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Parte II Ponto de partida: enquadramento teórico-conceptual

3.1. Abordagem genológica da escrita

Como vimos anteriormente, escrever é uma atividade complexa e a sua aprendizagem e desenvolvimento faz parte de um longo processo de escolarização, fundamental para o crescimento intelectual e social de qualquer indivíduo. Neste processo, o ser humano evolui de funções psicológicas elementares para processos cada vez mais complexos7, tendo a linguagem, instrumento mediador entre o indivíduo e o mundo, um

papel central nessa evolução. Ou seja, é através da linguagem que se concretizam processos mentais em abstração, se procede a categorizações e generalizações, se assimila, se transmite, se preserva e se desenvolve o conhecimento.

Vygotsky (1978), nos seus estudos sobre aprendizagem, propõe a noção das zonas de desenvolvimento proximal (ZDP)8 que explicam, em parte, como o desenvolvimento se processa na criança, processo este que extrapolado para a aprendizagem em geral, independentemente da idade em que se processa, pode vir a ser encarado como um contributo valioso para a aprendizagem e desenvolvimento das competências de escrita, em contexto académico. Assim, ao considerarmos as ZDP como oportunidades de desenvolvimento que surgem a partir do que o indivíduo já consegue fazer de forma autónoma (desenvolvimento atual) e o que poderá vir a fazer no futuro (desenvolvimento proximal), poderá ser criada uma oportunidade pedagógica. Na zona de desenvolvimento proximal (possível), podem-se proporcionar novas aprendizagens e gerar o desenvolvimento do indivíduo, desde que estejam reunidas as condições necessárias para tal. Nesta teoria das ZDPs, Vygotsky refere-se ao papel fundamental que um ambiente interativo e colaborativo pode vir a ter, explicitando que o potencial de aprendizagem se concretiza quando o indivíduo tem a possibilidade de interagir social e colaborativamente, com os seus pares e com o professor, funcionando estes como coadjuvantes na construção do conhecimento:

7 Funcionamento psicológico tipicamente humano, por oposição às funções psicológicas elementares, próprias dos animais que se caracterizam por serem reações automáticas, reflexas e associações simples (Vygotsky, 1978).

8 Zona de desenvolvimento proximal: “Is the distance between the actual developmental level as determined by independent problem solving and the level of potential development as determined through problem solving under adult guidance or in collaboration with more capable peers” (Vygotsky, 1978, p. 86).

We propose that an essential feature of learning is that it creates the zone of proximal development; that is, learning awakens a variety of internal developmental processes that are able to operate only when the child is interacting with people in his environment and in cooperation with his peers. Once these processes are internalized, they become part of the child's independent developmental achievement. (Vygotsky, 1978, p. 83)

Ao compreender que o ser humano só aprende o que está ao seu alcance e que esta aprendizagem se processa de forma mais eficaz em ambiente interativo e colaborativo e com o devido suporte pedagógico, o professor, em qualquer nível de ensino, pode organizar tarefas de aprendizagem e desenhar materiais instrucionais que tenham em conta o que o aprendente já sabe fazer e proporcionem aprendizagens efetivas em ambiente adequado. O que acontece muitas vezes é que a aprendizagem que se propõe ou não se situa numa zona de desenvolvimento proximal ou não tem o devido ambiente colaborativo, nem o suporte pedagógico do professor e, por qualquer destas razões, as aprendizagens não têm condições para ocorrer. Ou seja, nestas condições, a aprendizagem que se propõe envolve constrangimentos internos ou externos9 que podem impor uma sobrecarga cognitiva difícil de suportar pelos estudantes. Se não lhes for facultada a hipótese de interagir e colaborar, com o professor ou com os seus pares, esta tarefa não é exequível e a aprendizagem não se processa. Neste sentido, se tomarmos em consideração que “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (Bakhtin, 1997b, p. 282) e que a língua reflete as condições específicas em que foi produzida (relacionadas com o tema, com o contexto de produção e com o propósito comunicativo), não parece ser possível, nem desejável, que a língua como objeto de ensino apareça afastada de um ambiente colaborativo e dessas mesmas condições de produção (Kirkland & Saunders, 1991; Sweler, 1988; Vygotsky, 1978).

