mas também por organismos coletivos e instituições, tais como empresas, sindicatos, escolas, agências governamentais, etc. O que caracteriza esta tendência é a aplicação não-coercitiva de certos valores fundamentados na motivação para a ação por parte do agente, os quais têm como premissa um comportamento moral que aceita as conseqüências de seus atos de maneira auto- reflexiva (GIDDENS, BACK e LASH, 1997; THOMPSON, 2007).

Por um lado, o fenômeno pode ser parcialmente compreendido como uma expressão do movimento de introjeção e também de dispersão das instâncias disciplinares típico da modernidade, e evidenciado quer na pulverização do poder, presente no que hoje se chama de governança, quer nas mais variadas formas de “governo de si”, no nível do sujeito72.

72 Cf. os trabalhos sobre manifestações da auto-disciplina nas sociedades contemporâneas: o

mandamento de “levar uma vida equilibrada”, de fazer exercícios e manter-se em forma, de cuidar da saúde e da alimentação, etc – um culto ao corpo e à juventude muito mais exigente que qualquer espartilho vitoriano, sobretudo porque, ao contrário destes, tratam-se de restrições internalizadas, das quais o sujeito não pode tão facilmente se despojar: Winkler e Cole (1994); Stearns (1999).

Conforme a clássica análise efetuada por Foucault (1995), as novas formas de controle disciplinar são mais difusas, e a lei já não está cristalizada em um único personagem simbólico, seja ele o rei, o líder religioso, o pater familias ou algo equivalente; as formas de controle social encontram-se hoje amplamente distribuídas, emanando de todos os níveis, todos os lugares, ao invés de uma só fonte superior.

Até meados do século XVIII, as questões relativas ao governo eram tratadas dentro de um quadro de referência mais geral: governo era um termo discutido não só nas esferas políticas, mas também em textos filosóficos, religiosos, médicos e pedagógicos. Além da administração efetuada pelo Estado, “governo” referia-se também a práticas de auto-controle, orientação familiar e das crianças, economia doméstica, guia espiritual, etc. Por esse motivo, Foucault (1988) define governo como condução, ou, mais precisamente, “a condução da conduta”, e portanto uma noção que abarca desde o "governo de si" até o "governo de outros".

O conceito de governamentalidade foi introduzido pelo autor justamente para indicar as relações entre a capacidade de auto-controle do indivíduo autônomo (técnicas de si), e o modo como ela está relacionada às formas de dominação política e de exploração econômica (técnicas de dominação):

“Eu creio que se quisermos analisar a genealogia do sujeito na civilização ocidental é preciso levar em conta não apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas de si. Digamos: é preciso considerar a interação entre esses dois tipos de técnicas (...) O ponto de contato, onde os indivíduos são conduzidos por outros, está ligado à maneira como conduzem-se a si próprios, e é o que podemos chamar, penso eu, de governamentalidade. Governar as pessoas, no sentido mais amplo da palavra, não é uma maneira de forçar as pessoas a fazerem o que o governante quer; é sempre um equilíbrio versátil, com complementaridade e conflitos entre técnicas que asseguram a coerção e processos através dos quais o ‘self’ é construído ou modificado por si

mesmo.”73 (FOUCAULT, 1993: 201).

Assim, o que está grafado na obra de Foucault como “práticas de governo” não significa apenas as ações tomadas por políticos e burocratas que ocupam posições centrais no Estado, mas são as ações, microscopicamente distribuídas pelo tecido social, de todos os atores enquanto agentes de poder e objetos do poder – algo não tão distante da dinâmica proposta

entre dominação e habitus, na teoria de Bourdieu, segundo a qual a ordem social repousa numa relação de causalidade circular entre as estruturas objetivas da sociedade e as estruturas subjetivas dos indivíduos.

