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estrutura do capital eficiente dentro do campo considerado. As estratégias dos agentes dentro

do campo são determinadas pelo habitus, e repousam nos mecanismos estruturais de competição e dominação. Assim, um campo é um espaço social onde os participantes estão em luta permanente a fim de impor suas categorias de visão e divisão do mundo social, e campos bastante distintos (como o da política, o da moda, o da religião, o da literatura, o da RSE, o da produção de petróleo, etc.) apresentam certas propriedades comuns que permitem que se possa falar em leis características deles.

O fato que os indivíduos estejam inseridos em campos específicos, submetidos a lógicas e leis que são próprias a essa circunscrição particular, significa que ali onde pensávamos que havia um sujeito livre, agindo de acordo com sua vontade mais imediata, na verdade o que existe é um espaço de forças estruturado e estruturante que efetivamente molda a capacidade de ação e de decisão de todos aqueles que dele participam. É, pois, contra uma certa concepção de autonomia do sujeito que a noção bourdiana de campo se insurge de modo enfático.

Inúmeros são os estudos que, tomando por objeto de análise campos muito diferentes entre si (tais como a educação superior, a televisão, a produção intelectual e artística de uma época, etc), buscaram detectar a vigência de uma rede subjacente de interesses e relações coagindo o comportamento e o discurso dos sujeitos. No nosso caso, interessa investigar, num primeiro momento, a RSE enquanto campo de embate político que surge em condições históricas particulares, incorpora movimentos da sociedade civil, adquire pretensões científicas, é conquistado pelos agentes econômicos dominantes e finalmente vê sua produção discursiva transbordar as fronteiras do próprio campo e ser absorvida pelo zeitgeist da contemporaneidade capitalista. Num segundo momento, pretendemos demonstrar como o

campo da indústria do petróleo, com as características e imperativos que lhe são únicos,

molda por sua vez os discursos sobre RSE dos agentes que a ele pertencem.

3.1. Propriedades e funções sociais do discurso: referenciais teóricos

O conceito de discurso possui muitas definições conflitantes e sobrepostas, formuladas a partir de perspectivas teóricas e disciplinares diversas, dentre as quais se destacam a Lingüística e as Ciências Sociais, mas também a História e a Psicanálise. A abordagem que

36 Em lugar dos termos “ator” ou “sujeito”, geralmente empregados quando se deseja enfatizar a

capacidade do indivíduo de agir livremente, Bourdieu prefere o termo “agente”, o qual sublinha, pelo contrário, os determinismos aos quais está submetido o indivíduo por meio do habitus.

adotaremos aqui, ao analisar os discursos sobre ética e responsabilidade social empresarial, é pautada por uma concepção eminentemente social e política das práticas discursivas, e nesse sentido mais voltada para o contexto em que as mesmas são produzidas, para as intenções dos envolvidos, para a explicação de como e por que certos discursos são criados, e menos preocupada em dissecar as minúcias do texto escrito ou falado do que aqueles vieses descritivos lingüisticamente orientados.

O discurso é um componente central de todos os eventos sociais concretos (i. e., ações, processos), assim como de práticas sociais mais duradouras (instituições, normas), embora nenhum desses fenômenos seja tão-somente discurso, posto que geralmente consistem em articulações do discurso com elementos não-discursivos (tais como a colheita agrícola, as soluções arquitetônicas, os tratamentos de saúde ou a produção de automóveis, por exemplo). O discurso engloba, além da linguagem, falada e escrita, outras formas de produção de significado, tais como as imagens visuais, a música e a linguagem corporal; o elemento discursivo de um evento social freqüentemente combina vários tipos de semiose37 (por exemplo, um programa de televisão). Entretanto, o uso do termo discurso ao invés de linguagem não é motivado primariamente pela diversidade de formas semióticas que o compõem, mas sim porque se quer enfatizar uma maneira relacional de ver a produção de significados – isto é, o discurso enquanto um elemento dos eventos e práticas sociais

dialeticamente interconectado com outros elementos (FAIRCLOUGH, 2005). Eis porque o

principal objetivo da análise do discurso, segundo essa visão, é a investigação das relações dialéticas entre os elementos discursivos e não-discursivos do social, de modo a melhor compreender essas complexas relações e identificar de que maneira as alterações no discurso podem ocasionar mudanças em outros elementos.