Se pensarmos nas características do ensino a que os estudantes estão expostos no ensino pré-universitário em Moçambique (número excessivo de alunos por turma, aulas

9 “External constraints include such factors as purpose and audience of the assignment, features of the assignment itself, discourse community conventions, nature of the material to be summarized, time constraints, and the working environment. Internal constraints consist of L2 proficiency, content schemata, affect, formal schemata, cognitive skills, and metacognitive skills”. (Kirkland & Saunders, 1991, p. 106)

maioritariamente expositivas por parte dos professores, difícil acesso dos estudantes a manuais escolares, reduzido (ou inexistente) apetrechamento das bibliotecas escolares), facilmente se compreende que, embora os programas de ensino se possam dirigir à “zona proximal” (Vygotsky, 1978), nem sempre vêm acompanhados do devido suporte pedagógico e didático para que a sua aplicação possa resultar em aprendizagens efetivas. Ou seja, sem um enfoque específico no desenvolvimento de competências linguísticas e discursivas, sem o suporte adequado por parte da escola e do professor e sem interação e colaboração, a aprendizagem da escrita, e o seu posterior desenvolvimento, pode não se realizar. A tarefa de aprendizagem pode ser redundante ou tão complexa que os estudantes ou abandonam as tarefas de aprendizagem desinteressados ou incapazes de a concluir, ou a praticam coagidos, com todas as consequências que isso acarreta do ponto de vista cognitivo.

Assim, durante o longo percurso de aprendizagem, percorrido até chegar à universidade, os estudantes vão construindo diferentes imagens, consolidando múltiplas perceções10 e gerando sentimentos diversos sobre o que é escrever e sobre a imagem que têm de si próprios como escreventes. Transportam consigo ideias e experiências do processo de ensino e aprendizagem, memórias das interações tidas com professores e pares, em face das respostas emocionais aos estímulos propostos no domínio da escrita. Estas perceções remetem, na maior parte dos casos, para aprendizagens não processadas e para os consequentes sentimentos negativos associados ao ato de escrever que poderão vir a interferir e a moldar as atitudes, o empenhamento e a motivação perante novas tarefas em que a escrita está envolvida (Barbeiro et al., 2015; Bork, Bazerman, Correa, & Cristovão, 2014; Bräuer, 2012; Siopa & Pereira, 2017).

Bakhtim (1997), relativamente à complexidade da escrita que circula em contexto académico, refere haver uma

(...) diferença essencial existente entre o género de discurso primário (simples) e o género de discurso secundário (complexo). Os géneros secundários do discurso — o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. - aparecem em circunstâncias de uma comunicação

10 Recorde-se a este propósito que perceção é a apreensão de uma dada realidade, de uma certa forma, envolvendo o indivíduo social, afetiva e cognitivamente (Castellotti & Moore, 2002), como referido no cap.

cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. (Bakhtin, 1997b, p. 282)

Ou seja, para além dos fatores anteriormente referidos, há ainda a complexidade deste discurso que transforma a sua aquisição e desenvolvimento numa tarefa de grande complexidade cognitiva, mesmo que os aprendentes sejam adultos, como é o caso dos estudantes universitários. Daqui resulta a necessidade de se encarar o problema e tentar encontrar soluções que possam, se não reverter, pelo menos minimizar o problema. Esta constatação passa por dotar os estudantes de ferramentas que possam vir a constituir o suporte imprescindível para desenvolverem as competências de escrita necessárias ao contexto académico em que se encontram.