Nesse sentido, as observações feitas por Thompson (2007) reiteram e completam o que já foi dito anteriormente neste trabalho: o sucesso do neoliberalismo deve-se precisamente ao fato de ele ter conseguido entranhar-se tão profundamente no corpus político e na mente das pessoas, tendo se transformado no senso comum predominante da vida cotidiana, a tal ponto que paira quase desapercebido em toda a sua inventividade produtiva. À guisa de comparação, o autor pondera que, a exemplo do que ocorreu após a II Guerra Mundial, quando os cidadãos europeus e norte-americanos (mas não só eles) tornaram-se todos – de um modo ou de outro, e talvez sem percebê-lo – “sujeitos social-democratas”, os membros da geração sucessiva podem ter-se constituído como “sujeitos neoliberais” de maneiras que ainda estão longe de ser adequadamente compreendidas. O processo de “responsabilização” que caracteriza a época atual está estreitamente ligado a esta produção ideológica e discursiva do sujeito neoliberal (THOMPSON, 2007).

O conceito de “governança”, por sua vez, vem se impondo desde a virada dos anos 90 como o símbolo taquigráfico para uma nova abordagem nos modos de gestão pública e empresarial, a qual baseia-se em procedimentos de consulta democrática, formas flexíveis de coordenação, modos de gestão descentralizados, governo centrado na informação e na adoção de princípios, utilização de contratos, de mediação ou de incentivos econômicos, etc. Os exemplos que atestam esse esforço de modernização da ação pública (e também privada) são inúmeros: poderíamos citar as “Agendas 21”, os “estudos de impacto”, os “acordos voluntários”, “os mercados de crédito de carbono”, as “autoridades independentes”, as “normas ou convenções negociadas”, os “selos de conformidade” e outros tantos fenômenos nos quais a formulação e a implantação de regras, e o exercício do poder em geral, tornaram-se mais difusos e ocorrem em múltiplos níveis (THEYS, 2003; UTTING, 2005).

Tal tendência, que poderíamos chamar de “caixa de ferramentas da interação não- hierárquica”, segundo o feliz epíteto formulado por Theys (2003) para a governança, acelerou-se no contexto da globalização e do aumento dos fluxos transnacionais, frente à crescente perda de legitimidade dos Estados-nação e de eficácia da regulação política, aliadas à influência crescente das idéias neoliberais, ao término da Guerra Fria e à consolidação de grandes blocos econômicos (como a União Européia e o Mercosul). Não é por mera

coincidência que o influente periódico Governance74 nasce mais ou menos na mesma época em que ocorre a queda do Muro de Berlim; afinal, se a problemática da governança adquire destaque, é sinal de que essa mesma governança está em crise, uma crise que seria resultado do fracasso da gestão pública tradicional e dos “mandatos de autoridade”, e que alguns julgam ser possível contornar através de melhores formas de organização, de governo ou de gestão. Este é o motivo pelo qual, desde 1989, o Banco Mundial fala em “good governance” como solução para muitas das agruras do mundo em desenvolvimento (MKANDAWIRE, 2004). Segundo Hermet, Kazancigil e Prud’homme (2005), determinadas características, ou atributos, estão invariavelmente implícitos no conceito de governança. No que diz respeito à geometria das relações, por exemplo, o termo sugere um modo de gestão “horizontal” da complexidade; pressupõe que a gestão do público deve ser igual à do privado (isto é, racional e eficiente) e que todos os tipos de sociedade e de relações são regidos por mecanismos de auto-regulação. Os atores decisivos dos processos de governança geralmente recrutam-se ou escolhem-se entre si (através de cooptação, de posições conquistadas ou proximidade ideológica) e as decisões não são mais produto de debate e deliberação, mas de negociações, pechinchas e trocas entre as partes. Consolidam-se, assim, interesses setoriais (particulares, corporativistas) em detrimento do interesse geral (democracia, bem comum). A governança é um modo de gestão que tende a codificar-se através de normas e códigos de conduta negociados, ao invés de leis votadas, sendo portanto um processo sempre revogável e provisório (em contraste com as decisões com valor de obrigatoriedade que emanam de um locus de poder).

Eis a seguir a definição formulada pela Comissão sobre Governança Global75, e retomada mais tarde pela Comissão Européia:

“Governança é a soma dos vários meios através dos quais os indivíduos e as instituições, públicas ou privadas, gerenciam seus assuntos comuns. Trata-se de um processo contínuo através do qual interesses diferentes ou conflitantes podem ser atendidos e uma ação de cooperação levada a termo. Isso inclui

74 Governance – an International Journal of Policy, Administration and Institutions é publicado desde

1988 pela editora Blackwell.