As abordagens teóricas da análise do discurso podem ser divididas em dois grandes grupos: as críticas e as não-críticas. As primeiras diferem das segundas sobretudo por empenharem-se em demonstrar que o discurso é moldado por relações de poder e por ideologias, ao mesmo tempo em que apontam para causas, conexões e pressupostos ocultos sob a superfície discursiva que, via de regra, não são transparentes para as pessoas afetadas. Tais análises destacam sempre a natureza ativamente construtora da realidade que é inerente às práticas

37 A semiose diz respeito aos processos de produção de significado, e constitui, juntamente com os

signos, o objeto de estudo da semiótica. Enquanto os signos incluem praticamente qualquer coisa “que

esteja no lugar de outra” - desde a palavra até um sinal de trânsito, do recurso sonoro ou visual das

mensagens publicitárias até um aroma ou sabor que provoca recordações - a semiose é o próprio fenômeno da significação, ou seja, ela é “o signo em ação”(ECO, 1989).

discursivas: o discurso constrói o social, quer este social se manifeste como objeto, prática, sujeito, relação, identidade, sistemas de crenças e conhecimentos, ou outro. Conseqüentemente, os efeitos dos discursos são determinantes - tanto para a reprodução da ordem social vigente como para a formulação de novas formas de ver o mundo e de atuar nele. Ambas as possibilidades, mudança ou manutenção do status quo, dependem em grande medida das práticas discursivas que as promovem e justificam: hegemônicas, no primeiro caso, e transformadoras (ou contra-hegemônicas), no segundo. As práticas discursivas possuem, portanto, uma natureza eminentemente política, pois são o locus onde se dá a luta pelo poder de nomear e construir o “real” (PÊCHEUX, 1988; BOURDIEU 1996; 2000; FAIRCLOUGH, 2001; 2005; FOUCAULT, 2005).

“Os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles efetivamente as constroem ou ‘constituem’; diferentes discursos constituem entidades-chave (sejam eles a ‘doença mental’, a ‘cidadania’ ou o ‘letramento’) de diferente modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais (por exemplo, como médicos ou pacientes), e são esses efeitos sociais do discurso que são focalizados na análise do discurso. Outro foco importante localiza-se na mudança histórica: como diferentes discursos se combinam em condições sociais particulares para produzir um novo e complexo discurso.” (FAIRCLOUGH, 2001: 22).

Nossa pesquisa adere ao paradigma analítico da Análise Crítica do Discurso (ACD), para a qual as noções de poder, ideologia, hierarquia e dominação, aliadas a outras variáveis sociológicas, são tidas como relevantes na explicação ou interpretação dos eventos discursivos. Os objetos investigados pela ACD diferem segundo as disciplinas e as preferências dos pesquisadores que a aplicam, mas de uma maneira geral predominam as pesquisas sobre discursos políticos, organizacionais, midiáticos, questões de identidade e de gênero, racismo, etc. As metodologias também diferem grandemente, de acordo com os objetivos da pesquisa e as estratégias empregadas: há pequenos estudos de caso qualitativos, enormes coletas de dados quantitativos, pesquisas de campo, etnográficas, etc. O que todos esses estudos possuem em comum é um particular interesse pela relação entre linguagem e poder, e o fato de invariavelmente levarem em consideração as relações de luta e conflito, mais ou menos abertas, presentes em todas as áreas acima citadas (FOWLER, HODGE, KRESS et al., 1979; FOWLER, 1991; FAIRCLOUGH, 1995; 2001; VAN DIJK, 1993; 2001; WODAK, 2002).