Posto isto, e tendo em linha de conta que esta é uma situação que se verifica em muitos contextos, as universidades têm vindo a organizar programas, cursos e centros de escrita com o intuito de criar contextos de ensino-aprendizagem da EA, respondendo, assim, às necessidades de muitos estudantes. Nestes programas podem detetar-se, fundamentalmente, dois tipos de abordagens do ensino desta escrita mais complexa: o modelo processual e o modelo baseado no género (Bereiter & Scardamalia, 1987; Hyland, 2003, 2007; Martin, 1992; Pereira & Cardoso, 2013; Schumann, 1997; Siopa, 2017).

O modelo processual encara a escrita como um processo cognitivo individual, indutivo e exploratório, baseado na crença de que a escrita se aprende naturalmente, escrevendo muito, num processo faseado em tarefas de pré-escrita, textualização e reescrita, em que o estudante descobre e reformula as suas ideias, com relativa liberdade, à medida que tenta aproximar-se do sentido pretendido. Num contexto de aprendizagem, como o moçambicano, em que a língua veicular é uma L2 para a maioria dos cidadãos, esta suposição é problemática porque, para além de lhe faltar uma fundamental dimensão social, quase como se o contexto de produção não interferisse na produção do discurso, também não se toma em consideração a falta de contacto dos estudantes com as convenções culturais associadas à EA e aos contextos de circulação desta escrita. Há autores que chegam mesmo a referir que este tipo de ensino, sem informação explícita sobre as características sociais e retóricas dos textos, tem tendência a favorecer os estudantes de língua materna e aqueles que são oriundos das classes mais favorecidas, com

maior contacto com o escrito e, muitas vezes, com acesso a apoios individuais fora da escola ou da universidade:

While well-intentioned, this is a procedure which principally advantages middle class L1 students who, immersed in the values of the cultural mainstream, share the teacher’s familiarity with key genres. L2 learners commonly do not have access to this cultural resource and so lack knowledge of the typical patterns and possibilities of variation within the texts that possess cultural capital (…) Students outside the mainstream, therefore, find themselves in an invisible curriculum, denied access to the sources of understanding they need to succeed. Thrown back on their own resources, they are forced to draw on the discourse conventions of their own cultures and may fail to produce texts that are either contextually adequate or educationally valued. (Hyland, 2003, pp. 19–20)

Neste modelo de ensino, o professor não explora com os estudantes a forma como os textos são codificados distintamente e em modos que podem ser reconhecidos relativamente aos seus objetivos, destinatários e mensagem. Faz depender o sucesso da escrita de fatores individuais como a capacidade de trabalho fora do espaço da sala de aula, a memorização de conteúdos a serem inseridos na escrita, relegando para o final do processo, para a fase da revisão e edição, recursos centrais para a construção do sentido, como os recursos linguísticos e a organização retórica dos textos a construir (Devitt, 2015; Hyland, 2003; Swales, 1990).

O(s) modelo(s) baseado(s) no género têm inicialmente origem na noção de género discursivo11 de Bakhtin (1997) que corresponde a enunciados que surgem de esferas de atividade humana tipificadas, refletindo, por isso, as condições específicas de um dado contexto social de comunicação.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da

11 A esta formulação de Bakhtin, Bronckart (2003) contrapõe a formulação de género de texto, dado

considerar os textos como “realização empírica” (p.69), “produtos da atividade da linguagem que apresentam características relativamente estáveis – justificando-se por isso que sejam chamados géneros de texto”

atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (Bakhtin, 1997a, p. 279)

Ou seja, as esferas sociais de comunicação humana possuem, em abstrato, classes de textos orais e escritos, mais ou menos estáveis, que se concretizam em atos comunicativos recorrentes, em que a atividade humana é mediada pela linguagem, de acordo com modelos construídos e apreendidos socialmente. O género implica, assim, a relação entre o texto concreto (oral ou escrito), o contexto real em que é produzido, (envolvendo as respetivas relações sociais) e o objetivo específico do ato comunicativo. E embora o discurso específico construído como um conjunto particular de formas linguísticas possa variar de acordo com o indivíduo que o produz, há características “globais e finitas” (Bronckart, 2003, p. 149) que são recorrentes, quando o contexto e os objetivos comunicativos se repetem ou são idênticos. Ou seja, os textos constituem “produtos concretos das ações de linguagem, que se distribuem em géneros (...), cujo número e cujas fronteiras são por essência indeterminados, à disposição, como modelos, nesse construto sócio-histórico que é o intertexto (Bronckart, 2003, p. 149).