75 A Comissão sobre Governança Global foi sugerida e criada em 1992 pelo ex-Chanceler alemão

Willy Brandt, e posteriormente contou com o apoio do Secretário-Geral da ONU à época, Boutros Boutros-Ghali. Um relatório, intitulado Our Global Neighbourhood (1994), foi produzido como resultado dos trabalhos da Comissão e gerou polêmica nos círculos pró-soberania nacional, tendo em vista que propunha, entre outras coisas, ampliar os poderes das Nações Unidas e de outras instâncias reguladoras internacionais.

instituições formais e os regimes encarregados de implementar as decisões, assim como os arranjos informais que as pessoas e instituições aceitaram ou perceberam como sendo do seu interesse.76”(COMISSION ON GLOBAL GOVERNANCE, 1995).

O importante nessa definição é a idéia de processo interativo: ela descreve uma sucessão de etapas através das quais numerosos atores, que não comungam necessariamente os mesmos interesses e que atuam em escalas diferentes mas vêem-se confrontados com um mesmo problema, vão progressivamente construir uma representação comum dessa realidade, dar-lhe um sentido, fixar objetivos e adotar soluções, sem que nada – nem essa representação, nem esse sentido, nem essa interação - sejam determinados de antemão.

Essencialmente pragmático, o conceito de governança remete de fato a uma “caixa de ferramentas”, dada a lista extensa e impressionante de receitas gerenciais ou de instrumentos supostamente capazes de resolver a crise das políticas democráticas tradicionais, centradas na autoridade do Estado. O sucesso do termo deve-se, talvez, à convicção de que dispomos agora de um receituário político moderno contendo todas as técnicas necessárias para vencer as contradições inerentes à ação coletiva: um catálogo de recursos de ponta, “state of the art”, capazes de responder a todas as situações, mesmo as mais complexas e espinhosas, sem que seja necessário declinar qualquer visão ideológica do que constitua, afinal de contas, um “bom governo”, para além de uma concepção abstrata da democracia, concebida meramente como interação aberta e pluralista entre os atores.

Daí deriva a crítica muitas vezes endereçada à noção de governança, segundo a qual tanto a teoria como a prática dela decorrente tendem a inspirar-se numa concepção gerencialista dos sistemas políticos, empenhada em encontrar soluções para as falhas do mercado e para as insuficiências da intervenção pública a partir de uma perspectiva funcionalista, derivada da análise dos sistemas e pretensamente apolítica, exemplificada pela obra de teóricos norte- americanos tais como Karl Deutsch ou David Easton (THEYS, 2003).

É essa visão neutra, otimista e gerencial da ação coletiva que o construto de governamentabilidade avançado por Foucault questiona fortemente, e através do qual ele procura re-introduzir a influência da descontinuidade histórica, o peso da ideologia, a especificidade do poder, a importância das finalidades políticas. Não é possível compreender as práticas, os arranjos coletivos, ou como funcionam as ferramentas e procedimentos da

governança isolando-os dos objetivos e valores atribuídos à ação pública, nem esquecendo os tipos de racionalidade que estruturam essas práticas e arranjos, pois é justamente a combinação das ferramentas, dos objetivos e dos sistemas de racionalidade que definem a governamentalidade (FOUCAULT, 1993).

Segundo esse ponto de vista, a RSE deve ser compreendida como um fenômeno híbrido e multifacetado, nascido não apenas no bojo de uma racionalidade neoliberal avessa à intervenção do Estado (e que para avançar seus propósitos tem encampado a causa), mas também como conseqüência da concomitante mobilização e fortalecimento da “sociedade civil propositiva” de que nos fala Dagnino (2002), e do desenvolvimento de todo um aparato teórico, prático e institucional que continuamente produz – e reproduz - o rearranjo dos atores e das normas para criação de regras77 no campo da governamentalidade. Deste modo, o discurso da RSE mescla e confunde, em diversos níveis, tanto as vozes de poderes que buscam conservar sua hegemonia, como as bem-intencionadas vozes, cooptadas, que incorporaram e inadvertidamente replicam a lógica do sistema, além das vozes dos contra- poderes que a ele resistem.