A esta altura, parece oportuno procedermos a uma desconstrução do rótulo da ACD, de maneira a definir o que significa exatamente utilizar os termos “crítica” e “discurso”. Afinal, Billig (2002) ressaltou recentemente o fato de que a ACD já se tornou uma disciplina acadêmica estabelecida, com os mesmos rituais e práticas institucionais de qualquer outra disciplina, e indaga ironicamente se isso implica que ela tornou-se “acrítica” no processo. No intuito de melhor iluminar o sentido em que são usados os dois termos acima, deve-se recordar inicialmente que a ACD enxerga o discurso como prática social, e considera crucial o contexto de uso do discurso. Descrever o discurso como prática social implica admitir uma relação dialética entre um determinado evento discursivo e a situação, a instituição e a

estrutura social que o enquadram: o evento discursivo é moldado por eles, mas também os

molda (FAIRCLOUGH, 1993). Tendo em vista que o discurso é tão carregado de conseqüências sociais, é inevitável que dê origem a importantes questões de poder; as práticas discursivas podem ter efeitos ideológicos consideráveis, na medida em que contribuem para produzir e reproduzir relações de poder desiguais entre classes sociais, homens e mulheres, maiorias e minorias étnicas ou culturais, graças às maneiras pelas quais representam o mundo, as coisas, e aí posicionam as pessoas (WODAK, 2002). Por esse motivo, as pesquisas e trabalhos na área de ACD propõem-se, antes de mais nada, como intervenções de caráter emancipatório, pois objetivam fornecer recursos para que os indivíduos e grupos que encontram-se em situação de desvantagem possam promover transformações sociais relevantes para suas necessidades.

Quanto ao termo “crítica”, podemos associar seu significado primeiramente às influências da Escola de Frankfurt e sobretudo dos trabalhos de Habermas; hoje em dia, porém, o conceito tende a ser usado num sentido mais amplo, para denotar o vínculo prático que une “o engajamento social e político” a uma “construção da sociedade que é sociologicamente informada” (KRINGS, apud WODAK, 2002), ao mesmo tempo em que se reconhece que “no que tange a assuntos humanos, as conexões e cadeias de causa-e-efeito podem ser distorcidas até se tornarem irreconhecíveis. Donde a ‘crítica’ consiste essencialmente em tornar visível a interconexão das coisas.”(FAIRCLOUGH, 1995:747). Em resumo, uma análise “crítica” pode ser compreendida como aquela que insere os dados no seu contexto social, que assume explicitamente uma posição política e que aplica na prática seus resultados, seja em seminários para formadores de opinião, seja em artigos na mídia, seja na elaboração de material didático, etc.

De acordo com o modelo de ACD proposto por Fairclough, qualquer “evento” discursivo deve ser considerado simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social (vide Figura 7). Analisar a dimensão do texto, ou do conteúdo propriamente dito, seja ele falado, escrito ou impresso, significa ter por objeto principal a forma e o significado dos textos, com particular ênfase no primeiro aspecto. Já a análise das práticas discursivas investiga a natureza dos processos de produção e de interpretação textual – por exemplo, que tipos de discursos são elaborados e consumidos, por quem, em que condições, dentro de que contexto, e como se combinam. Por fim, a análise da terceira dimensão - discurso como prática social - dedica-se a questões tais como as circunstâncias institucionais, políticas e organizacionais que cercam o evento discursivo, e como elas modelam tanto a sua natureza como os seus efeitos; o foco principal desse tipo de análise são as relações de poder e de dominação que investem as práticas discursivas, e que são, ao mesmo tempo, dialeticamente interpeladas por elas (FAIRCLOUGH, 2001).

Figura 7: Concepção tridimensional do discurso

Fonte: Fairclough, 2001.

Neste trabalho, focamos nossa atenção sobretudo nas práticas discursivas relativas à RSE (i.e., exatamente como e por quem é produzido, divulgado e consumido esse tipo de discurso, e como ele se articula com outros tipos de discursos) e nas práticas sociais que as fomentam (i.e., as condições históricas e materiais que determinam sua produção e consumo). A dimensão do texto é abordada com propósitos meramente ilustrativos, através da análise de