Há como que uma aprendizagem centrada na linguagem, social e comunicativa, que transforma o género num instrumento poderoso que veicula uma concepção de língua “mais ampla, integrando os principais eixos do ensino: leitura, produção e análise linguística” (Bunzen, 2004, p. 221), mas também a consciência das relações sociais reais e dos respetivos contextos que intervêm na produção do texto - oral ou escrito. (Bronckart, 2003; Vygotsky, 1978). Alguns autores distinguem os termos género de texto (ou textual) e género do discurso (ou discursivo), na medida em que, de acordo com o conceito que lhes

está associado, estes termos não são sinónimos. Os termos género de texto (ou textual) parecem apontar mais para a materialidade textual, implicando uma perspetiva focalizada no material linguístico selecionado e no texto construído, fruto das condições em que o texto foi produzido. Os termos género do discurso (ou discursivo) parecem focalizar-se mais no estudo das situações de produção dos enunciados ou textos, “privilegiando a vontade enunciativa do locutor (...) e a partir desta análise (...) as marcas linguísticas, que refletem no enunciado/texto esses aspetos da situação” (Rojo, 2005, p. 199). As perspectivas que partem da formulação de género de textos parecem configurar um tipo de trabalho mais ligado às maneiras (também linguísticas) de construir o significado o que, se encarado pedagogicamente, implica que “devem ser propostas situações que se reportem a práticas sociais e géneros textuais passíveis de serem reconstituídos, ainda que parcialmente, em sala de aula (...)” (Marcuschi, 2010, p. 78). Ou seja, independentemente da distinção teórica entre texto e discurso, a prática de trabalho em sala de aula com os géneros deverá, idealmente, incidir no reconhecimento e reprodução das suas características linguísticas e discursivas, diretamente dependentes do contexto de produção, dos propósitos comunicativos e do conteúdo a transmitir.

Pela sua nova abordagem, o modelo de ensino da escrita baseado no género de textos

tem gerado um interesse crescente nas três últimas décadas e tem tido um impacto considerável na forma como se compreende o discurso e se ensina a língua. Transformou o ensino da escrita em diferentes contextos e relativamente a diversas línguas, quer estas tenham sido aprendidas como língua materna (L1), L2 ou língua estrangeira (LE). Assim, tanto na área da análise do discurso, como na área do ensino-aprendizagem da escrita, em contextos académicos (secundário e universitário), o conceito de género tem permitido transformar métodos de ensino, desenvolver currículos e programas e criar materiais instrucionais mais adequados às reais necessidades dos estudantes que agora frequentam a escola e a universidade.

Este crescente interesse dado à noção de género, e à sua aplicação no ensino e aprendizagem da língua, tem tido um objetivo duplo: por um lado, compreender as relações entre a linguagem e o seu contexto de uso e, por outro, colocar este conhecimento ao serviço do ensino da língua e do desenvolvimento das competências de literacia, associando o “saber” ao “saber fazer” (cf. cap.1). Desenvolveu-se uma teoria da linguagem socialmente enquadrada e uma “abordagem logocêntrica” (Coutinho, 2013, p. 19)

enraizada no papel fundamental da linguagem no desenvolvimento humano e na pesquisa desenvolvida acerca dos textos e respetivos contextos, para além do estreito e formal universo do paradigma cognitivista, explorado pelo modelo processual.